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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Eduardo Portela

A Academia Brasileira de Letras, a Casa de Machado de Assis, recebe hoje uma escritora, um escritor – a escritora Lygia Fagundes Telles. Quando digo escritor quero ressaltar um traço peculiar, uma condição insubstituível, um sentido específico. E procuro distinguir, para tornar bem clara esta decisão semântica, entre escritor, escrivinhador e escrevente. O terceiro estabelece com a Língua uma relação instrumental – é, talvez, um usuário burocrático. O segundo se nos afigura como um diletante, abandonado à sua aventura intransitiva. Jamais escreve “para”; escrivinha simplesmente. Tem alguma coisa do dandy da palavra, porém se deixa afogar na sua intransitividade congênita. Já o escritor, este, não. Ele inventa signos, imagens, objetos não identificáveis – que nos provocam, nos reencaminham, nos induzem a viver. Esses objetos são sujeitos: são vidas.
 
A escritora Lygia Fagundes Telles começou acompanhada dos receios inerentes a uma responsabilidade prematura. Esse receio, esse medo, que já se antecipava como medo do tempo, núcleo e força propulsora de sua narrativa vigorosamente existencial, não passou desapercebido à perspicácia de Mário de Andrade. “Escreva sem medo, não seja assim”, aconselhou ele, naqueles dias matinais. Não se sabe até hoje se o conselho já se encontrava dentro dela, guardado debaixo de sete chaves, ou se ela seguiu à risca as indicações do mestre. Sabe-se que a escritora derrotou ou domesticou o medo. Aliás, toda vez que o medo se deixa domesticar, deixa-se igualmente derrotar. O medo foi derrotado com a mais pacífica e a mais perigosa de todas as armas – a palavra: este sonho escrito, que rasga corações, deflagra revoluções, entre perplexo, eloquente e mudo, diante do seu “mistério”. Do seu “mistério”, para falar com uma palavra-chave de Lygia Fagundes Telles.
 
Diz um famoso médico vienense, criador de uma paraciência muito ambiciosa, tão ambiciosa que se imaginou completamente ciência, que as representações do medo podem não ser verdadeiras, mas o medo sim. Com uma diferença radical: aqui o medo não se reduz à mera produção de fantasmas, porque se dedica a criar vidas. A escritora soube perceber, como o personagem do “Verde Lagarto Amarelo”, que só lhe restara:  “escrever.” Para vencer o medo do tempo.
   
I
   
Em meio ao desconforto existencial, todo perpassado pelo travo da inadaptação, tocado ainda pela consciência infeliz, ergue-se um tempo romanesco, solitário e incomunicável. A busca do sentido da vida, a procura do “outro”, vai desdobrando um projeto narrativo que não recusa, porque abraça e leva adiante, os emblemas do desejo. A narradora evita reter ou subjugar o real. Pelos interstícios ou pelas frestas do que fora uma realidade estável e coesa, passam agora as impurezas da razão. Configura-se um realismo diferenciado, provavelmente um realismo imaginário, onde contracenam o natural e o sobrenatural, o cotidiano e o extraordinário, impulsionados pela legenda voluntariosa do “eterno retorno”. As rememorações se sucedem, porque o tempo é o centro do mundo. E as palavras se alternam, não raro, ludicamente, porque o jogo alarga o sentido.

Em uma entrevista altamente reveladora, concedida a O Estado de S. Paulo, dizia Lygia:
   
Eu sou uma jogadora. Meu pai era um jogador. Ele jogava com as fichas, eu jogo com as palavras. Eu acho que nós temos de arriscar, o tempo todo, até a morte. Então, arrisco e acho válido. É uma forma de transpor o círculo de giz, a fronteira. Isto, para o escritor, é sempre uma esperança.

Esse traço modernizante, esse salto rigorosamente qualitativo que vai da ilusão da plenitude à aventura do possível, esse risco calculado, atento às regras do jogo, instala a esperança no interior da Linguagem. E a Linguagem não é senão a Língua mais a premonição.

A Literatura então se afirma como vontade, vontade realista de domar o tempo e evitar o apodrecimento dos homens e das coisas. Essa deterioração se vê metaforizada, verticalmente, em Ciranda de Pedra.
   
II
   
A vida, essa incontrolável “ciranda de pedra”, exprime e imprime o Antropocentrismo de fundo humanista que a sociedade tomada pelas promessas modernizadoras experimentou em meio à exaltação e ao desastre. O jogo cênico que se desenrola principalmente entre Virgínia, Laura, Natércio e Daniel não esconde o impulso desmitificador, com que põe em xeque as práticas e as efusões do cotidiano pequeno-burguês. O Drama estaria fadado ao melodrama, não fosse a perícia do romancista no representar as oscilações de um mundo quase soterrado, porém sobrevivente. A crise dos padrões éticos, cindida entre o impasse social e o bloqueio psicológico, dá lugar a uma trama bem urdida, onde o desenho da desagregação consegue ser, a uma só vez, preciso e imaginoso.
 
Aí já se perfila um dos temas centrais da novelística de Lygia Fagundes Telles: o dos personagens insulares, que se debatem, incessante e despropositadamente, como pequenas ilhas extraviadas. A moldura ambiental, que serve de pano de fundo às peripécias de Virgínia e seus coadjuvantes inglórios, aponta para um espaço inerte, todo ocupado pela voracidade do tempo. A transcendência, ou a correta mobilização de detalhes imediatos, se desprende de sua base metonímica para multiplicar-se metaforicamente. Corta o azul do teto e o verde do horizonte. O “outro”, que permanecia deliberada ou involuntariamente oculto, se vê revelado, mas revelado como representação de afetos e linguagens truncados. Porque se desestabilizara, na derrocada moral, o conjunto social que se supunha organicamente estável. Jamais conseguiu ela ser atendida naquela aspiração verbalizada no Verão no Aquário: “Era preciso, ao menos, que não continuássemos como ilhas.”

III
   
A energia serena que atravessa o texto faz com que a sua cadência narrativa, a sua pontuação interior, consiga ser simultaneamente abrupta – o vocábulo cortante ou desbocado – e pausada – evocativa e afetuosa. Recupera-se o novo, que fora proscrito pela novidade. “A obra de Arte para mim – adianta Lygia – é um imprevisto. Um grande imprevisto de loucura.” Os sentidos alucinados revidam ou expulsam qualquer tentativa ou tentação formalista. Emerge uma espécie de razão perceptiva, que se nutre de contatos e enlaces inesperados. Quando ela deslinda e reprograma o real, é antes a percepção quem age.

Talvez se possa falar, ainda aqui, de uma razão apaixonada. A consistência da paixão aponta para a razão perceptiva, que inclui e desenvolve experiências furtivas e até chocantes. A paixão, saudavelmente impura, recusa o mundo objetivo tal qual ele se impõe e, ao agir sobre os entes, refaz o percurso e recupera o paradeiro da liberdade.

“A obra de Arte é uma criação de liberdade, de liberdade e de amor” – acrescenta Lygia Fagundes Telles, como quem retoca os termos de uma poética descontraída e aberta. Mas a liberdade, no seu afã de transpor os limites, deseja afirmar-se diante do tempo: esse animal narrativo, imperturbável e imprevisível.

Há uma explicitação no romance As Meninas, de alguma maneira ilustrativa: “– Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros, segurar as horas, por que é que o tempo não parava um pouco? Queria ficar lá dependurado, segurando o tempo.” A razão perceptiva parece tocar fisicamente no tempo, animada pela hipótese, mesmo que remota, de redução da sua velocidade.
   
IV
   
A narrativa de Lygia Fagundes Telles, as suas “ficções”, para lembrar o “memorioso” Jorge Luis Borges, são o tempo, o tempo todo. Sobretudo porque o tempo tem, é, a chave do sentido. E, motor da criação, a sua tarefa maior, o seu encargo prioritário, consiste em recuperar as ocorrências passadas ou gravadas na memória. Por isso, escrever é rememorar – rememoração direta e rememoração oblíqua e dissimulada, em virtude da qual o homem, mais que tudo a sua letra impressa, luta subversivamente contra o poder onipotente do tempo.

Os personagens envelhecidos, e tanto mais isolados quanto mais envelhecidos, desvelam a consciência dolorosa da fugacidade do tempo.
 
É assim em “Apenas um Saxofone”, no diálogo que se estabelece entre a narradora e a sala repleta de objetos antigos: “É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu.”

É assim em “Helga”:
   
Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. 
   
É assim também em “A Chave”: “Agora era tarde para dizer que não ia, agora era tarde.”

E assim por diante.

A narrativa de Lygia Fagundes Telles se estende como paisagem da rememoração e se autolegitima, a todo momento, como deliberação, vontade mobilizada de resgate do “mistério”. O mistério que se dessacraliza porque se confunde com a vida e avança como força propulsora da criação. E a outra face da medalha do tempo, que se concretiza no texto, nos domínios verbais do imaginário. E Lygia não deixa dúvidas, quando afirma: “É o texto que responde ao tempo. Este é o mistério da criação.” Daí, o seu investimento constante no resgate do mistério – a vida.

Estrutura da Bolha de Sabão, uma de suas mais bem realizadas histórias curtas, pode ser lida como metáfora do mistério, que se resolve pela paixão, tripartida entre a criação, o amor e a morte. Os olhos da paixão aumentam o mundo, mesmo porque as dimensões da paixão constituem o caminhar do mistério. Por isso, a criação vem a ser uma paixão paciente, movida pela “disciplina do amor”.

Mais uma vez criar, resgatar o mistério, é ganhar o tempo. A pertinência ficcional de Lygia Fagundes Telles jamais se furta em mostrar que a paixão nunca obscurece a visão, porque limpa e apura o campo visual, nos limites em que se movimentam, repousam ou se enervam, as nossas impacientes retinas.

Ao amor fica reservado o desempenho essencial, na medida em que nele se concretiza o encontro, a revelação do mistério, embora emaranhado na sua fugacidade irreversível. Se cada ser humano é um tempo particular, o desencontro termina sendo passagem obrigatória. O amor nasce ferido de morte. A finitude do amor desaba sobre a vida como uma espécie de fatalidade. Mas de qualquer modo, ferido ou combalido, é ainda o amor a fonte da vida. O olhar matizado de Lygia Fagundes Telles nos faz ver que não há outro roteiro para a salvação. Tudo o que quer o amor é se apossar do tempo, para vencer a morte e ganhar a vida.
 
Está bem claro que o discurso capaz de dar conta dessa astúcia, dessa desolação ou dessa ousadia, só pode ser o discurso vazado do realismo imaginário. Ele é ambivalente por excelência, aguçado pela crise do sujeito individual, na rota moderna que nos conduz das “ilusões perdidas” até a “era da suspeita” ou das “incertezas”. A mímesis recupera o seu vigor antigo e faz a opção do fantástico. “As formigas”, relato emblemático, se descolam da terra. Os anões, referência persistente, significam entidades fora do tempo – deslocadas: o meio caminho sem percurso.

É necessário reforçar a ação perceptiva com a ajuda da imaginação; deixar para trás o que seriam as pautas neonaturalistas, em função das quais o fantástico passaria ao largo da realidade, e o mistério seria um fator de perturbação da ordem narrativa. Na verdade, a vida, o mistério e o fantástico são termos correlatos, que se desgarrariam na apreensão empírica ou na prisão fatual. Na ficção, nunca. A criação quer de volta, refortalecido e diversificado, o mistério da vida.
   
V
   
Como surpreender o sentido da vida em meio à solidão? Como experimentar o desencontro, no corpo e na alma, sem se abandonar ao niilismo? As Histórias do Desencontro, que reúnem heróis destituídos, herdeiros deserdados, parceiros extraviados, inauguram, de modo insólito, a solidão acompanhada. Aquela solidão que aflora, dramática e ironicamente, no conto “Eu Era Mudo e Só”. “Mas, se é difícil carregar a solidão – diz a autora – mais difícil ainda é carregar uma companhia. A companhia resiste, a companhia tem uma saúde de ferro!”

A força da subjetividade confere um elevado estatuto ficcional a esses enredos partidos. Quando as lembranças projetam imagens da dissolução geral, os seres e as coisas registram os mínimos abalos. Os objetos são objetos do sujeito, porque nos primeiros estão cravados afetos e desafetos do segundo. O próprio espaço pode ser percebido como projeção da dor individual, moída pela roda enferrujada do tempo. Os objetos corroídos e desbotados, em tantos relatos evocativos, em “A Caçada”, precisamente, recebem toda a carga do tempo degradado. Daí o valor da juventude. “Antes do Baile Verde” é a alegoria da juventude, desdobrada sobre a recusa da morte e o convite auspicioso, vital, amoroso, da festa. “Apenas um Saxofone” é a exaltação da juventude, “a única coisa que existe”: a respiração que passa desapercebida até que se perturba. “Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar?”, fala a personagem. A juventude representa o tempo sem mediação, inconsciente e alado.

Persiste, velada ou explicitamente, a questão do sentido, da crise do indivíduo encarnado socialmente: persiste por entre as formas informais da subjetividade, que culminam nos fragmentos de A Disciplina do Amor. As narrativas abertas, os pedaços de textos infensos à conclusão, guardam a sua tragicidade ancestral. O sentimento trágico da vida advém da impossibilidade de ultrapassar o tempo e nos segue de perto, ao longo das diferentes etapas da modernidade. A própria compreensão do envelhecimento, sustentada pela antiga ideia da claridade e da nitidez, parece abrigar a visão épica do mundo. Daí a irreparável sensação de perda, a intensificação do jogo contrastivo que busca a saída para o impasse comunicativo. A saída somente poderia ser utópica. E o lugar real dessa utopia, dessa esperança concreta, dessa revelação do mistério, é a Literatura. Mas a Literatura de um escritor, de um criador de linguagens.
 
Quem se aproxima da rigorosa humanidade de Lygia pode compreender, sem se entregar ao biografismo fácil, o quanto a pessoa influiu no personagem. Influiu sem dirigir, sem subjugar os movimentos livres da cena. Influiu no alto teor ficcional, influiu na temperatura afetiva das reconstituições, influiu no exercício sem alarde, no exercício silencioso e pontual da solidariedade, que é, nos mínimos gestos reclusos, a façanha de um encontro ao mesmo tempo intelectual e humano.
 
Esta escritora radical, enraizada, que estamos recebendo agora – Lygia Fagundes Telles –, já pertencia, de há muito, à família espiritual do fundador desta Casa, não por acaso também conhecido como o Bruxo do Cosme Velho. É justo que a recebamos nesta noite, felizes e reconfortados. Reconfortados e felizes por sermos confrades de Lygia Fagundes Telles.
   

12/5/1987