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Discurso de posse

Um discurso acadêmico, senhores, nem sempre é um discurso literário. Que a boa inspiração não quer saber de praxes, de convênios ou fórmulas. É voluntariosa, inobediente. Não gosta que se lhe diga: “Deves fazer isto”, ou, então: “Assim, irás fazer aquilo. Inspiração e disciplina nunca fizeram boa liga. Quando uma chega, a outra, quase sempre, vai-se embora.”

Seja nesta ou em qualquer Academia, o discurso do recipiendário foi, é, e creio que será por longo tempo, ainda, uma oração sóbria e protocolar, onde tudo se mede e se calcula: a prudência do assunto, o modo de exprimir o pensamento, a maneira do estilo, e, muita vez, até, os presumíveis surtos da emoção. Tem que ser grave, sábio, mesureiro, cortez, discreto e doutoral. A invenção e a originalidade que se espremam neste apertado círculo de ferro. Contudo, em sua solenidade procurada pode ele ser muito bem incolor ou insípido, mas reparem que agrada, quase sempre, assim mesmo. É clássico como um sermão de Frei Bartolomeu dos Mártires, ou como as eglogazinhas quinhentistas do grande Mestre Bernardim.

Se de um discurso, por essa forma urdido, pergunta-se: “Que dele tu me dizes, ó Fulano?” Logo, a resposta vem: “Ótimo! Admirável! Acadêmico!...”

Não sei se irei fazer o meu discurso assim.

Procurarei, contudo, observando velhas e veneráveis normas, com mais cabelos brancos do que eu, desobrigar-me da matéria que ora, aqui, me traz, neste momento, e, se possível for, agradar-vos.

Assim posto, começo por dizer que a vossa imensa generosidade, senhores acadêmicos, tal a de me abrigar neste augustíssimo cenáculo, vale o melhor dos agradecimentos, dos sinceros, dos bons, daqueles que se fazem simplesmente, sem as galas da ênfase ou circunlóquios espetaculares.

Pela acolhida amável que me destes, portanto, obrigado senhores, muitíssimo obrigado.

Ensina a praxe, agora, que o recipiendário volva os olhos atrás, a fim de reviver, não só as glórias do patrono da Cadeira onde irá se sentar, como, ainda, as dos que, nela, anteriormente se sentaram.

Três vultos aureolados e amigos, numa cadeia luminosa, surgem, assim, ante os meus alhos: Raul Pompéia, Domício da Gama, Fernando Magalhães.

O primeiro dos três é uma figura singular da qual vos falarei de modo um tanto breve, porém, com o mais gostoso e íntimo prazer.

Raul Pompéia não foi um corifeu das letras pátrias, sua Arte não se revela, nem se recomenda por novidades de emoção, de pensamento, ou forma; não era um semeador de doutrinas exóticas, de transcendentalismos literários capazes de o fixar como figura à parte, entre os homens do ambiente em que viveu, contudo conseguiu, entre nós, ser mais que uma exalçada vocação, dessas que nas progênies literárias são refulgentes claridades, porém, de vida breve e regulada, intensas a princípio para tornarem-se, depois, vagos sinais de luz, esmaecidos clarões, sombras esquivas e crepusculares. Surge com a reação ao Romantismo, quando as doutrinas de Zola, alvissareiras, se desfraldam com o estandarte de uma nova escola. Não aceita, porém, as formas integrais do credo novo. Escreve como bem quer, despreza os figurinos literários, desses que se copiam, servilmente, até ao último botão. Não é papel carbono de alheios pensamentos ou de alheias doutrinas, embora não consiga esquivar-se às implacáveis influências que turbam e cercam o meio em que vive e se agita. Entretanto, dele não se dirá que é um seqüestrado pelo zolaísmo. Escritor livre, busca, apenas, guardando a sua personalidade, a linha vertical da perfeição.

Tem cultura humanística sólida. Escreve com clareza e espontaneidade. Põe vidrilhos na forma. Sua imaginação é plástica e suavemente cenográfica. Não explora frivolidades do lirismo. É ensaísta, cronista, crítico de arte, porém, como romancista é que consegue fama e glória. Seu romance O Ateneu surge como obra ímpar na literatura de seu meio. É um acontecimento literário que ribomba. A crítica recebe-o com barretadas de espantar. Mais livro de memórias que romance, O Ateneu resume o drama da adolescência do escritor, vivido em um internato que outro não é senão o dirigido pelo Barão de Macaúbas. Romance à clef provoca escândalo.

O livro é dos mais formosos que eu conheço, porém, dessora um pegajoso fel de mau humor e de injustiça. Fui aluno de Abílio César Borges, Barão de Macaúbas que ele, desapiedadamente, satiriza. Não sei quem, no Brasil, melhor mereça os loiros de educador que lhe cercavam a fronte, mesmo não sei bem de outro que, entre nós, elevasse, tão alto, os sãos princípios da Pedagogia. Era mestre e era pai. Conheci-o de perto.

Raul Pompéia nasceu para as arenas de combate. Lembra, no seu denodo, os cavaleiros medievais. Não traz sobre o franzino corpo uma armadura de aço. Usa um fraque, qualquer, do Lacurte, do Vale ou do Raunier, porém, é impetuoso e ativo na hora da refrega, titânico, viril, desvairado, brutal.

Eloy Pontes, que lhe estudou, a fundo, as anormalidades de caráter, é quem melhor nos mostra a compleição moral desse homem voluntarioso, perenemente em luta contra todos e em rebeldia contra tudo. Nascido de família católica, apenas adolesce é um teófobo terrível. Seus pais possuem escravos; ele, porém, bem cedo, é abolicionista declarado. Em plena Monarquia, um impetuoso e audaz republicano. No colégio, é rebelde à disciplina. Não tem íntimos amigos. Desconfia de todos e de tudo, do próprio amor, receia. Se ama, ama em segredo. Ninguém conhece os seus amores. É opiniático. Intolerante. Incontentável. Nutre pela honra uma noção exagerada. Tem na própria consciência uma inimiga. Com ela vive, em silêncio, a pelejar. Um belo dia põe-se a combater a própria vida. Quer destruí-la. E mata-se.

Dizem que os nervos, dentro do seu corpo, tinha-os em tal emaranhamento, que até lembravam os complicados fios de um aparelho de eletricidade. E combalidos por uma neurose que, ora o abatia, ora o exacerbava. Os métodos pensados pelo Dr. Freud, para os distúrbios nervosos, não eram conhecidos por essa época que ainda ignorava a psicanálise e os processos de cura pela exploração do subconsciente. Mas, que nos importa a inspiração doentia de um artista – digamos, hoje, bem como ele dizia outrora, se esse mesmo artista cria, serenamente, o belo?: “A pérola é enfermidade de um molusco.”

Morre ainda moço. Deixa, porém, uma obra que, se é curta, é, sobremaneira, sólida. E característica. Parênteses de luz numa literatura morna e bem comportada, que vem do Romantismo, e se arrasta, sorrindo, entre as graçolas do incorrigível Paula Ney, as polainas sovadas de Pardal Mallet, e cálices de Porto ou de Xerez, no Londres, na Cailteau ou na Pascoal...

Não são os homens iguais. Disso sabemos nós. Cada qual nasce trazendo o seu feitio. E o seu destino. Vezes, porém, aos nossos olhos se revelam tão caprichosamente diferentes, que duvidamos que nascessem gerados pela mesma natureza. Vejam só o contraste. No arrebatamento de seu gênio, Pompéia nos sugere a glória esplêndida de um sol em seu pleno fulgor do meio-dia, Domício, aquele meio-tom, aquela claridade, pálida e medrosa, que a gente vê tingindo as gazes da manhã. Um era audaz, insólito, imponente; o outro, discreto, tímido, nubloso.

Nas letras, Domício ama e cultiva as miniaturas, o ensaio breve, o conto. Bibelôs... As responsabilidades do romance, receia. Teme as composições de grande movimento, a agitação de numerosas personagens, contentando-se, como ele próprio diz, no prólogo de um livro que escreveu, com páginas de álbum. Como homem de sua época, aceita, de bom grado, aquele pão que o Realismo, em França, distribui aos escritores de seu tempo. As tamancas da grande escola, entretanto, quando aparecem no seu livro, têm a forma bizarra das sandálias do Oriente, cheiram a sândalo, e são, cuidadosamente, envernizadas. Prosa de músculos gelatinosos e de pouco nervo, sem vôos espetaculares, porém, aticamente decorada por um estilo simples que deleita, não só pelo respeito, como pela disciplina que revela, moldando a ductilidade do idioma. Bagagem literária pequena. Em toda a sua vida escreveu só dois livros: Histórias Curtas e Contos a Meia Tinta. Nada mais.

Serviu com Rio Branco, longo tempo. Os dois se completavam. O que faltava no Barão, sobrava nele. E que sobras amáveis para tão belo diplomata! Disciplina na hora do serviço. Método. Paciência na faina das pesquisas. Inflexível pertinácia.

Para o Barão do Rio Branco, Domício foi, sempre, um braço amigo e indispensável. Passavam os dois, dias inteiros, entre códices, mapas e alfarrábios de todas as espécies e feitios, num infindável labor. Vezes, já muito tarde, quando os restaurantes despachavam os últimos fregueses é que iam, os dois, jantar. A grande hora do Barão! Há quem afirme que, na mesa, detinham-se, por vezes, até pelo romper da madrugada, discutindo obscuros casos de fronteiras, datas, convenções e tratados. Mas, ficavam, tranqüilamente, por aí, quando o Barão não reclamava novas saladas de lagostas ou codornas assadas. Ninguém os via, com freqüência, em platéias de teatro, por chás, ou por concertos, mais ou menos esquivos e arredados da grande convivência social.

Domício vive, assim, sem experimentar de perto, as fortes seduções do ambiente em que se agita, sem contado direto com as paixões humanas, o riso, a dor, o drama agro-jocundo das esperanças e das ilusões. Tem uma grande paixão pela leitura, pelos mexericos diplomáticos, pelos assuntos internacionais. Lê muito, mas escreve pouco. Não conhece vaidades literárias, nem é homem de grandes ambições.

Quando é indicado para a Academia, surpreende-se. Igual surpresa tem ao fim da vida, quando se vê Ministro das Relações Exteriores.

Seu discurso acadêmico tem, a muitos, servido de modelo como é, grave, discreto e protocolar. Nele fez o elogio de Pompéia, falando das paixões que o incendiavam, das suas complicações psicológicas e do seu recalcado pessimismo, aquele pessimismo que o impeliu certo dia, a escrever esta frase dolorosa: “A ventura é um fastuoso banquete com uma apoplexia pela sobremesa.”

Recebe-o Lúcio de Mendonça. Ao diplomata de um País que tem, lá fora, terras cobiçadas, em litígio, e que, então, recita, solenemente, o seu discurso, tendo nas algibeiras da casaca uma passagem de ida para a Europa, deseja que a internacional política, com a maior brevidade, nos restitua o território cobiçado, como ao território, o prestimoso diplomata.

Segue para a Europa. Londres, Paris. Berna... Vai encontrar na capital da França um velho e valoroso amigo. José Maria Eça de Queirós. Visita-o, assiduamente, em Neully. A casa do escritor é casa portuguesa, acolhedora e amiga. Lá passa soirées agradáveis, na intimidade da família, cerimoniosamente, posto na sua sobrecasaca preta longa e cintada, com etiqueta do Pool. Leva bombons para os pequenos, dedica contos a Maria, filha querida do escritor.

As crianças sorriem. Exulta D. Emília de Queirós. Eça, desvanecido, agradece as amabilidades da visita.

O autor de A Relíquia é epicurista. Ama os prazeres da mesa. Adora os poulets Marengo de chez Paillard, as mayoneses mouseline e os carré de porc sauce Richelieu do Café de Paris. Sofre, porém de mal que o obriga a regimes dietéticos tremendos. As horas de comer são, para ele, tristes e tantálicos suplícios. E D. Emília, ao pé, implacável, severa, a vigiar-lhe a morbidez dos intestinos. Eça, porém, desforra-se da vigilância da mulher, das dietas caseiras, de quando em quando, inventando, fora, almoços ou jantares com diversos amigos. Domício da Gama não se pode furtar às premeditações brejeiras do escritor e às suas perigosas escapades. São mil recomendações que D. Emília faz ao jovem e sisudo diplomata. Que Eça não deve comer isso, e que não coma aquilo. E o pobre Domício, com grandes curvaturas de espinhaço, cerimonioso e transido, a prometer o que não pode!

As conseqüências desses repastos lautos e intemperantes não se fazem esperar. D. Emília, coitada, quase fica louca! Vêm médicos, contas enormes de farmácia. E o bom do Eça, pálido e de olho fundo, como que a preparar vindouras travessuras, defendendo as inocências do vigia, com sofismas, capciosos argumentos e evasivas razões.

Essas histórias de espantar, ouvi-as eu de Martinho Botelho, quando fui, pela primeira vez, a Paris, no ano de 1905. E ouvi mais, que D. Emília, a esposa do escritor, ter-lhe-ia dito, certa vez, de modo sério e aborrecido:

– O Sr. Botelho já está, de todo, desmoralizado, como companhia para o meu marido. Chegou a vez do Sr. Domício da Gama.

Domício mantém com Eça de Queirós quando fora da França, uma regular correspondência.

Novembro de 1899.

Por essa época o mundo inteiro tem os olhos voltados para Rennes. Revisão do processo Dreyfus. É quando o “egrégio Tribunal” rejeita provas que devem absolver o aflito réu e o envia, de novo, aos duros ferros da prisão. Até os cabos telegráficos, ao transmitirem a nova ignominiosa, estremeceram de horror.

Chega a Domício, por essa época, uma carta que Eça de Queirós lhe dirige da França, e onde se comenta o grande acontecimento. Vale a pena arrancar-se, da mesma, um trecho interessante, quiçá oportuno, escrito pela mão do mais francês dos escritores que já teve o idioma português.

Também eu senti grande tristeza com a indecente recondenação do Dreyfus. Sobretudo, talvez, porque com ela morreram os últimos restos, ainda teimosos, do meu velho amor latino pela França. Os suíços, querido Domício, não se enganam generalizando – e atribuindo o julgamento de Dreyfus “à própria essência do espírito nacional”. Quatro quintos da França desejaram a sentença. A França nunca foi, na realidade, uma exaltada de Justiça, nem mesmo uma amiga dos oprimidos. Esses sentimentos d’alto humanismo pertenceram sempre e unicamente a uma elite, que os tinha, parte por espírito jurídico, parte por um fundo inconsciente de idealismo evangélico. Não nego que, aí por 1848, essa elite conseguiu propagar o seu sentimento na larga burguesia, sensibilizada, amolecida desde 1830 pela educação romântica. Mas logo, com o Império, a França se recuperou, regressou à sua natureza natural, e recomeçou a ser, como sempre, a Nação videira, formigueira, egoísta, seca, cúpida. Devia, talvez, acrescentar cruel – porque, de fato, todas as grandes crueldades da História Moderna, desde a guerra dos Albigenses até às Matanças de Setembro, têm sido cometidas pela França. O seu pretendido Messianismo do Amor Social um mero reclame montado pela Literatura romântica – que já fazia rugir de furor o velho e vidente Carlyle. E o processo de Rennes provou que a mesma bondade, a bondade individual é nela rara, ou, tão frouxa, que, se some, apenas a França, um momento, se constitui em multidão. Em nenhuma outra Nação se encontraria uma tão larga massa de povo para unanimemente desejar a condenação dum inocente (que sabia inocente) e voltar as costas, ou mesmo ladrar injúrias, à sua longa agonia.

As linhas de Eça de Queirós, aqui lembradas, servem, apenas, como documento da exacerbação causada em todo o mundo pela odiosa injustiça de Rennes; palavras de revolta e de paixão, talvez, tão parciais e tão injustas como o atroz julgamento que feriu o inocente Dreyfus. Que, afinal, a França de 14 reabilitou a França de 99. E a França de 44, a gloriosa França de Giraud, de De Gaulle, dos maquis e dos patriotas que sucumbem cantando a Marselhesa nas ruas de Paris ou de Lyon, redime os dias tenebrosos de Vichy, do torpe enxurro dos colaboracionistas, dos Laval, dos Darlan e dos Petain.

O Rio de Janeiro, pela aurora do século que corre, antes da picareta salvadora de Pereira Passos e dos desvelos profiláticos do grande Osvaldo Cruz, ainda conserva a sordidez e o mofo dos velhos tempos coloniais. É o Rio do Presidente Campos Salles, do quiosque, do bigode, dos elegantes de sobrecasaca cortada em pano inglês, cartola e botinas de verniz que, sob o fogo cruel de estios apavorantes, bem como salamandras, cruzam, tranqüilamente, a Rua do Ouvidor. Tempo em que as mulheres vestem compridas e rodadas saias que se sungam à mão e usam cinturas de marimbondo, leque, e uns trágicos chapéus que não lhes entram, nunca, na cabeça, todos em pluma e fita, de forma e de tamanho sobrenaturais. Tempo em que o progresso ronda a entrada da barra, mas não entra, da casa feia e sem conforto, da rua estreita ou desarborizada, do bonde de tração animal com o seu cocheiro de chapéu de palha, vestindo, às vezes fraque, dos tílburis de capota mal encerada, com chicotes fincados nas boléias, sujos e farrapentos, sem tabela, e, por isso mesmo, sem fregueses, dos saraus em família obrigados a ceia com porco assado, líricos discursos e assembléias em salas de visita que se ornamentam com flores de papel pelas paredes, se iluminam a querosene ou a gás, salas onde os namorados, com dramaticidade e piegas ternuras, recitam, de mão ao peito e olho de carneiro morto, versos de Castro Alves, de Fagundes Varela e Casimiro de Abreu. Vive o povo esperando o Carnaval, os balões e as fogueiras de Santo Antonio e São João, enquanto que a bubônica, a amarela e outras epidemias dão trágicos festins pela cidade. Obituário em ascensão. Procissões pela rua. Vivem os moços, porém, felizes e contentes. Quando se tem vinte anos, a vida de qualquer forma e em qualquer parte, é sempre uma delícia. O bom tempo! a saudade dos velhos...

– Aquilo é que era tempo! Olá, se era! Um par de borzeguins custava seis mil-réis!
– E que borzeguins!...

Ah! O tempo sem igual das mulheres bonitas e dos homens de bem, dos amigos alegres, dos companheiros fiéis, das empadinhas com palmito e camarão, como hoje não se fazem mais!

– E que empadinhas!

Bom tempo! O aprazido estribilho de todos aqueles que já passaram dos cinqüenta anos. Como se os tempos não fossem, sempre, os mesmos, monótonos e iguais. Não mudam eles. Nós é que mudamos!

Pois foi por essa época de risonha e estuante mocidade, que eu conheci Fernando Magalhães. E até me lembro, exatamente, quando e onde. Em 1901, no Café Papagaio, lugar onde abancavam, em ruidosas e férvidas tertúlias, estudantes, jovens pintores, escultores, poetas e jornalistas. Cenáculo de moços. Era o Antônio Austregésilo, autor de um livro tenebroso – Manchas, onde se falava da alma sofredora e aflita de um serrote; Gustavo Santiago, que escreveu um admirável poema intitulado “O Cavaleiro do luar”, onde versos havia como estes:

São pestilentas águas estagnadas,
Rios pretos, lagoas amarelas,
Mares de ondas podres e paradas,
Oceanos feitos de erisipelas...

Era o Magnus Sondal, ruivo de barba rala e olho de cocoroca, Sar Peladam das nossas letras, fazendo do cabalismo, do esoterismo, da teosofia oriental e do ocultismo da Índia, uma espécie de angu literário que nos era servido em graves e intermináveis discurseiras. Adalberto Guerra Duval, elegantíssimo, Brumel pelo tempo (e hoje, ainda, muitíssimo Brumel), em meio a toda essa geração que usava meia-solas nos sapatos e esverdeados vestons a esfiapar pelos debruns, Fábio Luz, desassombrado niilista, a discutir a questão social, citando Bakounine, Kropotkine, Karl Marx, Dejean, Brousse e Plecard, olhando o mundo em que vivíamos como cousa inútil, que envelhecera e decaíra completamente desaproveitada pelos homens. Tempo em que Félix Pacheco, irreverentemente, escrevia em A Meridional, do Elísio de Carvalho, “este mulato pretensioso e besta que se chamou Gonçalves Dias” e em que o Sr. Colatino Barroso, quando se referia ao poeta da Legende des Siècles chamava-o, sempre, o – Dr. Vitor Hugo...

Vivíamos, todos nós, como perdigueiros, de nariz no ar, atrás do novo, recitando Montesquiou-Fesansac:

Le singulier me touche et l’étrange me charme
J’adore le bizarre et me sent fort epris
Du rare...

Líamos, então, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud, Rachilde, Rodenbach, Verhaeren, Gustave Kahn, Paul Fort...

Sofria o respeitabilissimo Cenáculo que ora me recebe, como jamais sofreu. Pelas gazetas literárias, os jovens nefelibatas arrazavam-no. Bem diz Mestre Afrânio Peixoto: “Até chegarmos aos trinta anos, nós somos, todos, inimigos mortais da Academia, dos trinta aos quarenta, candidatos, e, depois, invariavelmente, tranqüilos acadêmicos”. Assim é. Assim foi. E assim será.

Ah! novos reformadores que acabaram, todos, reformados pela compulsória do bom senso, hoje chefes exemplares de família, burocratas pontuais, jogadores do bicho, assinando o Jornal do Commercio, trocando o loiro, chope Bock Ale pela laranjada americana ou pelo guaraná.

E Fernando Magalhães? perguntar-se-á, agora, em meio à turba desses demolidores, que era, afinal? Resposta: um novo, como todos nós, condenando, talvez, o oceano de erisipelas do Gustavo Santiago, o serrote do Antônio Austregésilo, a oratória espiritualista do Sondall, e, ainda, certos conceitos sociais do niilista Fábio Luz, mas quanto ao resto, integrado, perfeitamente, no mesmo ambiente revolucionário, reformador, demolidor, que era, afinal, o de todos que tinham, então, a sua idade.

Filho do Rio de Janeiro, Fernando de Magalhães nasce em 1878, com os liberais no poder e o imperador em São Cristóvão, traduzindo Virgílio por entre os arvoredos da Boa Vista, de paletó branco, chapéu de Chile, a ouvir o edênico trinar dos cambaxirras e virados.

Aos dez anos de idade freqüenta as aulas do melhor colégio que existe, então, na capital do grande Império, e que é o Pedro II. Mora em Paula Matos. Cedo acorda e vem, morrete abaixo, em companhia de seu preto para ser dos primeiros a chegar às portas do externato. Inteligente e aplicado. Bela criança de olhos profundos e de cachos longos descidos sobre a gola do casaco.

Pela histórica manhã de 15 de novembro de 89 trepa pelas grades do Campo de Sant’Ana, para melhor observar os acontecimentos que ainda se desenrolam, tumultuosos, sobre a extensão da grande praça. Vê muito povo. Tropa. Pressente cousas extraordinárias, mas não pode explicá-las. Se o próprio Marechal Deodoro ainda não as explica muito bem... As portas do colégio estão fechadas. Volta para casa. Mais tarde escreverá: “Numa época em que o descanso era exclusivamente dominical, aparece um momento de folga.” Que satisfação! Folga para ele. Folga para o imperador! Foi, como aqui se vê, a memorável data da República, um dia de prazer até para os meninos que estudavam.

Aos treze anos recebe a láurea de bacharel em Letras e aos quinze já está matriculado na Faculdade de Medicina, por vontade do pai. Em 97, aluno do 4.o ano, escreve na revista do Grêmio dos Internos o seu primeiro artigo. É o pendor literário que começa. Pelo mesmo tempo cria fama de ótimo orador. Pelas reuniões, entre colegas, nos momentos propícios ao discurso, o que se ouve, sempre, é o brado: “O Fernando que fale!” E o impávido Fernando, logo, passando a larga mão sobre a massa revel de sua basta cabeleira, engolindo o pigarro: “Meus Senhores...”

Essa arte de bem falar, que ele, galhardamente, e com fulgor pratica, há de lhe garantir, mais tarde, esplêndidos triunfos.

Um deles:

Fernando Magalhães, recém-formado, recebe, certa vez, em casa, uma notícia que o estarrece e a fundo lhe apunhala o coração; João Gomes Neto, amigo seu, íntimo amigo, é acusado de um degradante crime. Desapiedadamente, a imprensa da cidade acusa-o, ataca-o, maldizendo-o, empurrando-o violentamente para o cárcere. A acusação é uma calúnia. Sabe Fernando de onde ela parte e por que vem. Não se conforma com a mistificação revelada no inquérito, nem com a atroz campanha das gazetas. E resolve, calma e tranqüilamente, ir defender, no Fórum, o acusado. Procura ver, de perto, as rabulices do processo. Estuda-o. No dia do julgamento comparece à barra do Tribunal, com a sua serenidade e a sua esplêndida eloqüência. Vai desarticular os ferozes cérberos da Justiça. Enfrenta-os. Põe-se a defender o réu. Com lógica argumenta e com brilho discute. Anima-se o debate. Fala durante oito horas a seguir, impressionando juízes e auditório, acordando a consciência dos jurados. Uma a uma, desfaz as fementidas malhas do libelo. Responde a partes. São juristas aqueles que o aparteiam. Com eles mede-se Fernando e os abate e os convence. Assombra-se o plenário com a potência verbal do jovem orador, com o seu senso de lógica e, muito principalmente, com o modo pelo qual ele revela e aclara certas armadilhas do processo. A acusação é posta em tiras. O réu é absolvido. Há um delírio por todo o tribunal. Fernando sai carregado pelo povo, aos boléus, a beca a lhe fugir do corpo, sem o habat e sem capelo, entre palmas e o estrondoso vozear de aclamações entusiásticas.

No dia imediato, a imprensa, em peso, ao comentar o acontecimento, apoteoseia o jovem advogado, engrandece e consagra o magnífico orador.

As glórias da tribuna judiciária, entretanto, Fernando Magalhães rejeita. É médico. Jamais será advogado. Ambição só possui uma, tal a de conquistar, como laurel supremo, a cátedra do ensino obstétrico. Namora a cátedra. Sabe, perfeitamente, que para obtê-la tem que se revelar um mestre na matéria. Para isso estuda com afã. Apura a sua técnica. Segue para a Europa. Corre os hospitais de Londres, de Paris e de Berlim. Fixa-se, porém, na capital austro-húngara, onde passa dois anos, praticando, estudando. Contudo, a Viena patética das valsas, da Ringstrasse, do Burg Theater, dos zíngaros e das operetas saltitantes de Léo Fall e Frimz Lehar não lhe interessa. Tem, sempre, ante os seus olhos, a ambicionada cátedra. Há de obtê-la, custe o que custar. Por isso, enquanto fora, insólita, reboa e estruge a alegria da vida, desmanchando-se em músicas e risos, pelo torvelinho das brasseries e cafés, ou sobre o Danúbio azul, pelas noites românticas do luar, Fernando Magalhães ausculta o enfermo, vigia a dor, consola o aflito.

Em 1904 volta à cidade em que nasceu. Do professorado livre passa ao professorado oficial. Lente e substituto, a princípio, e, por concurso, finalmente, dono e senhor da cátedra sonhada. Está ele como quer.

Adoram-no os seus discípulos. Depoimento de um deles: mestre na sua especialidade. Mágico da palavra. Verdadeiro encanto, as suas aulas. Não sei de alunos mais assíduos, atentos e satisfeitos do que os seus. Lente de estranho bom humor, numa banca de exames, certa vez, a um aluno pergunta pelas razões que obrigavam, na taba, quando nascia um índio, a mãe da criança retomar as suas lides cotidianas enquanto o pai, dentro da sua rede de tucum, ficava a receber a visita cortês dos homens da floresta.

O examinando pensa a esgravatar o cérebro. Acha razões estapafúrdias. Rejeita-as o professor:

– Nada do que me diz está certo. Pense melhor e diga.

E o homenzinho, nada!

Sorri Fernando, como rirá, depois, toda a assistência, em torno, e declara, peremptoriamente:

– Porque entre os índios não havia um registro civil e era, enfim, necessária uma prova qualquer que à taba garantisse a exata paternidade do guri...

Com o seu sorriso olímpico, o sorriso daqueles que são bons, dos que são felizes, dos que jamais sentiram, a fundo, os desprazeres e as melancolias deste mundo revel e enganador, viveu Fernando até morrer. Na verdade, só uma vez o vi um tanto aborrecido e contrafeito. Era ele deputado e, em plena Câmara, combatia um projeto de lei sobre o divórcio. Desconheci-o, nesse instante. Sua voz alcançara um diapasão acima do anormal e, citando Salanora, Cenni e Rocanine, esmurrava, por vezes, a tribuna. Tinha convicções religiosas, sinceras e extremadas. Católico praticante, estava a defender a sua Igreja e o seu Deus. O Deus que ele, depois, queria ver iluminando o pórtico da Constituição de 34. Deus símbolo, símbolo da perfeição, como dizia ele, para depois perguntar: “E porventura, incrédulos e agnósticos, não achais que a perfeição deva inspirar o vosso pensamento?”

Agnósticos e incrédulos acabaram vencidos pelas hastes católicas, tendo Fernando Magalhães, alvorotado, à frente. E foi assim que passou a figurar na mesma Constituição o nome do bom Deus, ao menos, por algum tempo.

Sempre é bom relembrar, ainda, o ardor com que ele se bateu, na Câmara, pelo acordo ortográfico, tendo por base a reforma seguida pela Academia das Ciências e Letras de Lisboa, isso, quando, com o intuito de derrubá-la pela base, alguém propôs que fosse a nova carta constitucional impressa na grafia da antiga, votado em 1891. Aí, porém, bateu-se em vão. No caso do divórcio tinha a ajudá-la o próprio Deus, este, porém, depois, mostrou-se completamente desinteressado pela votação da ortografia. Venceram, nesse instante, e com facilidade, os representantes da Nação que, tacitamente, repeliram o acordo, embora ciosos, todos eles, pela reforma que se fez, depois, ajustada às naturais conveniências do idioma tal como se fala no Brasil.

Tinha Fernando Magalhães idéias pessoais, teóricas, românticas, sobre tal assunto. Com ele, francamente, eu discordava. Lembro-me bem das discussões que tínhamos, a sós, sobre o caso, discussões, todas elas, diga-se de passagem, onde jamais se via menor sombra de azedume, de prevenção ou mau humor. Eu não conseguindo vencê-la e ele sem jamais me persuadir.

Como bom brasileiro, tenho por Portugal o natural respeito e o instintivo amor que, todos nós, devemos ter, porém, como é justo, acima disso tudo sempre coloquei, coloco e colocarei o meu amor e o meu respeito pela autonomia e a originalidade do Brasil. Nascidos de três raças diferentes, com elas já bem pouco parecemos. As acomodações do sangue herdado, a ação do tempo, as influências naturais do meio em que vivemos transformaram-nos. Somos, agora um povo bem diverso daqueles que antigamente nos geraram. Somos americanos. Temos que caminhar em um outro mundo e para outro destino – que não é, certamente, o de copiar os velhos e cansados moldes, senão o de construir, em terra bela e moça, um recanto de vida inteiramente nosso que, antes de ser melhor, há de ser diferente.

Não somos, na verdade, uma firma comercial com a casa matriz na Europa. Nada de sucursais! Evite-se, portanto, tudo que, embora levemente, se proponha a empecer ou perturbar a diretriz de um povo, que, dentro da sua autonomia, deseja conservar os traços, aliás, já bem acentuados, da sua originalidade.

No caso do primeiro acordo ortográfico a nossa gente protestou. E venceu.

Fernando, como ele próprio certo dia disse, não previra os acontecimentos que, mais tarde, se transformaram numa campanha de afrontas e irritações, fazendo reviver, até, velhos rancores, velhas animosidades vindas dos idos tempos coloniais, muito mais para esquecer que para recordar. – Estou, porém, metido na fogueira – afirmava-nos ele. Estava. E não era homem para dela sair.

Fernando Magalhães foi um grande orador. Nem lhe faltaram a majestade da figura, a física elegância das atitudes e dos gestos, máscara expressiva, voz quente, flexuosa e bem timbrada. As suas improvisações eram despidas de ênfase, de artifícios dramáticos, e da pedanteria alambicada ou pirotécnica tão dos oradores populares. Seu verbo era conciso e desafetado. Uma eloqüência aristocrática, cunhada, sempre, em bom estilo literário. Rico vocabulário. Imagens sóbrias, fixadas com proporção e segurança. Orador para elites, dos mais sedutores e dos mais perfeitos que já teve o Brasil.

A minha vida literária tem sido, meus senhores, de surpresas, felizmente, agradáveis, sendo que a maior de todas elas é, por certo, a de me achar aqui, neste momento, entre galas e flores, posto neste fardão de pano verde e com esta espada à cinta. A espada não sei bem porque a criastes.

Um símbolo, talvez. Não fosse, como a vemos, um artifício de joalheria. Contudo, sobre ela é que todos nós, acadêmicos, numa solenidade como esta, devíamos prestar o juramento de, com denodo e bizarria, defender as sagrados ideais dos fundadores desta Casa, (quiçá, por vezes, esquecidos), buscando, de tal sorte, manter o seu destino literário; ideais, que se baseiam em sãos princípios de autonomia e de brasilidade, princípios esses que se encontram patrioticamente fixados nos discursos de há quase cinqüenta anos, proferidos quando de sua fundação: o de Machado de Assis, por exemplo, ao falar da unidade literária dentro da Federação e o de Joaquim Nabuco, declarando que este Instituto é afirmação de que “literária, como politicamente, somos um país que tem o seu destino, seu caráter distinto, e só pode ser dirigido por si mesmo, desenvolvendo sua originalidade, com os seus recursos próprios, só aspirando à glória que possa vir de seu gênio”.

E é, senhores, com a mão aberta sobre este sagrado emblema, que eu, solenemente, aqui declaro a minha inteira obediência, o meu maior devotamento, a tais princípios, pugnando, assim, pela honra e pela glória desta Academia, o pensamento no Brasil.