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Discurso de posse

Apesar do bom conselho de Renan, que, pregando o recato necessário, aos mais fundos e fortes sentimentos, dizia não dever ter o coração senão a si próprio por espectador, quero vos dar testemunho do meu reconhecimento, pela indulgência com que me fizestes subir até vós, falando-vos com o coração nas mãos.

Falar-vos-ei, pois, com simplicidade. Com aquela simplicidade preconizada por Platão ao discípulo, que, recebido no Jardim de Acadêmio, lhe perguntavacomo agradecer. “Amigo, com simplicidade”, respondeu o mestre. Também assim, livre de qualquer artifício, desejo dirigir-me a vós nesta hora em que, graças à vossa generosa acolhida, me é dado colocar o meu modesto escudo ao lado daqueles com que tanto vos tendes distinguido nos serviços aos altos ideais de Cultura e de Beleza. Imaginai, pois, a emoção com que alcanço estas cumeadas perseguidas pelos meus sonhos. Emoção e humildade, permiti que vos diga, pois, ao par das minhas alegrias, também vive em mim neste momento intensa simpatia por todos aqueles cujos esforços e aspirações, embora elididos desta ou daquela forma pelo destino, constituem a base sobre a qual, na cultura de uma nacionalidade, se levantam os mais favorecidos. Faltaria, porém, à verdade se vos dissesse, como pôde fazê-lo Afrânio Peixoto ao transpor os vossos umbrais, que vejo consagrada a “minha ambição de criança”. Realmente, não me nasceu cedo a aspiração da Academia, do mesmo modo que não me foi precoce a ambição literária. Até porque dado o ambiente que me cercou a infância, e por mais que meu pai se desvelasse por afastar de mim o demônio da Política, foi esta que primeiro medrou, confundindo-se com a própria vida que começava a desdobrar-se aos meus olhos. Somente mais tarde, já às portas da Faculdade, e quando o Jornalismo deslumbrou a imaginação do adolescente, é que as boas letras começariam a interessar-me. Como a vida é sutil! O que eu acreditava ser o caminho largo para a Política levar-me-ia concomitante e irresistivelmente para o campo das Letras, que, bem ou mal, não mais pude deixar, tanto é certa a observação de Schopenhauer de que o homem nunca pode “querer o que quer”. Nem por outra coisa a escalada se me tem afigurado suave e breve, de modo tal que me permitiu aqui chegar sem precisar vos falar das fadigas da jornada, mas antes nos encantos com que me enlevou. É que, para me estimular e ajudar, sempre contei com aquela que jamais falta aos seus filhos, nos esforços da inteligência – a Bahia. A Bahia, fonte de toda a minha inspiração, e onde sei que, nesta hora, sincronizados com as minhas emoções, palpitam os corações de alguns amigos, que eu desejaria estreitar fraternalmente.

Bem mais recente ainda foi em mim a aspiração da Academia, na qual comecei a pensar timidamente, receoso de que me ficasse “curta nas mangas”, como diria Eça de Queirós.

Entretanto, tal a magnanimidade dos vossos sufrágios que aqui estou para suceder – e nunca para substituir – o sábio Miguel Osório de Almeida, na Cadeira em que os vossos fundadores fizeram inscrever o nome de José Bonifácio, o Moço, tão caro a quantos perpassaram aquelas páginas de eloqüência em que Rui Barbosa lhe exaltou as peregrinas virtudes do professor, do poeta, e do cidadão. Aliás, a própria história da escolha do ilustre patrono é bastante para se lhe avaliar a estatura. Ao instalar-se, em julho de 1897, a Academia não tinha completos os seus quadros: restavam cinco Cadeiras para preencher, e, para uma delas, foi convidado Medeiros e Albuquerque, a quem Joaquim Nabuco, ao tempo em que lhe indagava do nome do patrono, lembrou a lista dos grandes esquecidos: Alexandre de Gusmão, Torres Homem, José da Silva Lisboa, Porto Alegre, Odorico Mendes, Antônio Carlos, José Bonifácio, O Patriarca, e José Bonifácio, o Moço. Medeiros, de pronto, fixou-se neste último. Por quê? Admiração pelo poeta? Entusiasmo pelo professor?

Arrebatamento pelo orador? Nada disso. “Certa ocasião”, conta-nos o próprio Medeiros, de fato, nos longes tempos da Monarquia, fora eu ao Senado. Era a época da Abolição. A mocidade vibrava em prol da grande idéia redentora, à qual o trono imperial se opunha formalmente. Quando entrei no Senado, que nesse dia regurgitava, José Bonifácio estava com a palavra. Todos o ouviam em religioso silêncio, um silêncio que se poderia dizer majestoso e insólito. Nesse dia ninguém aparteava. As galerias, repletas de ouvintes, bebiam, também silenciosas, as palavras do orador. Cheguei. Entrei para o corredor junto ao recinto e fiquei ouvindo o discurso. Afinal, quando este acabou, vi o orador descer da tribuna no meio de uma explosão formidável de aplausos. Desceu apressado, extremamente pálido, mas com um olhar rutilante de energia. Alguém o tomou pelo braço e arrastou-o para o gabinete dos senadores. – Que queria dizer aquilo? José Bonifácio estava muito doente do coração. Seu médico lhe dissera que ele não podia tomar parte na discussão daquele dia. Se o fizesse, era até de temer que sucumbisse na tribuna.

Entrentanto, indiferente ao perigo, fiel ao ideal, José Bonifácio incediara a tribuna com labaredas da eloqüência. O episódio, no que tem de épico, gravar-se-ia na memória de Medeiros, a quem, por sinal, apenas desta feita seria dado avistar o autor de Rosas e Goivos, que, dias mais tarde, morria em São Paulo. Portanto, bem estais a ver, o patrono escolhido por Medeiros e Albuquerque não era o orador, não era o professor, não era o poeta – era o cidadão, no que ele tem de mais grandioso, que é a coragem de sacrificar-se fria e conscientemente pelos seus ideais. Realmente, que há de mais sublime e mais nobre do que essa marcha para a tribuna a cuja volta todos, inclusive o próprio orador, sabem adejar o anjo da morte? Para mim, a cena é daquelas que mostram ser a alma humana, por si só, quando verdadeiramente grande, maior do que todos os atributos que lhe possam dar o talento, a cultura, ou a inspiração.

Aliás, embora tenham as circunstâncias conspirado para que, trazido pelo deslumbrado Medeiros e Albuquerque, aqui entrasse pela porta magnífica da bravura cívica, o certo é que José Bonifácio também poderia, honrosamente, ingressar pelas da eloqüência, da Poesia, ou das letras jurídicas. De fato, em que pese ao juízo de Sílvio Romero e João Ribeiro, que, numa história literária composta de parceria, afirmaram “não ser o famoso paulista mais do que um orador acadêmico e um poeta de talento”, a realidade é bem diversa. Destinado à carreira das armas, em cujos segredos, dos quinze aos dezoito anos, chegou a enfronhar-se na Escola Militar, não lhe permitiu a saúde o término do curso. Transferiu-se, então, para os estudos jurídicos, e, em 1854, aos 27 anos de idade, aceitava a nomeação para lente substituto da Faculdade do Recife, iniciando assim a portentosa trajetória do professor, cuja memória ainda hoje se projeta como a de um dos maiores da gloriosa Faculdade de Direito de São  Paulo, que, para se honrar, lhe ergueu uma estátua. Do que foi, porém, a sua posição como guia de muitas gerações que passaram pelo famoso Convento de São Francisco, são testemunho aquelas palavras de Rui Barbosa, seu discípulo, e tantas vezes repetidas na glorificação do mestre:

Quando José Bonifácio assomou na tribuna, tive pela primeira vez a revelação viva da grandeza da Ciência que abraçávamos. A modesta cadeira do professor  transfigurava-se; uma espontaneidade esplêndida como a Natureza tropical borbulhava dali nos espíritos encantados; um sopro magnífico animava aquela inspiração caudal, incoercível, que nos magnetizava de longe na admiração e no êxtase.

E esse deslumbramento da mocidade como que se reflete por inteiro nesta frase tranqüila, mas nem por isso menos eloqüente de Castro Alves, que, chegado a São Paulo, escrevia: “Estou na Academia, ouvindo o grande Bonifácio.” Sem dúvida, dizia tudo. Não podemos nem devemos, porém, esquecer que, para realçar a figura do professor, havia a moldura do homem público, do deputado, do ministro de Zacarias, do senador, do abolicionista, e, talvez mais do que tudo isso, do político, que emocionara a Nação ao recusar o poder oferecido pelo imperador.

No Parlamento, deputado geral pela primeira vez em 1861, e senador em 79, por ocasião da ascensão liberal com Sinimbu, daria José Bonifácio largas à sua eloqüência, máxime na fase final, quando se tornou, no Senado, um dos campeões do Abolicionismo. “O grande orador paulista”, escreve Joaquim Nabuco, “aliava à palavra mais arrebatadora que em sua época se fez ouvir em nosso País a imaculabilidade do caráter”. E Joaquim Serra, patrono de uma das vossas Cadeiras, assim retrata o “morto  imortal”:

Quando aquela cabeça aparecia na tribuna do Parlamento, como um globo de luz, aquela alma afinada no mais puro patriotismo desdobrava-se com a transparência de uma aurora. Ninguém teve entre nós tamanha magia na eloqüência, e nunca astro da eloqüência alçou-se àquela culminação.

Eram aquelas alturas invocadas no elogio de Rui Barbosa, e das quais se despenhava a palavra de José Bonifácio, a bater de fraguedo em fraguedo, a estrugir de quebrada em quebrada, a chispar de aresta em aresta, a iriar-se de raio em raio do sol, até se espraiar, estuando, na imensa bacia de sua foz.

Ao “eco sonoro”, onde fielmente repercutem todos os ruídos do universo, comparou Vilor Hugo o coração do poeta. Não admira, pois, que no coração de José Bonifácio, que nascera poeta – Poeta non fitsed nascitur –, tivesse repercutido tão fortemente a Abolição, nota final e grandiosa da sua eloqüência. De fato, desencadeada a campanha de abolição, que toma corpo ao iniciar-se a década de 1880, vem ele juntar-se, posteriormente, ao movimento. E o faz com tal brilho e intensidade que Nabuco, ao dar o balanço daqueles dias históricos, não se exime de afirmar que a adesão de José Bonifácio à idéia abolicionista “foi um contingente igual à libertação do Ceará”. Que força não teria aquele verbo para ser equiparado à incorporação de toda uma província à causa da liberdade? “Sua palavra”, escreve Pujol numa síntese, “cristalizava todas as maravilhas e todas as vibrações da natureza”.

Mas, das múltiplas facetas por que se afirmou a privilegiada inteligência do neto do Patriarca, não foi das menos belas a da Poesia, que trouxe do berço. É certo que, no Diálogo sobre os Oradores, ao comparar a eloqüência com a Poesia, escreveu Tácito que os frutos propiciados por esta se limitam apenas “a um prazer breve e a louvores frívolos e estéreis”. Não será o caso de José Bonifácio, cujos versos, acredito, sobreviverão de muito aos seus discursos. É que, malgrado a opinião de José Veríssimo, que o chamou poeta diletante, o “poeta do amor e da saudade” viverá sempre, nas Letras brasileiras, pela beleza, inspiração, harmonia, e, em alguns casos, a força dos seus versos. Aliás, tendo vivido numa época em que a composição literária era considerada tudo, menos trabalho, máxime trabalho em busca de remuneração, não sei como pudesse José Bonifácio deixar de ser um poeta diletante. O epíteto, por sinal, faz-me lembrar aquele episódio narrado por Artur Azevedo, que, estando numa roda a se queixar do quanto necessitava trabalhar para ganhar a vida, nos diz que um dos presentes, homem maior de cinqüenta anos, bem trajado, sabendo ler e escrever corretamente, sorriu, teve uma leve inclinação de cabeça, e replicou incontinenti: –Deixe lá! O sr. não trabalha tanto assim, pois vejo que ainda lhe sobra tempo para fazer folhetins, comédias e revistas!

Ao autor de Rosas e Goivos, em meio aos seus trabalhos e lutas, também sobrou tempo para fazer versos. Nem podia deixar de ser assim, se cantar era o seu destino. Ele próprio escreveria estes versos dedicados A um Poeta – Castro Alves:

Poeta – é teu condão cantar no mundo.
Deus fadou-te ao nascer:
Passarás como o cisne em lago d’oiro
Cantando até morrer.

Compreendeis, portanto, a razão que me assiste ao asseverar que José Bonifácio, se entrou para a galeria dos vossos patronos como um belo e imenso exemplo de civismo, segundo a confissão de Medeiros e Albuquerque, também não forçaria as portas se ingressasse como um dos cimos da Poesia, da oratória, ou do magistério, no Brasil. Tanto melhor, porém, que ele haja vindo como veio, isto é, pela pureza do caráter e a força do patriotismo, traços inconfundíveis da sua desprendida personalidade. Que poderá haver de maior, de mais nobre, e de mais belo na vida de alguém do que se imortalizar por um civismo imaculado? “O coração mais nobre, que jamais pulsou em peito de homem”, diria dele Joaquim Serra. E Machado de Assis, tão acusado de frio e parco nas suas expansões, não se furtou a compor estes versos, por ocasião da morte de José Bonifácio, a quem tão bem conhecia do Senado Imperial:

Caro e vibrante espírito, caíste!
Não ao peso dos anos, mas ao peso
Do teu amor à vossa pátria amada!
E ela, que fica desvairada e triste,
Cora, lembrando o verbo teu aceso,
Filho de Andrada, e portentoso Andrada!

Sinal de que o tímido e distante Machado de Assis também se deixara conquistar por aquele cavaleiro do ideal, que, na cátedra, inflamara e arrebatara a juventude. Não concluirei, porém, esse rápido perfil, mero esboço da figura do gigante, sem lembrar aquela imagem com que Joaquim Nabuco, depois de resumir a ação do idealista, assim se refere à atuação de José Bonifácio na vida pública brasileira:

O que deixa, sim, em nossa política, é um deslumbramento, como a passagem de um novo Lohengrin, cujo verdadeiro nome só se revelará em 1885 e 1886 nas lutas da Abolição, no Senado, quando o cisne que o trouxe aparece de novo para levá-lo.

E já estava às vésperas de partir quando Medeiros e Albuquerque, na ocasião um adolescente, guardou para sempre a imagem e a bravura do orador, que, na defesa dos seus ideais, arriscava a própria vida. Aí tendes, senhores, a singular figura de José Bonifácio, a quem chamaram de “majestoso e olímpico”, em boa hora escolhido por patrono da Cadeira que Medeiros tanto enalteceu durante cerca de quatro décadas. A escolha, se honra quem a fez, mostra também de logo o temperamento entusiasta de Medeiros, que, ante a grandeza e a superioridade, seguia o conselho de Schiller: admirava-as! Quantos, porém, tem força para externar o louvor pela obra alheia? Medeiros, no entanto, teve uma imensa e generosa capacidade de admirar. Foi nisso belo e limpo de alma. E, se não me é dado, agora, pela escassez do tempo, apreciar a vasta obra do polígrafo – romancista, poeta, contista, crítico, jornalista –que durante quase meio século mourejou nas Letras nacionais, enriquecendo-as, desejo, pelo menos, trazer um tributo de admiração pelo homem que teve a ventura de não conhecer a inveja ou o despeito, que deformam e atormentam a perspectiva dos que se não  desvencilham desses venenos. E que trabalhador infatigável! Entre as muitas idéias semeadas por Nabuco, no formoso discurso em que buscou traçar os rumos da Academia, está aquela com que nos escusa, graças a Deus, de produzirmos incessantemente.

Alguém fez uma bela obra? Admiremos a obra e deixemos o autor viver com toda a gente; não o forcemos, querendo que se exceda a si mesmo, a refazerse, uma e mais vezes, a viver a sua reputação, diminuindo-a sempre. Não o condenemos à série, deixemo-lo desaparecer na fileira depois de ter feito uma brilhante ação como o soldado.

A frase, evidentemente, não se fez para Medeiros, que jamais precisou dormir sobre os louros tão cedo conquistados. Continuou sempre a trabalhar e a crescer, pois era desses que podem produzir muito sem abaixar o valor da própria obra. E, modestarnente, com entusiasmo, animava os outros a elevarem-se ainda mais. Certa feita, justamente na época em que estavam no auge as discussões suscitadas pelo futurismo, dizia: “Subam os moços; nós aqui estamos para lhes mostrar, não o máximo, mas o mínimo a que podem atingir.” Felizes, porém, os que alcaçarem chegar tão alto quanto Medeiros e Albuquerque.

Aliás, embora subisse tanto, Medeiros e Albuquerque., que estudou Medicina e possuía inteligência extremamente curiosa, não perdeu nunca o gosto pela Ciência. Ciência desordenada, cultivada em horas vagas, e que tanto fazia dele o cultor sensacional do hipnotismo quanto o primoroso precursor da divulgação da doutrina de Freud, no Brasil. Nem são de esquecer as invenções com que obteve algumas patentes em Paris e Nova Iorque. Delas,ele próprio nos deu conta num dos capítulos das suas Memórias e, para acrescentar um traço a esse breve perfil, será oportuno lembrar o prazer com que se gabou de haver idealizado, em 1918, um engenho baseado no príncípio dos motores-foguetes, e que, para a imaginação de Medeiros, tornaria coisa sem sabor de novidade os nossos espantosos aviões a jato.

Era assim Medeiros e Albuquerque. um grande homem de letras a fazer incursões de amador pela Ciência.

Ao empossar-se nesta Cadeira que tão cedo deixou, dizia Miguel Osório de Almeida não saber a que devia a sua eleição:

Se ao romance que se encontra em toda a obra de Ciência, mesmo a mais severa e árida, se à Ciência e experiência que se acham em todo romance ou obra de imaginação.

Naturalmente não desejava ser juiz em causa própria. Entretanto, para opor à dúvida por ele modestamente suscitada, não encontro melhor resposta do que aquelas palavras que proferiu Renan na Academia Francesa, ao preencher-se a vaga de Claude Bernard:

Não foi o fisiologista que escolhestes, senhores; nas eleições dos sábios ilustres,é o próprio homem, ou, em outras palavras, o escritor que ides buscar. A inteligência humana é um conjunto tão bem ajustado em todas as suas partes que um grande espírito é sempre um bom escritor.

Por certo, fora bem esse o caso de Miguel Osório, em quem a marca do escritor e do artista era tão viva que jamais se deixou ofuscar pelos labores do cientista ou as eruditas lições do professor. A bem dizer, tudo constituía a luz do mesmo sol, e tal circunstância não permitia as sombras que realçassem esta ou aquela faceta da admirável inteligência. Razão tinha ele, no entanto, ao nos falar do romance que existe em toda a obra de Ciência. Romance que escapa aos olhos profanos, mas que podemos imaginar ou entrever se nos voltarmos para a existência daqueles que, nos vários departamentos da atividade e do conhecimento humano, se têm deixado fascinar pelas aventuras em busca do desconhecido. Realmente, o desconhecido é sempre o desconhecido e há milênios que o homem, levado por curiosidade irresistível, tenta desvendá-lo, sejam quais forem as formas por que se apresente. Uns buscam novos mares e novas terras; outros devassam os céus à procura de astros, estrelas ou satélites; e não faltam os que consomem a existência em busca do muito que ainda ignoramos da vida, nas várias formas por que se apresenta aos nossos sentidos. E todos, irmanados nessa bendita e inexorável atração do desconhecido, experimentam os mesmos prazeres da descoberta. Ao dobrar o Cabo das Tormentas, limite máximo a que podia atingir a audácia humana ante as concepções de Ptolomeu, a emoção de Vasco da Gama não devia diferir da experimentada por Galileu ao reconhecer os satélites de Júpiter. E Lavoisier, ao fixar as leis da respiração, ou Pasteur, ao divisar todo o mundo microbiano, estavam dominados por uni sentimento comum de perseguição ao ignorado. Da mesma forma que Colombo, Newton ou Harvey, cada qual num campo inteiramente diverso, agem sob o impulso de ambição idêntica. Ambição que é um misto de curiosidade, isto é, o desejo de ver o que outros ainda não viram, e de dúvida, que é a inconformidade ante o que em dado momento representa a verdade. Em suma, buscam ampliar a verdade que existe, ou substituí-la por uma nova, que os fascina.

Ao agradecerem o Livro de Homenagem, tributo de amigos, professores e discípulos a mais de trinta anos de exemplar dedicação à Ciência, lembraram os eminentes Álvaro e Miguel Osório de Almeida, numa evocação do lar privilegiado em que nasceram, o ambiente no qual “a cultura intelectual, ao lado da intransigência do caráter, e o grande respeito pelo trabalho, ocupava o primeiro lugar”. Não admira, pois, que bem cedo fossem ambos seduzidos pela Ciência, que a eles se apresentou sob o signo da fisiologia. O primeiro a anunciar o surpreendente propósito – o que parecia temerário, se não absurdo – foi o Sr. Álvaro Osório de Almeida, que, em 1906, diplomado em Medicina, partira para completar os seus estudos no Instituto Pasteur, em Paris. Voltara inebriado pela Fisiologia. E não tardou que, no modesto porão da casa da Rua Almirante Tamandaré, residência do casal Gabriel Osório de Almeida, começasse a ser instalado, com a generosa ajuda da Cândido Gaffré, o laboratório, cuja lembrança está hoje, inegavelmente, associada à história da Ciência no Brasil. Miguel Osório, mais moço, logo lhe seguiu os passos, muito embora chegasse a matricular-se no  curso anexo da Escola Politécnica. Assim, tal como uma das personagens do seu romance, não seguiria a carreira do pai. “Afinal todas as profissões eram belas e nobres  quando se trabalhava com afinco”, escreveria mais tarde. E não é essa, mais ou menos, a observação de Pasteur, em plena adolescência? “Quase sempre também o trabalho  tem o êxito por companheiro”. De fato, quando, passada aquela fase inicial de surpresa e incredulidade, se soube da publicação dos trabalhos dos irmãos Osórios em  revistas científicas estrangeiras, colheram eles os primeiros louros. Ainda não era a glória. Mas, já as brumas da desconfiança dissipavam-se tangidas pelo entusiasmo  e a inteligência dos pesquisadores.

E, durante mais de quatro décadas, alargando-a cada vez mais, graças à experiência e aos conhecimentos acumulados, trilhou Miguel Osório a estrada escolhida numa hora que se diria de irreflexão da mocidade. Viveu assim o seu romance, o romance do cientísta e do pesquisador a cujos olhos as simples reações de uma rã a que retirou os labirintos se apresentam como novos mundos desvendados nos seus segredos. Não é essa a alma e também o segredo do cientísta, que Faraday, numa definição citada pelo Sr. Tales Martins, assim retrata?:

O cientista deve ser um homem acessível a qualquer sugestão, mas determinado a pensar por si mesmo. Não influenciado pelas aparências, nem renitente em hipóteses favoritas, nem pertencente a nenhuma escola. Em doutrina, não admitir mestre. Não respeitar pessoas, mas só obras; a verdade deve ser o seu objetivo primário. Se a todas essas qualidades acrescentar pertinácia, então poderá ter esperança de atravessar um dia a cortina que vela o templo da Natureza.

Assim, como se está a ver, deverá situar-se num ponto de equilíbrio que, ao mesmo tempo, lhe permita ter fé nas verdades a descobrir e duvidar daquelas que encontra  consagradas. Nem deve possuir o dogmatismo de Pouchet, o célebre contraditor de Pasteur, nem se pode deixar enlear pelas sutilezas dos céticos. Destes estou mesmo a lembrar-me de Anatole France, tão do agrado de Miguel Osório, e que, pela boca de Jérôme Coignard, assim falava da Ciência a Tournebroche:

Os mais doutos entre nós apenas diferem dos ignorantes pela faculdade que adquirem de se divertirem com erros múltiplos e complicados. Eles vêem o universo num topázio  lapidado em facetas em vez de vê-lo, como vossa Mãe, por exemplo, com o olho todo nu que o bom Deus lhe deu. Mas, eles não mudam de vista ao se armarem de lentes; não mudam as dimensões usando aparelhos próprios para medir o espaço; não mudam os pesos pelo emprego de balanças muito sensíveis; eles descobrem novas aparências e são por aí o joguete de novas ilusões. Eis tudo!

Benditas ilusões, senhores, que têm feito a humanidade progredir incessantemente através dos séculos. Não exagero se disser que, não sendo nada, elas são quase tudo.  Miragens, sonhos, ilusões... que importam se é por elas e com elas que o homem tem encontrado energia e estímulo para a sua permanente ascensão? Para assinalar a longa  caminhada da nossa espécie, lembra Henri Poincaré a posição do homem há alguns milhares de anos, quando, isolado em meio a uma Natureza onde tudo para ele era mistério, e vendo os fatos do universo como a conseqüência de alguma vontade caprichosa, atribuía todos os fenômenos à ação de pequenos gênios fantásticos e exigentes com os quais buscava “conciliar-se por meios análogos aqueles que se empregam para alcançar as boas graças de um ministro ou de um deputado”. Realmente, somente  descobertas as leis que presidem à mecânica celeste ou explicam meros fenômenos de todo dia, começou o homem a libertar-se da inquietação com que o atormentavam  aqueles deuses caprichosos. Às primeiras leis da Astronomia vieram juntar-se outras da Física, da Química e da Biologia, concorrendo para que se alargassem cada vez  com mais segurança as perspectivas do homem sobre o Universo. E que foi isso senão o esforço, o trabalho de homens que duvidaram do que encontraram, e acreditavam no  que ainda procuravam?

Homens que buscaram a verdade, e entre os quais, em tão boa hora, se alistou o sábio Miguel Osório de Almeida, para quem o desconhecido era “o domínio próprio do pesquisador”. “Um domínio fictício, irreal, cujas leis e cujas regras não se acham escritas, e ainda ignoramos”, conclui o ilustre fisiologista, que bem devia saber por que motivos citava esta frase de Wagner, que retiro de um dos seus ensaios: “Aquele que não for dotado por uma fada, desde o berço, do espírito de descontentamento de tudo o que existe, nunca chegará à descoberta de coisas novas.” Mas, já que me tem sido dado falar da verdade, ou melhor, da busca da verdade como o objetivo dos cientistas, não é inoportuno assinalar a distância que os separa dos filósofos. Enquanto estes correm atrás de uma verdade que deverá ser total e definitiva, aqueles,  talvez mais modestos, contentam-se com uma verdade que sabem parcial e precária, mas nem por isso menos exigente. “Ah! essa inexorável verdade!” – escreve Miguel Osório. “Que sacrifícios ela impõe à vaidade, ao amor-próprio! Que humilhações ela faz sofrer! Mas, ela é a verdade, tudo o mais desaparece diante dela e só tem a  genuína alma de sábio quem assim a considera.”Conceito que, mais tarde, num artigo sobre “Filósofos e Cientistas”, ele assim completaria:

O calmo e tranqüilo pesquisador científico é um mutilado, de nascença, ou faz o sacrifício voluntário de belas e importantes partes de sua personalidade. Para  adaptar-se às condições de sua tarefa, ele se priva de uma boa porção de sua atividade criadora. Desiste de conhecer a Verdade, convencido previamente ou forçado a  admitir, depois de inúmeras desilusões, que ela é inacessível, para se contentar em descobrir pequenas verdades parciais, fragmentárias, que o acabam satisfazendo, ou  são úteis e necessárias.

Nem por isso, entretanto, essa verdade que concebia como “essencialmente móvel, elástica”, e “em permanente evolução”, se lhe afigurava menos bela. Tanto assim que  dizia, dirigindo-se aos seus alunos da Escola de Veterinária:

A vós que começais, eu peço portanto: amai as nossas verdades atuais como organimos cheios de vida, exuberantes na sua força e fecundos nos seus ensinamentos. Mas, eu vos lembro, evitando assim uma amarga desilusão, fatal para muitos insuficientemente esclarecidos, de que momento para outro elas poderão desaparecer. Não as amaldiçoeis então, como usurpadoras de uma posição que não lhes competia. Fomos nós que, em momentos de mal contido entusiasmo, levianamente quisemos lhes atribuir uma imortalidade que não lhes era própria. Elas são, por natureza, efêmeras, e por isso mesmo são essencialmente belas. Na frase do poeta, não é belo só o que é efêmero?”

Nesses pensamentos, que propositadamente citei com largueza, vemos nítido o perfil do apaixonado pela verdade científica, e, mais do que isso, do homem que meditou profundamente sobre o fato científico. Não se acredite, no entanto, que, dedicado a pesquisas, que tanto o enlevaram e elevaram, deixou de ter olhos para ver o mundo, a vida que lhe corria em derredor, e além dos limites do laboratório. É que nisso não foi como dizia ou queria Claude Bernard, pai da moderna Fisiologia, e para quem o fisiologista não é um homem do mundo: é um sábio, é um homem absorto por uma idéia científica que persegue; ele não ouve mais os gritos dos animais, não vê o sangue que corre, não vê senão sua idéia e não percebe senão organismos, que lhe escondem problemas que deseja descobrir.

Não, Miguel Osório não era assim. Não somente a sua inteligência era muito grande e inquieta para se conter exclusivamente nas fronteiras da Fisiologia, mas também suficientemente clara para compreender os seus transbordamentos. Dominado pelas “grandes inquietações de um espírito ansioso, que tanto torturaram minha mocidade”, diz-nos o próprio Miguel Osório, nele cedo se arraigara “um ideal de cultura, de saber, de criar as bases para um desenvolvimento intelectual e moral para o País e  para a humanidade”. Por certo, a aspiração era ampla demais para caber num puro ideal científico. Aliás, ele o reconheceu nesta página, que tomo como uma confissão intencional:

Entretanto a Ciência não é tudo e não pode tudo no mundo. No fundo, ela prepara para a ação e fornece-lhe os meios, mas no cria os motivos de ação. Admirável como instrumento, é limitada em extensão. O homem tem em si aspirações pouco definidas e de uma força incrível, que escapam à intervenção direta da Ciência.

Sinal de que a alma do cientista conservava janelas abertas para a vida, e por elas continuava a ouvir os gritos dos animais e ver o sangue vertido no curso das experiências. Não sei e esse desvio do modelo idealizado por Claude Bernard representou brechas na armadura do cientista. Mas, o que não tenho dúvida em afirmar é que serviu para mantê-lo em útil contato com o mundo, e multiplicar-lhe a força de expressão, que se cristalizou em tudo quanto disse ou escreveu. Além do que ele próprio parecia ter consciência disso ao proferir, aqui mesmo, estas palavras tão límpidas e felizes:

Os homens de ciência de minha geração cedo compreenderam a impossibilidade de isolamento no qual se compraziam. Se há sábios apaixonados pelas pesquisas, que a tudo preferem os quase inacessíveis domínios das idéias e conhecimentos, outros nunca de todo perderam o contato com o mundo ativo e sofredor. Os primeiros são anacoretas  para os quais não existem tentações fora do deserto; em lugar do areal adusto e ressecado, sob sol escaldante e esterilizador, encontram a sombra de frondosa árvore, os olhos se deleitam na contemplação de rica e luxuriante floração, os ouvidos percebem o rumor sussurrante das idéias a esvoaçarem, aladas e puras, à procura da cabeça dos eleitos. Os segundos, mesmo quando nesse deserto, têm ao ouvido o eco das vozes humanas, raramente alegres, o mais das vezes elevadas em lamentos e não raro em imprecações.

Não se imagine, porém, estar aí a prévia desculpa do cientista, que, por não ter feito tudo quanto podia fazer, deseja justificar-se ante a posteridade. Longe disso, ninguém terá trabalhado mais, pesquisado mais, produzido mais, do que Miguel Osório. Mais de trezentas publicações científicas lhe atestam o labor insano, e que somente poderia ser suportado por quem verdadeiramente amasse a sua Ciência, tanto é certo que a paixão, seja qual for a sua forma, costuma tornar leves os fardos que impõe. Não é, porém, pelo número ou pela extensão que lhe devemos avaliar o mérito, mas, precipuamente, pela originalidade e excelência do que produziu, e que o imortaliza no campo dos conhecimentos humanos. Nem foi por mero elogio, mas por verdade rigorosa, que o eminente Sr. Roquette-Pinto assim se exprimia ao receber nesta Casa o Sr. Miguel Osório: “Tendes sido o exemplo da vossa geração, arquiteto de edifícios biológicos complexos e úteis, alguns belos e poéticos.” E acrescentava pouco adiante:

O caráter dos vossos trabalhos de fisiologia experimental é definido pelo arrojo das concepções, segurança da técnica, quase sempre criada por meios próprios, a tenacidade com que perseguis a verdade que se esconde ou negoceia,quando no determinismo das indagações aproveitais recursos precisos, inclusive os do simbolismo matemático.

Mas, até atingir a esses páramos, quantas decepções, quantos sofrimentos. Nem podemos olvidar que, ao ouvir a voz do irmão mais velho, que o convocava para a árdua ida de cientista, escolhia Miguel Osório um ramo de atividade quase inexistente no País. De fato, em matéria de Ciência talvez não se pudesse falar senão do Instituto de Manguinhos, que mal dava os primeiros passos. E, se nos voltássemos para a Fisiologia, nada parecia se haver acrescido ao que deixara o inditoso Louis Couty, morto aos trinta anos, em 1884. Tudo faltava. E, mais que tudo, esse apoio moral, esse estímulo generalizado da sociedade que dão energia para arrostar as dificuldades e vencer os obstáculos. Vira-se, assim, confinado em uma “atmosfera asfixiante, em um ambiente de pequeninas, mas constantes hostilidades”. Era doloroso. E, como se fosse advertência, grito, protesto do homem cortado na própria carne,escreveu ele estas palavras amarguradas sobre a sorte dos homens de ciência no Brasil:

Só quem possui uma organização de uma rijeza a toda prova resiste ao mesmo tempo às dificuldades materiais e a esse ceticismo dissolvente, a essa descrença destruidora de todas as energias. Como se defender sempre vitoriosamente contra essas doses de veneno inoculadas a todo momento? É aqui um sorriso de incredulidade, ali um olhar de compaixão, mais adiante alguém considerando com pena a falência da carreira que poderia ter sido feita, enfim a demonstração, aparentemente lógica, da inutilidade  de uma vida consagrada às coisas de espírito.

Triste? Certamente. O admirável, porém, e que mostra a força da paixão do cientista, é haver em seguida, e apesar de tudo, assim concluído:

Mas ainda mesmo nas condições atualmente existentes no Brasil, a vida científica é bela. Ah! Isso eu posso vos garantir! Desprezados e esquecidos, ou cercados de  honras, tudo isso, na realidade, não tem a menor importância para os homens de ciência. Eles encontram em seus trabalhos uma fonte inexaurível de emoções, de encantos, de esperanças e de desenganos, de alegrias e de dores. Eles vivem intensamente, dessa forma de vida, grande, elevada, digna, pura, diante da qual todas as agitações, todas as grandezas ou misérias sensíveis são um nada: a vida interior. A Ciência é dos caminhos que conduzem a esse retiro, refúgio inviolável, intangível, onde a alma  se retempera de todas as fadigas. Eles trabalham na construção de alguma coisa de eterno, de imortal, que não se sabe bem o que vai ser, mas cuja natureza, quase sagrada, é perceptível e não nos engana.

Realmente, para os que a amam verdadeiramente, a Ciência tem belezas que fazem esquecer todas as asperezas da escalada. Não uma beleza sensível, pois escapa a todos os  sentidos, mas, uma “beleza intelectual”, e que bem podemos compreender neste pensamento de Poincaré: “O sábio não estuda a Natureza porque seja útil, mas porque nisso  encontra prazer –, e encontra prazer porque é bela.” Não é também o que nos ensina o grande infortunado cientista nacional, o Sr. Amoroso Costa? “O valor supremo da  Ciência não é seu valor de utilidade prática, nem mesmo o seu valor de verdade, é o seu valor de Beleza”. Por certo somente os eleitos – e os eleitos são sempre poucos – poderão perceber e compreender essa beleza apenas vista pelos olhos do espírito, mas nem por isso menos verdadeira e sedutora. E, dentre aqueles poucos, foi o Sr. Miguel Osório, sem favor, dos maiores: nas harmonias da Natureza, viu coisas que, antes, a ninguém tinha sido dado ver.

Não preciso revestir-me de falsa modéstia para proclamar o quanto me falta para analisar, e, em certos casos, até para compreender, uma obra científica como a de

Miguel Osório, cuja apreciação requer fundos conhecimentos de Matemática, de Física e de Biologia. Contudo, não devo deixar de mencionar aqueles seus trabalhos de maior repercussão universal e com os quais tanto enalteceu a inteligência e a cultura da nossa Pátria. É que, embora conservasse abertas para a vida aquelas janelas da alma de que vos falei, o cientista esteve sempre presente, se não dominante, na extraordinária personalidade do artista, do escritor, e também do virtuose do piano, apaixonado por Wagner, segundo ele “o gênio incomparável”. O cientista, que tanto gostava de contar ou saborear uma anedota, entre duas complicadas e difíceis experiências sobre a respiração, quanto de executar um trecho de Beethoven, depois de haver cruelmente escalpelado uma pobre rã, jamais se deixou vencer. Embora sem chegar aos extremos daquele Brown-Séquard, por ele próprio referido, que viajava acompanhado de cobaias a fim de não interromper as suas observações, Miguel Osório foi sempre um pesquisador infatigável. E, melhor do que isso, o pesquisador a que não faltou o sal do filósofo. Por isso mesmo, viu muito, viu longe, e meditou ainda mais. Não admira, pois, que desse conjunto desabrochasse o grande cientista, dentre cujos trabalhos há logo que ressaltar aquele sobre o tônus nervoso e com o qual desvendou mais uma das sabedorias da Natureza, que, previdente, nos conserva em permanente estado de alerta, com nervos e músculos sempre afinados, prontos para a ação, até nos instantes que se diria de maior relaxamento. A nossa consciência pode ser surpreendida:nunca, porém, o nosso inconsciente, que, para o manter em estado de eterna vigilância, tem por si, além do mais, a pele com tudo quanto ela possui de maravilhoso como captadora das excitações suscitadas pelo ambiente. Decorrência dessas investigações, hoje universalmente consagradas, é a teoria da excitação, ou estado de excitação prelúdio da famosa e complexa teoria matemática e físico-química da excitabilidade nervosa, tão séria e original que valeu ao autor o ambicionado Prêmio Sicard, que a Faculdade de Medicina de Paris concede de dois em dois anos ao melhor trabalho produzido, no mundo, nesse lapso de tempo. Não seria o bastante para a glória de um cientista?Igualmente valiosos foram os estudos e descobertas em torno da crioepilepsia, e com os quais, graças à técnica inteiramente nova, logrou realizar o que Brown-Séquard tentara desde o meado do século passado, e abrir caminhos ao estudo funcional do sistema nervoso central, bem como da farmacologia. De fato, dotado da paciência peculiar aos grandes amorosos, livre de todos os laços do preestabelecido, cheio de curiosidade científica, Miguel Osório, durante largos anos, deleitando-se em desvendar alguns desses segredos avaramente guardados pela Natureza, teve a sua privilegiada inteligência voltada para a pesquisa de novas verdades imaginadas ou entrevistas pelo sábio. Não concluirei, porém, essa breve referência a alguns dos trabalhos do eminente pesquisador sem mencionar os que efetuou sobre a fisiologia do labirinto, e nos quais, ainda uma vez, revelou o mesmo espírito original, ágil, pertinaz, e por isso mesmo apto a vencer os obstáculos antepostos aos objetivos que desejava atingir.

O que, porém, jamais o abandonou, e bem lhe caracteriza os trabalhos, foi o total desinteresse, que se refletia não somente no desapego às vantagens de ordem material, mas também na indiferença aos aplausos e glórias. Fêz Ciência pela Ciência, e os seus estudos nunca se subordinaram a outra hierarquia que não fosse a das suas  tendências em determinado momento, alheio à solução de qualquer problema de imediata aplicação ou utilidade. Certamente, sabia da existência de homens práticos, que ostensivamente desprezam as preocupações desinteressadas da Ciência pura, declarando-as inúteis e vãs, e proclamando sonhadores inofensivos os que a elas se dedicam; e homens de ciência artistas que desprezam por completo as aplicações práticas, considerando-as nocivas e perniciosas.

Os primeiros, conclui o próprio Miguel Osório, não compreenderam a Ciência, os segundos nada compreendem da vida. Situou-se assim entre os que não conseguem demarcar fronteiras entre a Ciência pura e a Ciência aplicada, que afinal não são senão uma única e mesma coisa: a Ciência. E, se dentre os seus numerosos trabalhos não se  conta algum que tenha, de logo, debelado uma dor, extinguido uma enfermidade, ou estancado alguma epidemia, que podemos saber nós da utilidade que terão amanhã para  tornar o homem menos sofredor ou mais longevo? O que hoje se afigura inteiramente sem utilidade prática, não raro alcança amanhã os altares do reconhecimento  universal. E, por vezes, aquele que busca determinado objetivo vem a encontrar aquilo de que jamais cuidara.

Do primeiro, caso é flagrante exemplo o estudo das seções cônicas pela Escola de Alexandria, e que dir-se-ia mera especulação para recrear o espírito. Realmente, só o transcurso de séculos fez que idéia aparentemente tão abstrata viesse a ser o fio da meada para o conhecimento de medidas astronômicas, que se tornaram, na época, o norte e a segurança dos navegantes. Do segundo, nada mais eloqüente do que os trabalhos de Pasteur sobre certa doença dos bichos-da-seda, e com os quais ele, que não era médico nem veterinário, revolucionou a Medicina até aos nossos dias. Por tudo isso, o essencial, para se avaliar uma obra científica, não está em saber-se da sua utilidade imediata, mas da contribuição que representa no desvendar novas verdades, e portanto novos caminhos. Até porque os degraus pelos quais se alcançam os descobrimentos de maior beneficio imediato, são, em regra, aqueles que parecem mais vãos, mas sem os quais não se construiria a escada do progresso humano. Como desvendaria Galileu o mundo celeste sem as lentes, que outros haviam descoberto? Qual a sorte da astronomia de Aristóteles, o mais perfeito dos sábios da Antigüidade, sem as observações dos caldeus recolhidas por Alexandre? Daí poder dizer Challaye, referindo-se à Ciência, que, “quanto mais desinteressada no presente, de maior utilidade será capaz no futuro”.

O certo é que, através de uma grande e nobre vida de cientista – e nisso não faço mais do que repetir o depoimento uníssono dos seus contemporâneos –, logrou Miguel Osório, com a sua clara inteligência, não apenas edificar alguns dos degraus destinados a elevar o homem, mas também, e sobretudo, legar aos discípulos, que foram tantos e que tanto o admiraram, um raro e belo exemplo de amor à Ciência pela Ciência.

Contudo, tão inquieta e viva lhe era a inteligência que não se pode confinar entre as paredes do laboratório. E, enquanto era ele próprio a personagem desse romance que nos disse haver em toda obra de Ciência, quis também escrever um romance que fosse a expressão de alguns dos seus sentimentos e observações. Deixemos que nos conte essa aventura:

De uma feita, porém, prestei maior atenção a vozes que pareciam reclamar alguma coisa além dessa contemplação de abstrações e transcendências:um consolo, amparo para dores mais humanas, imediatas, e, enquanto no laboratório passava horas fazendo medidas rigorosas e complexas, eu porfiava no afã de resolver equações destinadas a traduzir, em termos precisos, as manifestações visíveis da realidade obstinadamente oculta, em casa deixava correr a pena em pálidas tentativas de exprimir as angústias de algumas almas sem abrigo. Quando tudo acabou, aos fisiologistas apresentei uma teoria matemática e físico-química da excitabilidade; aos amigos mostrei duas ou três centenas de páginas.

Era o seu romance, que intitulou de Almas sem Abrigo, e ao qual, pelo que têm de autobiográfico, talvez se aplicassem aquelas palavras com que se referiu a Medeiros e Albuquerque:

Intencionais talvez não fossem, mas o escritor não fugia à regra: atribuir a seus personagens idéias e sentimentos, aspirações e atitudes, impressões e lembranças que lhe pertencem.

Em verdade, não era o romance o forte de Miguel Osório, que, ao tentá-lo, como que nos quis apenas mostrar de quanto era capaz a sua poderosa inteligência. Nos ensaios, sim, é que as qualidades do escritor se afirmariam de modo inconfundível, graças às raras virtudes literárias que lhe ornavam o espírito. Virtudes tão acentuadas que me fazem lembrar aquele conceito de Coleridge sobre Sir Humphry Davy, de quem dizia que se “não tivesse sido o primeiro químico, teria sido o primeiro poeta do seu tempo”. De fato, ao deixar os seus instrumentos para elaborar um ensaio, Miguel Osório, parecia sentir-se em casa. Abordando temas com o objetivo de torná-los acessíveis a público bem maior do que o dos seus discípulos, logrou dar a cada qual deles um interesse, um sabor, uma transparência, que fazem de muitos deles verdadeiras obras-primas no gênero. É que, filtrados através da alma do filósofo, os conhecimentos do cientista perdem certas arestas, que, por vezes, os fazem enfadonhos aos não iniciados, e ganham uma nota de sedutora universalidade. Realmente, em muitos dos ensaios em que vulgarizou assuntos científicos, logrou Miguel Osório um equilíbrio somente possível num espírito em que a Ciência não houvesse fechado para a vida aquelas janelas de que já vos falei. Alcançou assim o milagre de vulgarizar a Ciência sem banalizá-la, antes servindo-a como poucos a serviram no Brasil, pois atraiu o interesse e a simpatia de novos círculos para muitos dos problemas que afligem e esmagam os nossos cientistas. Poderia mesmo dizer que estes talvez não se tenham dado conta inteiramente do quanto devem ao companheiro que tantas vezes deixou o laboratório para clamar em favor dos que, apesar de esquecidos pelo poder, se dedicam heroicamente à Ciência pela Ciência. Essa, a meu ver, a nota dominante nos magníficos ensaios reunidos em volumes que pelo tempo afora guardarão o nome de Miguel Osório, cuja pujança intelectual se reflete naquelas páginas somente possíveis a quem fosse, a um só tempo, cientista, filósofo e escritor. De fato, ele assim era. E foi isso que lhe permitiu ser não apenas um homem de ciência, mas sobretudo um grande e belo espírito. Aquele espírito que, para usar expressão possivelmente grata a ele, eu chamaria de gaulês: isto é, diáfano e profundo. Nem a outra circunstância deve aquele episódio narrado por Tristão de Ataíde ao nos informar que, ao falarem Miguel Osório e Amoroso Costa, em Paris, a “um público da mais alta cultura, a frase autêntica que brotou espontânea dos melhores de lá, foi esta: ceux-ci pourraient être des nôtres.” Miguel Osório, no entanto, e, felizmente, era dos vossos. Bem dos vossos; desta Casa de Machado de Assis, a que enalteceu aqui e no estrangeiro com aquele espírito no qual a severidade do pesquisador se aliava às maneiras do homem de salão e do conversador cheio de verve, em quem o físico, antes da palavra, sublinhava a figura encantadora. Esbelto, lépido de movimentos, a barbicha ruiva, que lembrava um daqueles “maíres” do século do Descobrimento, a servir de moldura ao perfil aquilino, era um desses tipos inconfundíveis, e aos quais basta ver-se uma vez para jamais o esquecer. Não me custa, portanto, imaginar que estais talvez a vê-lo levantar-se de uma dessas Poltronas, irrequieto, o cabelo meio em desalinho, revolto por um sopro desse ideal de beleza e trabalho, que lhe encheu a fecunda existência. Alucinação? Sonho? Fantasia? Não, apenas a mais viva das realidades, tanto é certo que Miguel Osório de Almeida, o sábio Miguel Osório de Almeida, aqui está e aqui ficará Ad Immortalitatem.

15/4/1955