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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Marcos Almir Madeira

AO ESCRITOR, AO PRELADO, AO CIDADÃO

Sr. D. Lucas Moreira Neves, Eminentíssimo confrade: lembro-me de tudo e de quase todos, muito apesar da idade. Era eu um colegial e cursava meus 12 anos.

As folhinhas de 1928 marcavam 18 de outubro e registravam que aquele era o Dia do Santo Doutor: São Lucas, patrono dos médicos. Muito por isso o diretor do ginásio, o Bittencourt Silva, em Niterói, minha cidade-berço, convidou o senhor bispo diocesano, D. José Pereira Alves, a fazer sua bem esperada visita ao educandário, já então histórico. Para saudar o prelado, de inteligência e simpatia claras, designara o diretor do colégio um aluno terceiranista, orador oficial da União dos Moços Católicos. Era eu próprio, rigorosamente.

Falei o que pude e como pude. Penteei a frase e arredondei a voz (não valeriam estridências no louvor a Sua Exa. Reverendíssima) e tudo coube em quatro tiras de papel, que além de pautadas, tinham sido extraídas, não sei porquê, de um caderno de Física. Foram lidas prudentemente – ia dizer inevitavelmente pelo meu diretor, que apenas podou a adjetivação gordurosa,enxundiosa.

Era aquele um dos pecados literários bem inerentes aos noviços da oratória imberbe ou da literatura garota. Mas, ainda assim, como admitir que o orador calouro lesasse a virtude da boa medida e do recato verbal, naquelas circunstâncias?...

Uma outra indagação, que lhe faço comovidamente, Eminentíssimo confrade: como poderia futurar o colegial de 1928 que, decorridos 68 anos daquela saudação a Sua Exa. Reverendíssima o bispo de Niterói, viesse receber, na Academia Brasileira, Sua Eminência, o senhor cardeal primaz do Brasil?

Seja como seja, D. Lucas Moreira Neves, quero dar-lhe garantia plena: serei módico nos adjetivos; guardei a receita estilística do bom diretor do meu ginásio. Estou certo: não foi acaso a sobriedade o segredo da arte literária de Machado de Assis?

Queira consentir, já agora, numa evocação pessoal – ia eu dizer filial: neste dia de São Lucas e de sua inspirada posse acadêmica, penso em meu pai, santo leigo que se deu à Medicina, abalizando-se na Pediatria. E não saberia omitir que, nesta Casa, a eloquência do acadêmico João Neves da Fontoura apontou nos pediatras genuínos uma “vocação de anjo da guarda”.

Há destinos amáveis: trago para esta tribuna um rosário de coincidências.

Bem me honro e prezo de lhe dizer a palavra de saudação da Academia Brasileira, no bom momento em que vem suceder ao poeta, educador e ensaísta Abgar Renault. Foi ele quem aqui me recebeu – outra coincidência de seda. É hora de lhe dizer que, sufragando Vossa Eminência, votou a Academia no prelado escritor e, pela primeira vez, num príncipe do reino de Deus. Recebendo o Cardeal Tisserant na Academia Francesa, naquele 20 de junho de 1962, o Conde Wladimir d’Ormesson rematou seu discurso com um nítido mot d’esprit: L’immortalité que nous vous offrons est relative et surtout éphémère. Mais toute votre vie est tendue vers ceile qui n’aura pas de fin...

Quanto a nós, neste Petit Trianon, estamos em crer que não seria de bom gosto, ou bom aviso, filosofar esta noite sobre a nossa imortalidade e ainda bem menos sobre a outra... Aqui se encontram três cardeais e caberia evocar aquela pergunta lírica de Maeterlink: “Como ensinar aos pássaros a teoria do voo?”

Uma academia deve ser prudente. Prudência, a “boa prudência”, que aparece em meditações do Velho Horácio, é para nós estrela gêmea da harmonia, na constelação das virtudes e prendas desta Casa exponencial.

Sob essas inspirações que vêm do fundo do tempo, deixa nossa Academia de filosofar sobre a imortalidade – preserva-se ... e confessa, para ser veraz, que mais grato lhe é dizer da sua personalidade literária, da sua obra e do significado da sua eleição.

Um registro da nossa imprensa concluiu que ela fora justa pela sua “alta condição eclesiástica e por seus méritos de literato”.No que lhe toca, a designação de literato não calha, não se compadece com as revelações do seu tônus estilístico.

Vem a ponto ressalvar que me valho da qualificação de literato como expressão de dandismo, de maneirismo, de rococó transplantado, tropical, patente na inchação da frase, na alegoria das hipérboles, a mesma com que o tribuno ingênuo de certas áreas rurais pontificava no coreto com a sua eloquência engomada, sua literatura de domingo... É claro que o jornalista fez uso da expressão inadequada, com a mesma naturalidade com que a empregaram Nabuco, Carlos de Laet, Humberto de Campos, José Veríssimo, em cuja época tinha o vocábulo outro curso e sentido. Também assim apalavra tribuno.Quase desapareceu do nosso mercado verbal. É que passou a caracterizar em nossa vida intelectual de hoje, como aconteceu ao literato, o ciclo precisamente do maneirismo, do artificialismo luxento, da literatura incomunicativa, em que o autor só a si mesmo se via, esquecido ou desdenhoso do conselho de Nabuco: “Escrever para o leitor.” E exatamente isso o que faz Vossa Eminência com mestria e boa pena – pena do não literato, pena de escritor.

Já me acudiu registrar num prefácio a perícia da sua arte literária, sob o regime da Crônica. Mas o cronista, no seu caso, está a serviço, em folhas da Imprensa, do que tem de mais alto a arte de pensar. O instrumento é ela, a crônica límpida, lúcida, lisa, sem arabescos e expedita, comunicativa por definição:mas o desígnio do escritor, sua ideia-mater, seu ponto cardeal (permita-me) ressumbram nitidamente na sua faina literária: servir à comunidade, ao Brasil-Nação e ao Brasil-Estado, sob a inspiração permanente da palavra divina e dessas cartas à humanidade, que são as encíclicas sábias e sólidas, moldadas numa filosofia da ética de viver e conviver, na dedução sociológica das realidades que marcam a vida de cada um, cada dia – vida de todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças de um mundo que não quer apenas durar, mas realmente viver; viver sob Estado justo, sem temer o dia seguinte, sem medo de amanhecer; mundo que sofre e ainda sonha, apesar das democraciasunilaterais e contraditórias. Nenhum tema de urgência social deixou de ser versado pelo chefe da Sé Primacial: em vez de crônica diletante, a crônica militante, a crônica pastoral, sem que o pastor se transfunda por inteiro na página, inoculando no tecido da frase o jeito, os modos e – por que não dizer? – os vezos do ofício venerável. Deformações ou cacoetes da profissão, todos os temos: bacharéis (estou aludindo aos que respiram no clima do foro), militares, clérigos e – the last – desta vez the least – tecnocratas... Como no caju, tão nosso, na linguagem também às vezes sentimos a cica da profissão. Exceção auspiciosa, a prosa de Vossa Eminência nos vem imune, enxuta de traços ou tiques do ofício. Não há sermão na sua escrita; ou, se o temos, e bem é que o tenhamos aqui e ali, não nos vem no rigor da comunicação eclesiástica; vem com o sabor de certas coisas implícitas, diluído na água, também ela benta, de um estilo próprio. Até mesmo o conselho do cardeal arcebispo tem o toque de um cidadão como tantos outros. A bem pensar, nem há conselhos; o que há é o correto alinhamento de fatos, coisas, instituições, circunstâncias, que
são a matéria-prima de um pensamento medular, um feixe de princípios de raiz. No cronista de sumo e brilho, saúda a Academia Brasileira o escritor de ideias. E, porque assim é esse escritor, brinda igualmente o ensaísta, que no cronista se alonga, como uma vocação paralela. Sim, porque ensaios, variando apenas de extensão, vêm a ser quase sempre os seus escritos. No geral, trazem advertências e propostas de palpitante interesse coletivo. Quando não, até mesmo denúncias generosas, de serena energia, a serviço do bem comum. Está nele um clama ne cesses da Igreja Católica, que a história não dissocia da ética social, presente no que tem de mais profundo a moral cristã, tão palpitante de atualidade na advertência irresistível de São Paulo: “Cristo é tudo em todos.” Diluem-se nessa mensagem de amor os preconceitos de raça, de classe e de crença. Fundado na sua altíssima filosofia, deixou-nos São Paulo esta exortação, misto de sabedoria e beleza: “Rendamos graças ao Criador pela infinita variedade das suas criaturas.” Esse é um outro mundo de ideias que o cardeal escritor já tem transferido para o seu ensaio crônica. E estima a Academia dizer-lhe que a força e solidez dos conceitos, reflexões críticas e apelos nunca lhes sacrificaram a construção literária, a comunicabilidade, a simpatia verbal precisamente. E que o cronista se impõe. Daí, como me ocorreu notar em passado recente, a sua capacidade de motivação – motivação rápida, pronta. E o insigne confrade, em gênero e escopo, o escritor que se dá. Parece que seu desejo é dialogar com o leitor – conversar na página. Vai nisso a feliz confirmação de que existe uma sociabilidade literária – afabilidade no papel. E o sucessor ideal de Abgar Renault é portador dessas virtudes, tão inerentes aos cronistas autênticos. Mas o homem de pensamento, que o cronista abriga, consolida seu prestígio intelectual no País e sua posição em nossa melhor ensaística, pelas nobres manifestações do escritor cidadão, atento à problemática do homem e da sociedade, nestes dias dormentes – aquele socially active citizen, tão recomendado por cientistas políticos dos Estados Unidos. (De vez em quando, direi alguma coisa em Inglês para que meus amigos norte-americanos não ponham em dúvida minha educação e modernidade.)

Do seu vivo sentido literário, D. Lucas, fazem uma prova clara o zelo e a graça com que batiza suas obras. Tem nisso a boa companhia do sempre lembrado Gilberto Freyre. A conquista do leitor e o natural empenho em lhe abrir o apetite intelectual também se podem associar à escolha dos títulos. São fatores predisponentes, sem dúvida. Casa-Grande & Senzala faz mais que denominar; provoca. Com o Olhar de Pastor, Eminência, é um dos seus achados mais engenhosos. Se houvesse preferido olhos, em vez de olhar, a opção não teria a mesma carga efetiva. Com olhos significaria apenas a visão do autor quanto a certos temas ou problemas; já com o olhar infunde a sensação bem humana do pastoreio; sensação de que o pastor, ante suas ovelhas, em verdade assiste e zela.

Em O Alferes e o Presidente, há um discreto começo de pitoresco. Ou isso ou um pique na curiosidade do leitor, algo de inesperado. Creia que as minhas inclinações muito especiais por esse livro, eu as confesso agora, não porque esteja em presença do prefaciador.

Beirando ainda mais o bom pitoresco – e o pitoresco era o mais frequente nos títulos do singular Gilberto Freyre – vejo no seu elenco literário O Homem Descartável, páginas que bem revelam, de par com o próprio pitoresco,um complemento de ironia oportuna, que acaba piedosa. De toda maneira, aí aparece o cardeal, no interesse social da sua doutrina e maior popularidade da sua Igreja, a advertir de perigos e ilusões, que uma certa corrente de um certo modernismo não aprendeu a descartar...

Está pensando igualmente a Academia em dois outros dos seus livros, cuja nítida preocupação literária vem também estampada na capa. E o talento no rosto de cada volume, a sensibilidade na frente. Um: Pôr do sol em Reritiba. Outro: Vigilante desde a Aurora. Há nesses dois títulos um quer que seja de paisagístico, uma intenção implícita de convidar o leitor a fruir o sabor e o perfume da natureza. É a vocação do escritor em campo (ia eu dizer no campo). Em qualquer hipótese, a sugestão do contraste entre o grito do dia e o sussurro da noite. Lembro-me de uma meditação de D. Aquino Correia, quando aqui mesmo falou da “poética melancolia dos poentes”. E o Cardeal Baudrillart na Academia Francesa? Disse tudo e disse bem : “Tout est beau dans la nature, même la mort du jour.”

À segunda edição de Crônicas do Reino de Deus, deu Vossa Eminência outro nome. Ficou sendo A Semente é a Palavra. Em ambos os títulos, há uma precisão bonita. Mas, no último, a nota de criatividade é mais viva, com a doce vantagem de ampliar a presença divina na semeadura que se faz verbo. Em Crônicas do Reino de Deus, vê o leitor um servo de Cristo; em A Semente é a Palavra, vê de mãos dadas o prelado e o escritor, o sentido litúrgico e o tino literário. É a comunhão dos pendores. E não haveria como esquecer, bem especialmente nesta Casa, que os templos do catolicismo são também templos de arte. Nossa Igreja dá ao seu fiel, além de tudo o mais, a profunda sensação do belo. É esteticamente fascinante. O poder de conquistar as almas pelo estilo da sua revelação litúrgica completa-se e doura-se na arte da sua decoração, dos seus objetos, seus utensílios, na santidade dos materiais, no espírito das coisas, coisas de um mesmo espírito.

Ao egrégio colega, não faltou o acuro do escritor pedagógico, do didata da sua Igreja. Dois livros o demonstraram: Restaurar a Família em Cristo e Sacerdotes a Serviço da Família. Folga a Academia em assinalar que nessas duas obras de divulgação e de ensino básico não há, não poderia haver a monotonia, ou certas fealdades que tantas vezes indispõem os compêndios com os leitores a motivar; são, ao fim de contas, leitores amofinados, ou, na tribuna,costumam ser repetitivos. Bis repetita placet... A Vossa Eminência, prelado e mineiro, vem de molde este latim. Até porque, como ensinava Montalverne, há também uma arte no repetir – ou para melhor: uma repetição artística. É a sua, de escritor bafejado por uma educação literária, que ficou sendo o verniz da sensibilidade de nascença. Já a conhecíamos também em língua italiana, naquele retrato que nos deu de Paulo VI: Profilo di un Pastore.

Tive o privilégio de conhecer o Papa Paulo VI, quando ainda cardeal Montini, por ocasião de sua visita ao Rio, numa recepção na nunciatura, em Santa Teresa. Veio-me, ali, uma nova confirmação de que a finura pode estar em tudo; saboreei, naquela embaixada, o mais discreto, o mais suave, o mais ameno vatapá – eu ia dizer, presidente Nélida Piñon, o mais acadêmico de quantos me foi dado fruir... como que a dignificação do picante. E mais: servido artisticamente o quitute em tigelinhas decoradas a primor, capazes de fazerem concorrência às do acervo da Sra. Roberto Marinho, cuja ausência involuntária todos lastimamos. Não me importo de repetir: finura pode estar em tudo. E o ponto mais alto: a palavra do cardeal Legado, também para encanto (não marcial) do Marechal Juarez Távora sobre o que Sua Eminência chamou a “força da natureza ciclópica na floresta da Tijuca” – uma página literária que deitou ouro puro na conversa inesperada.

Vossa Eminência, Sr. D. Lucas, não frequenta o ensaio biográfico, mas, para algum observador surpreso por sua presença no gênero, já teria pronta a resposta, e seria colhida no relicário de Dante: Anche io sono pittore... Pintar foi o que fez o biógrafo do Santo Padre, a começar pela habilidade no jogo da cor, na dosagem dos matizes, como convinha ao Sumo Vigário de Cristo.

Mas o Eminentíssimo confrade já incursionou por terreno escorregadio, e sem queda: fez traduções. Foi assim quando trasladou para o Português as ideias que o Cardeal Sueneus, da Bélgica, enfeixou no seu livro L’ Eglise en État de Mission. Assim, por igual, ao traduzir Prières, de Michael Quoist, título que teve a excelente lembrança de substituir por Poemas para Rezar. Mais um primoroso achado literário que brotou de sua pena, título que se diria repousante ou em que repousa a alma do leitor. E me vem agora à memória, a propósito da sua estilística nos títulos, certo diálogo entre Humberto de Campos e Monteiro Lobato. Humberto informava do desejo de ver publicado novo livro seu. – Você é dos bons – expandiu-se Lobato, para logo indagar: – Como se chama o livro? E Humberto: – Ainda não escolhi título. O criador de Jeca Tatu fechou a conversa: – Então comece do começo. Escolha um título bem traquejado e depois me fale. O que o personalíssimo editor não poderia imaginar era que o seminarista Moreira Neves viesse a concorrer, precisamente na estilística dos títulos, com Gilberto de Mello Freyre, autor, dentre tantas outras obras, daquele Guia Prático, Histórico e Sentimental do Recife, único no gênero.

Pensa agora a Academia nos serviços de peso que poderia Vossa Eminência prestar à Crítica Literária entre nós. Não creio que seria a Crítica Tradicional, fundada em análises particularistas. Sua exegese não seria também a anatomia do texto em termos apenas de estilo e tema. A rigor, seria a Crítica Literária a serviço da crítica de certas ideias; ou literária na forma e filosófica pelo curso do argumento. Em qualquer hipótese, lucraria a nossa Literatura, em termos de hermenêutica mais larga. Disso, aliás, temos já algumas mostras auspiciosas. A última, creio, foi a sua aguda reflexão, exatamente crítica, em torno da espiritualidade de Machado de Assis, a falar pela boca de Bentinho, no Dom Casmurro. A curiosa figura da ficção machadiana encarna uma diferente e corajosa filosofia da dor – e está nisso a singularidade do seu enfoque, D. Lucas Moreira Neves. Machado fez ali, da sua trama romanesca, harmonioso pretexto para traçar um quadro de espiritualização do sofrimento. E Bentinho é o veículo. Vossa Eminência soube vê-lo a essa luz. Viu “claro e quieto”, como diria o próprio Machado...

Da sua sensibilidade de escritor, da qualidade da sua execução literária, assim no Ensaio como na Crônica de tese, da coloquialidade e sobriedade mineiras do seu verbo, ninguém, de boa mente, faria dúvidas. Aí estão, pelas prateleiras do País, seus nove livros de criação pessoal e duas traduções do Francês. Chega, assim, à nossa Confraria, trazendo bagagem “de boa conta e nota”, como certamente diria Fr. Luiz de Souza, e talvez dissesse o Pe. Manuel Bernardes, dois clássicos de um passado bem distante. Já Agripino Grieco, língua sem papas, estaria a dizer que seu cabedal “tem a vantagem de esclarecer os críticos de porta de café”.

Mas a sua consagração acadêmica explica-se ainda pelo alto nível de exponência no ofício que abraçou. Disse neste Salão Nobre o nosso Afrânio Peixoto que a ordem, no Ocidente, estava apoiada em três pilares: na Academia Francesa, a ordem intelectual; na Câmara dos Lordes, a ordem política; no Vaticano, a ordem moral. Vossa Eminência, o primeiro cardeal que aqui recebeu a bênção leiga do voto, vem a ser para nós, na trilogia de Afrânio Peixoto, uma dupla e caríssima presença: o Vaticano, sua Suprema Sé, e a Academia, fundada por um príncipe da Igreja Católica, cintilam nas matrizes da sua formação espiritual.

Da França – “a Santa Madre intelectual dos povos latinos”, para recordar Rui Barbosa – em boa hora nos veio o modelo acadêmico. E ela nos deu também a base física, deu-nos a casa – esta onde instalamos o nosso “condomínio vitalício”, como diria Alcântara Machado. Mais que tudo isso: transmitiu-nos uma filosofia do espírito acadêmico, senão mesmo do espírito à la longue – aquele que não comporta emblemas ou achegas designativas –, e vem a ser a pura força do que tem de mais profundo o sentimento humano: o anseio pela correção de rumos e ideias em busca da felicidade das criaturas. Há todo um espírito no âmago das mudanças de que brota a justiça entre os homens; justiça que vem a ser suporte moral da própria liberdade, seu conteúdo ético, seu óleo cristão, justiça para todos, extensiva, sólida, social; justiça profunda e larga, para que a liberdade, a suspirada liberdade das criaturas, não se dilua num vago estado de espírito ou não se perca em simples agitação no espaço,
sem realidade no tempo.

Livre-nos Deus do pecado político de pregarmos o imobilismo, o enquistamento em conceitos e preceitos que a vida foi denunciando e afinal revogou. Um belo exemplo de receptividade aos imperativos de retificação social e política está na atitude histórica da Igreja Católica ante os direitos propriamente sociais. E o contraste passou também à História: enquanto a Constituição Brasileira de 1891 não continha um só dispositivo sobre relações entre capital e trabalho, patrão e empregado, assistência e proteção ao operariado, a encíclica Rerum Novarum entrava no debate do século, lançando urbi et orbi, no mesmo ano de 1891, quatro meses após a promulgação da nossa Lei Magna, um legítimo e avisado código de justiça social. Corrigia-se a hipertrofia do individualismo. Socializavam-se as oportunidades de acesso ao bem-estar coletivo, aquilo que para Jacques Maritain era “dever e reclamo” e, no Brasil, só a Revolução de 1930 viria institucionalizar, incorporando cristãmente ao centro do Estado valores humanos dispersos na vida: o proletário, a mulher e a criança.

Mas a festa desta noite aviva nosso compromisso de fidelidade aos valores que plasmaram nossa formação. Como Graça Aranha, em seu libelo sob este mesmo teto, não queremos a insularidade no painel cultural do passado, só por ser passado. Mas teremos de reconhecer, bem especialmente nesta Casa, que o processo de desespiritualização e alienação, notadamente nas camadas jovens do País, vai crescendo numa temperatura de febre, ostentando, não raro, feições de um paroxismo tragicômico.

Estão no auge a poluição da palavra, a licenciosidade programada, a mediocrização estabelecida, erigida até mesmo em gênero literário; a imbecilização do humor, o embrutecimento ou a quase animalização do gosto na música, na recreação mecanizada, na decoração da casa e do corpo, nas vestes tanto mais regressivas ou selvagens quanto mais sumárias; na culinária tanto menos alimentícia quanto mais anunciada e às vezes tão sintética como amostra grátis.

É triste verificar que tudo isso perfaz um grosseiro processo de transplantação cultural, em que a menos culpada é nossa gente moça, como a maior parte da própria porção madura do povo, já intoxicadas pelo mais insidioso narcótico destes dias: a propaganda mercantil invasora. É a desnaturação cultural, acionada pelos instrumentos de mecanização das ideias e até do lazer. Ela aí está, ostensiva e torrencial. O ponto é resguardar pela contrapropaganda, a partir da primeira escola, as matrizes e motivações do nosso estilo de vida, tudo aquilo que compõe a gama dos nossos hábitos, no elementar da vida de cada dia. É nas coisas simples em que se reflete a sensibilidade coletiva, é nesse leque de realidades vividas pelo tempo adentro que se identificam os fundamentos endógenos da Cultura. Não seria preciso dizer que o essencial será impedir, pela ação do poder público, o aprofundamento da rotura desses padrões. Uma sociedade pode medir o índice de sua desintegração pela descaracterização das rotinas essenciais ou pelo abandono das formas materiais e imateriais da própria Cultura.

Sua investidura acadêmica, D. Lucas Moreira Neves, acontece em momento de agressão cultural, e ainda estão nubladas as nossas esperanças.Mas resta o consolo de sabermos que esta Casa existe e com ela o sentido e o sentimento de uma responsabilidade histórica, em termos claros de resguardo da inteligência polida pela Cultura e daquele Humanismo forte e latino, ponto alto no Catecismo Filosófico que nos legou o autor do Diário de um Pároco de Aldeia, aquele Georges Bernanos, romântico na própria severidade. Mesmo a festa desta noite, pela expressão cultural do seu próprio rito, é uma réplica a certos pressupostos de uma modernidade equivocada.

Por igual consoladora, foi a eleição de V. Eminência. Faz bem à Academia Brasileira poder reverenciar na galeria dos seus titulares um dignitário do Espírito e seu servidor de cada hora. Porque academia é isto: um núcleo que não se dá à vulgaridade, seja na palavra, seja nas ideias, assim no trato como na atitude perante a instituição e seus ditames. Ou isso ou a conclusão de Manuel Bandeira, moderno e insuspeito. Academia, opinava ele na sua graça veterana, é “centro de bons costumes literários”. E Joaquim Nabuco, após dizer da tradição e seus valores, alertou nesta sala: “Uma academia sem antiguidade é como uma religião sem mistério.

”Na concepção do grande homem, antiguidade não era retrocesso ou imobilismo. Não. O esteta da Abolição falou de antiguidade, pensando na sedimentação de uma cultura, para preservação de um certo espírito, que não terei por que definir agora...

A fabulação, sabemos todos, começa na infância e frequentemente recomeça na velhice. Serei a confirmação, para lhe rogar, Sr. D. Lucas Moreira Neves: não nos deixe cair em contradição com o espírito de Academus, mas nos livre do mal de o desservir, cuidando favorecê-lo.

It audatia est, Eminentia...

A cerimônia vai findando, mas nossa alegria e as luzes da Casa continuarão acesas, a começar pela Sala dos Poetas Românticos, de um lado, e, de outro, pela que tem o nome do mestre do nativismo literário no Brasil: Alencar.

Vamos todos, na paz da amizade, ao escritor, ao cardeal, ao cidadão, trindade exemplar.

Vamos ao pastor mor da Bahia. Nossa homenagem é uma expressão de nacionalidade. Pois não foi na Bahia que tudo começou para o Brasil?... Sob a mesma emoção, lembra a Academia que em Minas Gerais viu a primeira luz o menino Luiz. E hoje D. Lucas, o Primaz.

Minas é a arca da tradição libertadora e a sabedoria do equilíbrio, da serenidade, frutos, creio, de um bucolismo ancestral, de uma vocação campesina, de um sentido rural da vida. E na Literatura, como na Política, teria de refletir-se esse senso de moderação, até mesmo na opção pelo Modernismo. Um exemplo, e dos mais altos, está na poesia de Abgar Renault, parceiro afetuoso de Carlos Drummond de Andrade no lançamento da proposta modernista em Belo Horizonte. Seu antecessor, Acadêmico D. Lucas Moreira Neves, foi uma conjunção de pendores, aquele equilíbrio mineiro entre as formas do moderno e as do eterno, a aliança dos valores contrastantes: entre o
Modernismo aditivo ou supletivo e o outro, apenas supressivo ou predatório. Num, o ímpeto da inovação pela inovação; noutro, a assimilação do novo e a consciência do imperecível. O caríssimo confrade vem suceder a um devoto da conciliação e da harmonia, na Cadeira que lhe cabia de todo o direito, assim pelo sentido da sua vida como pelo espírito da sua obra. Acadêmico por definição e excelência, aqui o temos conosco e na muito especial companhia de um monge poeta, nosso D. Marcos Barbosa, recebido neste mesmo Salão pelo sempre presente Alceu Amoroso Lima, que Vossa Eminência teve a elegância cívica, a retidão e a serena altivez de escolher para seu paraninfo, no ato da sagração episcopal, em 1967, quando o pensador líder sofria o veto político de um regime de exceção.

Em nosso Trianon, a eleição do pastor, estilista do Ensaio e da Crônica, foi apenas o esmalte de uma decisão altamente majoritária – uma decisão tácita, que o pleito somente formalizou. A votação não foi como tantas outras. Fluiu – não em mar picado, mas em mansidão de lagoa; fluiu sem hiatos nem tropeços; deslizou. Nada mais natural: é muito sua esta Casa. Sempre foi.

18/10/1996