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Discurso de posse

Quando se vem ouvir falar de um homem como Assis Chateaubriand, é natural que se espere ouvir falar tanto do homem (do homem, simplesmente, ou do homem de ação e de suas realizações) quanto do jornalista e do escritor. Talvez, mesmo, ouvir falar mais do homem e de suas realizações do que do jornalista; e menos ainda, decerto, do escritor. A partir de certa época, Chateaubriand se empenhou, tão intensamente (embora paralelamente), em atividades estranhas à de jornalista, que o jornalista que ele foi, mais do que qualquer outra coisa, ficou num segundo plano, quase escondido pelas obras que, como homem de ação, ele realizou; da mesma forma, aliás, como o escritor que havia nesse jornalista ficou num segundo plano, escondido pelo jornalista e prejudicado pelas condições em que, como jornalista, ele tinha de trabalhar. Pois foi, precisamente, porque a figura do jornalista e a qualidade do escritor estão, a meu ver, injustamente, esquecidas de lado, que me decidi a concentrar-me nelas.

Compreendo os riscos desta decisão. Falar do jornalista e do escritor que foi exclusivamente jornalista, além de ser tarefa mais apropriada para um ensaio do que para um discurso, traz a obrigação de dar a ver o mais significativo de uma obra, escrita toda ela para jornais, que é imensa e variadíssima, e da qual é pequena a parte reeditada em livros. E compreendo, também, os “efeitos” de que estou abrindo mão: a extraordinária presença humana de Chateaubriand, de quem se disse que era um “homem do Renascimento”, parece pedir que se faça dele um perfil do mesmo tipo do que ele fez, aqui mesmo, de seu antecessor na Academia.

Contudo, mesmo que eu quisesse fazer de Chateaubriand um perfil do tipo do que ele fez de Getúlio Vargas, não passaria, esse perfil, de uma enumeração dissaborida de anedotas alheias, sabidas de ouvir contar. Estive com Chateaubriand uma única vez em minha vida, e embora nosso diálogo se tenha prolongado por umas duas horas de monólogo, esse contato não me permitiria trazer aqui a presença de um homem tão numeroso e complexo. Reunir anedotas sobre esse homem não seria tarefa difícil, materialmente. Muitas delas estão publicadas e muitas são conhecidas, até por tradição oral. Por outro lado, ainda vive, felizmente, a maioria dos companheiros que com ele conviveram tantos anos, e dos colaboradores que com ele viveram tantas campanhas. Mas que verdade, como retrato, teria esse Chateaubriand anedótico, feito por um homem que apenas o conheceu?

Isso para não falar no caráter problemático do processo. O gesto ocasional, que é uma anedota, permite, no máximo, a compreensão correta de um comportamento de momento, ou de um estado de espírito de momento. E por ser coisa pessoal, uma anedota contada sobre um homem, por uma pessoa determinada, pode nada dizer a outras pessoas que conheceram igualmente o mesmo homem. Nada dizer e, até, ser contradita por outra anedota, ocorrida com outra pessoa em outra circunstância. Além do que, há as deformações em que cai fatalmente o narrador, com a propensão para acentuar o que lhe parece mais característico de tal homem, mas que talvez só a esse narrador parecerá característico. Para o retrato de um homem, com a vivacidade e o temperamento versátil de Chateaubriand, o método está longe de ser o mais indicado.

Quanto à obra não literária do homem de ação Assis Chateaubriand, permiti que nem mesmo a enumere. Ela está aí, de pé, mais visível que sua obra de escritor, e recordá-la é, por isso, desnecessário. A respeito dessa obra não literária, eu gostaria apenas de chamar a atenção para dois de seus aspectos: para o fato de ter sido como jornalista, por meio de campanhas jornalísticas, que Chateaubriand chegou a realizá-la; e para o caráter cultural da maioria das instituições que ele chegou a realizar. Esses dois aspectos, com a confiança no poder da palavra e com o apreço à Cultura que fazem supor, muito mais do intelectual, bastariam para justificar minha preferência por vos falar do jornalista e do escritor entre os vários Chateaubriand de que é possível se falar.

Devo esclarecer que não me proponho a deixar de lado, inteiramente, o homem Chateaubriand, e falar, técnica e profissionalmente, do jornalista e do escritor. O que me proponho a deixar de lado é a anedota desse homem, aquilo que os que privaram mais com sua pessoa do que com sua escrita têm tendência a considerar todo esse homem: ou o mais significativo desse homem.

Nem poderia ser outro o método de alguém que quisesse dar a entender a obra de um escritor que foi sobretudo um jornalista. Pois se, num jornalista qualquer, já é difícil traçar uma linha nítida entre sua obra e sua personalidade, em Chateaubriand essa dificuldade se faz impossibilidade. A obra de um jornalista, todos o sabemos, não é nunca a obra de um escritor de gabinete, e uma análise puramente estilística não levaria muito longe. Para se apreender a obra de um jornalista, creio, mesmo quando se está apenas à procura de sua qualidade literária, é indispensável levar-se em conta o homem que a escreveu: desde as condições em que esse homem escreveu até o que levava esse homem a escrever.

No caso de Chateaubriand, essas condições foram as condições comuns aos jornalistas profissionais. Mas há nele um traço psicológico que não se pode deixar de levar em conta, e que ele mesmo definiu, ao declarar no Senado: “Sou uma índole de controvérsia”. Índole que, sem dúvida nenhuma, Chateaubriand pôde expressar amplamente, pois não sei de jornalista que mais se tenha envolvido em controvérsias, que mais tenha amado a controvérsia. Era como se só concebesse viver nesse clima, e não espanta que, apesar de tudo o que de positivo ele realizou, tenha vindo a ser um dos homens mais controvertidos do nosso tempo.

Esse traço de seu caráter, aliás, já se havia revelado em sua mocidade. Lembremo-nos da maneira inteiramente gratuita com que, em A Morte da Polidez, lançou-se contra Sílvio Romero, na polêmica que este mantinha com José Veríssimo. E esse traço de caráter continuou pela vida afora: a leitura de seus discursos no Senado dá a impressão de que o orador só “entrava em calor” quando os apartes se cruzavam a sua volta, ou quando violentamente aparteado ele mesmo. Nessa atmosfera de polêmica viva ele parecia mais à vontade e toda sua vivacidade despertava. Essa era a atmosfera preferida de sua inteligência e a mais propícia a seu estilo de escritor e ele tudo parecia fazer para provocá-la.

No entanto, se reconhecer no homem esse gosto da controvérsia é a meu ver essencial para entender-se a obra do jornalista, é a meu ver dispensável o estudo da substância de suas muitas controvérsias.

E não deixo suas ideias de fora deste elogio acadêmico apenas por conveniência, pessoal ou acadêmica: por nem sempre estar de acordo com o que ele combateu ou defendeu, ou para não trazer aqui, hoje que a Academia lhe presta sua homenagem pública, motivos que possam embaçar a figura do grande escritor que por tantos anos foi membro desta Casa.

Deixo de lado essas ideias porque elas não ajudam a compreender a qualidade da obra do escritor. Elas foram para ele, mais que nada, o pretexto que lhe permitia escrever como ele preferia escrever: como quem luta. Mas essas ideias não constituem um corpo sólido e sistemático que tivesse dado cor e sabor ao escritor Assis Chateaubriand; ou sem a consideração do qual não se pudesse sentir, nem dar a sentir, a maneira desse escritor, com o que nela é válido e pessoal.

O próprio Chateaubriand tinha consciência desse outro traço de sua personalidade e chegou mesmo a confessá-lo. Também no Senado, referindo-se um dia a Rui Barbosa, disse: “Era um vasto erudito, um maravilhoso ourives da língua, um gênio enciclopédico, mas faltava-lhe Weltanschauung... Sei bem o que é isso porque sofro do mesmo mal.”

Homem de idéias Chateaubriand o foi, mas num outro sentido: no sentido de homem capaz de levar até o fim as idéias que o interessavam em determinado momento; no de se comprometer por uma ideia. Por isso, mais do que as ideias desse homem é a maneira como esse homem adotava as ideias que tem utilidade para se definir o jornalista Assis Chateaubriand.

Assim, é pedindo perdão por minha preferência de escritor, o que não pode ser de estranhar numa Casa de escritores, e à qual comparece uma audiência já habituada, decerto, com a vaidade que dizem ser a nossa, a dos escritores, que venho a vossa presença pronunciar o elogio do grande prosador paraibano do Umbuzeiro. E não disse “grande prosador paraibano do Umbuzeiro” como forma retórica: é que, para mim, o jornalista Assis Chateaubriand foi na verdade um prosador dos melhores, e um prosador em que estão presentes os traços mais distintivos dos escritores do Nordeste.

Pode surpreender que, para tentar definir o tipo de jornalista que foi Chateaubriand, comece eu por dizer o que ele não foi nunca; ou nunca se interessou em ser: um editorialista. Íntimo amigo seu, companheiro de jornal de dezenas de anos, disse-me, mesmo, que não se lembrava de haver visto um só editorial escrito por ele. Isso é significativo, embora possa surpreender num homem que, desde a mocidade, foi um jornalista de redação, e que, mais tarde, dono de jornais, nunca se limitou a ser um homem de empresa, interessado exclusivamente em marcar a linha de seus jornais: mas que continuou, toda a vida, um jornalista de escrever.

Não sei as razões do desinteresse de Chateaubriand pelo editorial, esse gênero de Jornalismo que é o de mais categoria entre os muitos ingredientes que entram na cozinha de um jornal; desinteresse tanto mais de chamar a atenção porque o editorial é a tribuna política do jornal, e quando se pensa em que Chateaubriand foi um jornalista preponderantemente político. Talvez que esse desinteresse viesse da necessidade mínima de disciplina que o gênero requer. Mas acho mais provável que Chateaubriand não confiasse em sua capacidade de escrever impessoalmente, e que achasse não haver sentido em escrever anonimamente editoriais cujo autor seria identificado, à leitura das primeiras frases, pelo leitor menos arguto.

Esse desinteresse explica, a meu ver, muita coisa. Sobretudo mostra que Chateaubriand se sentia pouco inclinado a escrever com a impessoalidade de estilo do editorialista clássico, com a sua superfície polida, com seu tom mais de árbitro que de advogado, mesmo quando advogado, e que, mesmo quando advogado, tem de eliminar de sua dicção tudo o que é o timbre, ou o sotaque, de um homem determinado, intérprete que ele é, no editorial, menos do ponto de vista de um homem do que do de uma instituição ou do de uma corrente de opinião. Prosa essa, de editorialista, que tantos escritores de transparente fatura deu à nossa história literária e que tantos nomes deu à vossa Academia.

Daí ter Chateaubriand preferido, sempre, o artigo assinado: é que nesses artigos ele podia se abandonar inteiramente a sua maneira pessoal de escrever, sua maneira informal de escrever, sem ter de abafar para nada a viveza de sua frase nem de disfarçar seu sotaque inconfundível. Nesse sentido, vale notar que muitos desses artigos assinados, por sua matéria, caberiam melhor num editorial. Mas Chateaubriand preferia fazer deles a opinião de um homem: e muito embora os jornais em que os escrevia lhe pertencessem, escrevendo artigos assinados, esse homem radicalmente inconvencional devia se sentir mais livre, não digo de contradizer a linha de seus jornais, mas de transbordar dela, como se fosse ele um colaborador de fora, um outro Assis Chateaubriand, livre dentro dos jornais de Assis Chateaubriand.

Imagino também que, assinando seus artigos, além de maior liberdade, digamos, literária, Chateaubriand devia sentir mais liberdade para exercer aquilo de que falei há pouco, com suas mesmas palavras: sua “índole da controvérsia”.

E não só mais liberdade como mais efetividade para abrir polêmicas, um artigo assinado podendo, muito mais do que um editorial anônimo, despertar debates e reações, por ser a obra de um homem determinado, que, se identificando, faz-se responsável, e diante de quem é mais difícil a alguém fazer-se de desentendido; uma obra que não é uma obra sem face, como o editorial, que é obra como que de ninguém, por parecer vir de uma entidade abstrata, quase obra como de máquina.

O gosto da controvérsia explica também o feitio desse polemista: sua maneira de lançar-se nos debates sem meias-tintas nem meias-palavras; empenhando-se neles apaixonadamente; entregando-se completamente a cada um deles, sem o cálculo do homem político, que sabe até onde quer e deve chegar, nem as reservas do homem de empresa, que receia ir mais além desse onde chegar: para só citar dois tipos sociais com que ele tanto conviveu, com cujos interesses sempre esteve associado, mas que o devem ter visto sempre, quando seu associado, desconfiadamente, como um verdadeiro espalha-brasas. E (não creio que seja absurdo dizê-lo) esse seu gosto da controvérsia o deve ter levado, de propósito, e mais de uma vez, a adotar campanhas que ele sabia as mais impopulares.

Depois desse seu gosto da controvérsia, há um segundo traço em Assis Chateaubriand que me parece essencial para definir o tipo de jornalista que ele foi. Deste, também, ele tinha consciência, e muitas vezes aludiu a ele: gostando mesmo de se classificar como repórter, “simples repórter”. Na verdade, em tudo o que escreveu, sente-se a preponderância do fato acontecido, do dado concreto, da observação de momento, da anedota vista ou ouvida; e tudo o que ele escreveu parte sempre do episódico e está limitado pelo circunstancial: coisas, todas essas, que constituem o instrumento e o material do repórter. E vê-se também, em Chateaubriand, muito pouco de discussão abstrata de ideias e quase nada de especulação ou de jogo de idéias.

Em seu livro A Alemanha, está muito à vista um dos lados mais característicos desse repórter: a atração maior que sentia pelos homens do que pelas coisas. A metade dos capítulos tem por título o nome da personalidade que entrevistou, e as entrevistas que fez são a base de quase todas essas reportagens. Chateaubriand mesmo, no prefácio, dá-se conta disso:

Domício da Gama, que já lera algumas das correspondências que eu enviara ao Correio da Manhã, foi o primeiro a sugerir-me a idéia de um livro sobre a Alemanha. Só me reclamava ele, com aquela sua infinita doçura de desencantado, um pouco de paisagem. O livro saiu; mas infelizmente aparece sem paisagem, como um bosque de inverno setentrional ou de verão do Nordeste. As tintas de colorido humano, a espaço aqui derramadas, não suprem a ausência de graça vegetal, que me pedia aquela voz amiga.

O que Chateaubriand chamou de “colorido humano” foi, de fato, o que sempre o atraiu.

Contudo, esse repórter que parece pensar somente a partir de fatos que observou, e escrever somente com os fatos que tem na mão, nunca foi o repórter que se apaga por detrás do que os fatos dizem. Chateaubriand participava, e nunca friamente, do sentido dos fatos que lançava, punha de enfiada, empilhava em cada artigo. E essa sua atitude não vem da época de jornalista eminente. Essa incapacidade de apagar-se por detrás da linguagem dos fatos é visível, já, no autor das reportagens sobre a Alemanha de 1920: muitas das entrevistas que fez então, quando não soam como verdadeiros debates entre o entrevistador e o entrevistado, revelam a mão do entrevistador, completando, discutindo, sublinhando o que disseram os entrevistados; levando-os, a todos, na direção da tese de todo o livro.

Esses dois traços do jornalista Assis Chateaubriand criavam uma dualidade que descreve melhor do que nada, o que ele foi como jornalista: um curioso cruzamento de polemista e de repórter; de homem em que era muito forte a “índole da controvérsia” e de homem que, à linguagem das ideias abstratas, preferia a linguagem factual do repórter. Não é que o polemista e o repórter se alternassem, ora num, ora noutro artigo. Eles se alternavam, mas dentro de um mesmo artigo, dando-lhe um hibridismo que não era a menor originalidade de seu estilo de jornalista. O jornalista Assis Chateaubriand era um repórter de debate e um polemista que escrevia com coisas.

É evidente que falar da obra de um jornalista, e de um jornalista prolífico e de toda a vida como Chateaubriand, obriga a simplificar e a generalizar. Não pretendo dizer que Chateaubriand não tenha escrito nunca uma pura reportagem. Em sua obra de jornalista existe de quase tudo, e até artigos da prosa mais desinteressada, quase como feitos para si mesmo. Lembro-me, por exemplo, dos artigos que escreveu na campanha pela criação dos aeroclubes, datados muitos deles de bordo do “Raposo Tavares”, avião em que deve ter cruzado, palmo a palmo, todos os céus do País. Em muitos deles, a ausência do que defender, ou combater, levou-o a escrever, mais do que reportagens, inocentes crônicas de viagem. E às vezes mesmo, nessas viagens vazias, a ausência do que reportar levou-o a escrever páginas que poderiam passar, quase, como páginas de um jornal íntimo, e não de viagem.

Páginas menos para lidas que para escritas; porque escrever, embora a luta fosse o clima de sua inteligência, é o que era para Chateaubriand a necessidade compulsiva. E nem o exílio, nem as viagens, nem qualquer de suas atividades extrajornalísticas conseguiram interromper essa corrente de palavra escrita que começou no jornalista adolescente do Diário de Pernambuco. Essa corrente de palavra escrita, só a doença final conseguiria rompê-la. Mas a qualquer melhora, ele recomeçava a escrever, e, sobrevivente do primeiro golpe da doença, ao querer se recuperar, vendo que não poderia mais escrever a mão, aprender a escrever a máquina foi seu primeiro cuidado. Como se nele o sentimento de existir coincidisse, ou se confundisse, com a atividade de escrever.

Seu gosto da controvérsia explica, acho eu, certo ponto de sua biografia: porque depois de um concurso para a Faculdade de Direito do Recife e de uma viagem ao Rio para defender a cátedra que por motivos políticos não lhe queriam dar, no Rio tenha ele permanecido, entregue ao Jornalismo, como se de repente tivesse compreendido que a atividade de professor não poderia satisfazer aquele seu gosto da controvérsia; e que a atividade de jornalista num meio mais limitado, como o da província, não poderia satisfazer esse gosto, ou satisfazê-lo com a intensidade que, pelo que se depreende de sua vida posterior, Chateaubriand devia então desejar.

Da mesma forma que seu gosto da controvérsia, seu lado de repórter, de homem cuja linguagem é feita mais de fatos do que de idéias, explica outro ponto de sua biografia: seu curto exercício da profissão de advogado, a que se dedicou, em certa ocasião, no Rio de Janeiro. Quem sabe?, essa profissão, que lhe permitiria escrever e agir permanentemente num clima de controvérsia não o tenha interessado muito tempo porque, nela, a controvérsia, embora se inicie num plano concreto, não permanece nunca nesse mesmo plano. Mas fatalmente se amplia, e vai subindo, de instância a instância, para planos em que é mais frequente o debate de idéias, até acabar, muitas vezes, num plano de pura especulação de ideias. Ora, o gosto da especulação, nesse homem de grande curiosidade intelectual, está tão ausente de seus temas quanto o abstrato do debate de ideias está ausente de sua linguagem.

Se não será motivo de surpresa para ninguém dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista, creio que poderá, sim, causar surpresa dizer que ele foi, também, um grande escritor. Há certa tendência em se querer ver, num jornalista, menos sua obra escrita do que o que ela provoca; menos o prosador do que o homem público. Ora, como Chateaubriand manteve durante mais de cinqüenta anos seu braço a braço diário com a opinião pública do País, e como deixou toda uma série de realizações não literárias, mais de homem público, ele, mais do que nenhum, correu o risco de que a qualidade de sua prosa ficasse despercebida.

Porque, para o leitor corrente, a expressão grande escritor, quando aplicada a um jornalista, está destinada ao escritor que, de fora da redação, também escreve para jornal; muito mais para este do que para quem, dentro da redação, escreve sujeito às condições em que tem de trabalhar o profissional de jornal; isto é, os que possuem aquele tipo de inteligência que Eliot definiu como a do jornalista: a “que só pode dedicar-se a escrever, ou que só produz o melhor do que escreve, debaixo da pressão de uma ocasião imediata...”

Assim, permiti-me inverter os termos da tendência mais geral e dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista não por suas realizações nem por suas lutas, mas, antes de tudo, porque foi um grande escritor em prosa. E grande escritor não por haver escrito conservadoramente, mas, e sobretudo, porque foi um escritor criador: um escritor que soube passar ao lado de todos os rolos compressores a serviço da uniformidade, e, portanto, da pobreza estilística, não pelo puro gosto de subverter regras, mas porque havia nele essa qualidade especial, e rara, que revela, mais do que qualquer outra, o verdadeiro escritor: certa maneira pessoal de usar a linguagem que dá um sotaque original ao que ele escreve. Não gratuitamente mas funcionalmente original, isto é, adaptado ao que ele tem a dizer, e capaz de fazer mais significativo o que ele tem a dizer.

E o que é importante fazer notar: homem de redação toda a vida, mesmo quando dono de jornais, o exercício do Jornalismo nunca neutralizou o que me parece o traço mais saliente de seu estilo de escritor, que foi o de escrever numa língua falada. Nisso, aliás, Chateaubriand, homem de redação, se aparta do que acontece com os homens de redação. Pois se as condições do trabalho de redação prejudicaram esse escritor sob certos pontos de vista, não puderam prejudicá-lo naquilo que, para um escritor, é essencial: encontrar sua voz própria, esse sotaque pessoal, que Chateaubriand, com o instinto do verdadeiro prosador, transformou em estilo.

A língua de jornal, por mais simples e espontânea que seja, e por mais dia a dia que seja o fato que tem de noticiar, não é uma língua falada. O exercício do Jornalismo, a obrigação de escrever, de qualquer maneira, sobre o que quer que aconteça, e sempre contra o relógio, não leva o jornalista a empregar sua maneira própria de falar, sua voz física: sim, o leva a empregar uma língua outra, a língua de jornal, o jornalês. O corre-corre e a improvisação, entregando o jornalista a sua espontaneidade, não o entrega aos tiques pessoais de sua voz física, mas a seus tiques profissionais automatizados: uma série de fórmulas e de lugares-comuns, absolutamente de ninguém, e que afloram mecanicamente a sua desatenção, precisamente porque ele não pode pôr toda sua atenção no que escreve.

Não creio que seja este o momento para entrar em considerações sobre a viabilidade de se escrever numa língua falada absoluta. Um leitor de Chateaubriand que o tenha conhecido, mesmo superficialmente, como é meu caso, recordará como sua escrita se parecia com sua voz física. Como já disse, estive com ele uma só vez em minha vida. Mas se antes daquelas duas horas de monólogo quase ininterrupto, seus artigos já me pareciam bons exemplos de estilo falado, tive a impressão, ouvindo-o falar naquela noite, de que conhecia sua voz há muitos anos: desde os anos de minha primeira adolescência, quando lia seus artigos do Diário de Pernambuco.

E já nunca mais o pude ler sem ter a impressão de que o estava ouvindo falar. Voltava-me sempre o timbre de sua voz, colocada sempre em seu mais alto registro, mas que parecia ter alguma coisa que a abafava e que dava ao tom de sua conversa a sensação de que ele estava sempre em luta, em primeiro lugar contra sua própria garganta. E voz sempre tensa, intensa, apaixonada, como no limite de si mesma: por menos controvertido que fosse o assunto da conversa; por menos discussão e mais narração que fosse o assunto da conversa, como no meu caso, que era de coisas da política do Pernambuco de sua mocidade.

Creio que se pode sentir uma evolução clara no estilo de Chateaubriand, assinalada, exatamente, pela maior frequência em sua prosa dessa língua falada. Ela está ausente, por exemplo, em A Morte da Polidez, em que ele parece menos interessado em escrever com sua voz própria do que em dar uma demonstração de que o jornalista de vinte anos conhecia bem a técnica dos grandes polemistas da época. E se essa língua falada começa a aparecer em A Alemanha, livro de 1921, a verdade é que aparece em muito poucos momentos, como se o jornalista de trinta anos ainda não tivesse consciência daquilo que viria a ser sua maneira, ou não se sentisse ainda com toda a liberdade de exercê-la.

Por outro lado, se é certo que o estilo do primeiro Chateaubriand é menos pessoal como textura, e está ainda longe da estupenda liberdade com que escreveu a partir dos últimos anos vinte, é também verdade que a estrutura de seus primeiros artigos é muito mais construída e bem acabada. Esses artigos e reportagens mais antigos têm mais coesão e coerência e não sofrem do fragmentarismo das obras de sua maturidade (que contudo são, como já disse, muito mais pessoais como textura). Ao mesmo tempo, sua prosa mais antiga parece saber melhor onde quer chegar, segue uma continuidade mais linear e clara do que a prosa de rumo caprichoso de sua maturidade, que é inesperada, sempre a ponto de transbordar de si mesma, ou de se bifurcar por atalhos incidentais absolutamente imprevisíveis.

Não pretendo que houvesse em Chateaubriand um projeto consciente de escritor de chegar a uma linguagem falada. Creio, bem mais, que ele chegou a ela por motivos psicológicos que estão, mesmo, no oposto de qualquer “vontade de estilo”. A linguagem falada se foi desenvolvendo nele à medida que foi mudando sua situação de jornalista: à medida que esta lhe foi dando uma maior liberdade como prosador. Mas seu estilo não é em nada um estilo construído, planejado: é simplesmente o estilo que ele achou quando sua situação de jornalista-dono-de-jornais lhe permitiu escrever, não em estilo de jornal, mas da maneira como bem lhe parecesse. Ora, ao poder escrever como bem lhe parecesse, Chateaubriand se viu escrevendo como falava.

Essa maior liberdade de que o jornalista-dono-de-jornais, com seu temperamento informal e insofrido, passou a gozar, explica, a meu ver, dois aspectos de seu estilo: o primeiro é essa falta de estrutura, a que me referi há pouco. A liberdade de poder escrever como bem lhe parecesse não o obrigava a dominar a impaciência e a pressa que o jornalista dos primeiros anos tinha de dominar, e como que o desobrigava de selecionar, entre tudo o que lhe ocorria sobre um assunto, os elementos mais relevantes: escolhê-los e organizá-los numa estrutura determinada. Chega a parecer que Chateaubriand ignorava que a organização de uma mensagem aumenta o impacto dessa mensagem, tanto por impedir que seus diversos elementos percam sua força, anulando-se ou dispersando-se, quanto porque, em matéria de comunicação, o conjunto tem uma força maior do que a simples soma de seus elementos.

O segundo aspecto é a crescente presença, em sua linguagem de jornalista, da linguagem do Nordeste. Quando liberado dos espartilhos da convenção jornalística, a que o obrigava o fato de escrever para jornais de outros, Chateaubriand encontra, escrevendo, sua maneira de falar, sua voz física: ora, por debaixo dela estava o Nordeste, que era o timbre e a dicção dessa voz. Foi a presença dessa linguagem do Nordeste, viva ainda nesse nordestino depois de tantos anos de ausência, que a muitos de seus leitores de fora da região pareceu, às vezes, gosto pelo puro pitoresco, senão expressões inventadas por um amor gratuito ao pitoresco. Entretanto, sua maneira de escrever é a maneira de falar de sua região, tanto quanto os tons de humor, extremados em caricatura, que ele empregou freqüentemente.

Ao me referir ao emprego da língua falada como a qualidade que melhor define o prosador Assis Chateaubriand, talvez seja preciso um esclarecimento. Nesses artigos de sua maturidade, que são aqueles em que sua prosa se faz mais pessoal, sua língua não tem a entonação horizontal, lhana, em tom de conversa, qualidades em que se pensa, geralmente quando se fala de língua coloquial. Por isso, usei a expressão língua falada e não língua coloquial. Esses artigos estão escritos numa língua falada, mas na língua falada pessoal do homem Assis Chateaubriand, e não numa língua de quem estava procurando reproduzir a maneira de falar de uma situação determinada, ou de uma pessoa outra. Assim, ela nada tem dos tons variados de uma conversa, mas o tom único de uma discussão, ou de um debate. E é a língua de uma pessoa que fala como quem discute, como era a própria fala de seu autor, e que discute sempre apaixonadamente.

E também não se sente nela, jamais, o tom do oráculo ou do professor; e menos o de quem pretende dizer a palavra definitiva e lapidar. E, sempre, a voz de Chateaubriand, a voz física de alguém que busca convencer e influenciar alguém; é sempre a voz de quem está numa discussão e se apoderou da palavra num interminável monólogo, e que, por isso mesmo, porque parece monologar durante uma discussão, nunca esquece a presença do adversário, e, embora não lhe ceda a palavra, monologa como antecipando todas as possíveis objeções desse adversário; e é sempre a voz de quem, embora apaixonado, não despreza o adversário e não se situa jamais acima dele: mas se esforça sempre para se manter num nível em que a discussão seja possível; e sobretudo em que a discussão possa continuar.

Essa prosa falada de Chateaubriand se foi fazendo tão natural que, a partir de certo momento, é impossível distinguir o que escreveu como artigo de jornal do que escreveu como discurso; ou o discurso que improvisou, e que, recolhido por algum taquígrafo, foi publicado como artigo de jornal, da transcrição de um monólogo informal do conversador infatigável que ele era. Seus discursos no Senado, tanto como seu discurso de recepção na Academia, e os muitos outros que ia improvisando nas mil inaugurações e batismos de suas campanhas, muitos deles publicados no local reservado a seu artigo diário, são boas confirmações disso.

Não creio que para chegar a esse estilo de prosa, que faz de Chateaubriand um caso especial em nosso jornalismo profissional, tenha sido casualidade o fato de, nascido em 1891, ter sido ele contemporâneo dos criadores de nosso Modernismo. Nada sei da opinião que Chateaubriand fazia do grande movimento renovador nem até que ponto se interessou por ele. Na época da Semana de Arte Moderna, Chateaubriand já estava dedicado ao Jornalismo político, e as questões literárias, que o haviam ocupado na mocidade, deviam estar fora de sua área de interesse; na época do Modernismo, seu destino de jornalista já estava cristalizado, embora não ainda a prosa desse jornalista.

Nem me causaria surpresa saber que sua atitude em relação a muitos dos princípios do Modernismo tenha sido de incompreensão. Mas não se pode deixar de fazer notar que sua prosa foi ganhando personalidade paralelamente à obra dos escritores de 1922. Temperamento que nada tinha do pseudoclássico da época, inconvencional até no comportamento, espírito curioso e sem preconceitos, é impossível que Chateaubriand não tenha sido marcado, senão pelas teorias, sim pela maneira de fazer, primeiro, dos modernistas, que lutavam para criar uma Literatura que usasse uma língua mais aproximada da que se usa no Brasil; e, depois, pelo Romance do Nordeste e pela obra de outros romancistas do Sul dos anos posteriores a 1930, que lutavam para diminuir o fosso que se tinha ido cavando entre nossa língua escrita e nossa língua falada. Ou marcado, senão pela maneira de fazer, ao menos pelo exemplo de inconformismo estilístico que davam aqueles escritores, inconformismo que não devia repugnar ao homem inconvencional de raiz que foi Assis Chateaubriand.

Assis Chateaubriand, com o sense of humour que não era uma das menores qualidades de sua prosa, ao se empossar nesta Cadeira, chamou-a de “paiol de pólvora”. Disse que era “barulhenta” a “memória dos que aqui se sentaram”, e chegou mesmo a falar na “rotina desse clima celerado da Cadeira de Gonzaga...” E com outro traço de humour, que completa e realça o primeiro, excluiu-se ele mesmo dessa rotina, dizendo: “Acredito que a Academia me elegeu como quem busca uma natureza de equilíbrio para tirar o demônio que há mais de cinquenta anos ronda esta Cadeira.”

Por mim, devo dizer que não consigo ver nenhuma tradição comum às personalidades de Tomás Antônio Gonzaga, Silva Ramos, Alcântara Machado e Getúlio Vargas; e à qual seria estranha a de Assis Chateaubriand. E se tento imaginar uma tradição que possa parecer comum ao patrono da Cadeira e aos que me antecederam, descubro é que a memória do próprio Chateaubriand não foi a menos “barulhenta” delas.

É possível que o “demônio que ronda essa Cadeira”, e que fez dela um “paiol de pólvora”, seja o demônio que gosta de seduzir o intelectual, soprando-lhe ao ouvido os encantos de uma carreira política.

Mas se é esse o demônio, a verdade é que não é ele assim exclusivo da “Cadeira de Gonzaga”, pois tem seduzido, ou tentado seduzir, tanto ocupantes de outras Cadeiras da Academia quanto escritores de fora daqui.

De fora daqui, da Academia, e de fora do Brasil. E se fosse necessário indicar os territórios da preferência desse demônio, eu diria que ele age com mais frequência naqueles países em que as condições da vida social não permitiram ainda diferençar, suficientemente, os intelectuais (homens de vocação criadora, nas Artes e nas Ciências) dos homens políticos que, ocasionalmente, participam da vida intelectual: quer porque o nível desses intelectuais é menos elevado, e os homens políticos podem, em seus momentos de fastio ou ostracismo, passar por um deles, quer porque, dispondo de mais cultura do que os que possuem verdadeira vocação política, os intelectuais são atraídos e utilizados por estes. De onde não ser raridade o caso de intelectuais que, pensando mais em sua superioridade cultural própria do que na diferença de estrutura mental entre as duas atividades, imaginam-se capazes do papel de homem político.

Possivelmente, nesta Cadeira, os casos de sedução tenham sido mais frequentes. Mas o tal demônio não parece ter prevalecido contra seu fundador, intelectual puro, professor que exerceu seu magistério com uma entrega absoluta. A vida de Silva Ramos é dessas que nos fazem acreditar em que a vocação é uma força absorvente. Poeta e tradutor de poetas, seu interesse pela mecânica da língua o absorvia demais para que ele dedicasse mais tempo à pura criação. Decerto foi a força dessa vocação que lhe deixou os ouvidos moucos à sedução de tal demônio, isso numa época em que a rareza de homens com formação como a dele devia fazer mais fácil abrir-se um caminho na Política. E é curioso notar que, de volta de Coimbra, não se demorou muito como delegado de polícia em sua cidade do Recife, e cedo preferiu a esse cargo, que era porta habitual de entrada na Política, o encargo de professor de meninos.

É verdade que esse demônio parece ter prevalecido em dois casos: no do próprio Assis Chateaubriand e no de Gonzaga, patrono da Cadeira. Mas não sei até que ponto a participação na Conspiração mineira do grande lírico brasileiro do Porto (que, apesar de ser do Porto, foi o criador de uma das tradições mais brasileiras de nosso lirismo tanto quanto do primeiro nome brasileiro não indígena de mulher: Marília), sendo um ato político, continha o desejo de participar mais tarde, como político, da vida daquele Brasil pelo qual estava conspirando. Creio, bem mais, que a sua foi uma tomada de posição diante de uma situação que considerou injusta, e que, participando da Conspiração e escrevendo as Cartas Chilenas, atos políticos ambos, estava agindo mais como um intelectual lúcido e responsável do que se candidatando à vida de político profissional.

No caso dos dois outros ocupantes da Cadeira, Alcântara Machado e Getúlio Vargas, se houve vitória de algum demônio, foi a de um demônio diferente do primeiro. Foi a vitória de um demônio outro, igual de ativo também, mas que age com intenções opostas à de seu companheiro; este outro seduz para a Literatura pessoas cuja vocação é, primordialmente, a ação política.

No caso de Alcântara Machado, talvez porque lhe tenha cabido mais raramente o poder político, coisa que impede a entrega simultânea a qualquer atividade fora dele mesmo, a sedução levou-o mais longe: levou-o ao exercício mesmo da Literatura. Mas não é de estranhar que tenha sido História o que escreveu, gênero mais próximo de sua vocação verdadeira, a de político, e uma história bem próxima de seus interesses de político: a de coisas de seu Estado de São Paulo. Sua inteligência e sua cultura extraordinárias salvaram-no de fazer obra de simples amador.

No caso de Getúlio Vargas, porque o exercício do poder político foi longo e lhe coube desde muito jovem, o segundo demônio só o pôde seduzir com o gosto pela vida literária no sentido em que esta pode ser tomada como convivência com escritores. Nessa convivência, Getúlio Vargas deve ter apurado certo bom gosto que se sentia na maneira como pronunciava seus discursos, sempre discreta, sem os derramentos e dós-de-peito da maioria dos “tribunos”, que em 1930 o carregaram até o Catete, nos braços de uma oratória municipal e já então fora de moda, e que, para muita gente, ainda hoje, é o que significa “falar bem”.

Quanto a Chateaubriand, seu caso é mais difícil de deslindar. Não chamo sedução política os mandatos de Senador que lhe vieram já passada a maturidade, numa idade em que a experiência de viver imuniza um homem de sua inteligência de querer ser o que sabe não poder ser. O demônio da política o seduziu não no sentido de levá-lo a fazer-se um político profissional, mas no de levá-lo a fazer do Jornalismo político o gênero mais frequente de sua atividade de jornalista.

Além disso, Chateaubriand se viu constantemente envolvido na vida política de seu tempo, e não somente como jornalista mas como protagonista. Contudo, se se examina de perto sua “presença na Política”, não se pode deixar de notar, e de admirar, a maneira como ele se movia dentro dela: com uma liberdade e uma disponibilidade que têm mais a ver com o comportamento do intelectual do que com o do político, de profissão ou de vocação. Cabe notar também que, se ele esteve sempre envolvido na Política, raramente esteve comprometido com partidos políticos. Ele adotava esta ou aquela tese, esta ou aquela campanha, este ou aquele partido político, mas isso não acarretava a adoção da ortodoxia de um partido. O “contingente e o episódico”, próprios do jornalista, marcavam também sua fidelidade política, e uma campanha parecia ser a medida máxima dessa fidelidade.

Essa incapacidade de ortodoxia, sensível no Chateaubriand “político”, é muito mais do intelectual, gente que, para muita gente, sofre do que lhe deve parecer uma verdadeira perversão mental: a de querer analisar as coisas e as ideias, a aceitá-las sem mais nada; a de entender pontos de vista os mais contrários e, sobretudo, a de não querer colocar sua capacidade de entendimento por debaixo de qualquer conveniência de partido ou sectarismo. Essa incapacidade de ortodoxia que, ao se manifestar em relação a certos valores chega a ser qualificada como criminosa, é não só a obrigação da inteligência como sua condição de ser. E no intelectual se manifesta em todo seu comportamento: inclusive em relação às regras recebidas de seu quefazer criador, e temos então os artistas; ou em relação às concepções recebidas sobre a estrutura da realidade, e temos então os cientistas: como a história da Cultura, em sua permanente sucessão de formas subvertidas, nos mostra abundantemente.

Em Chateaubriand, a incapacidade de ortodoxia se mostra com clareza na história de seus contatos com políticos e em sua atuação dentro da vida política. Se em sua vida não se encontra o caso de uma orgulhosa e definitiva retirada da Política, encontram-se momentos, não tão raros assim, em que ele se abstém de participar, até como testemunha, de crises e de campanhas políticas importantes.

A impressão que se tem é de que, nesses momentos, um morno tédio pela Política o invadia, e que ele ia buscar noutros tipos de ação, the sound and the fury que exigia sua extraordinária vitalidade. É natural que, nesses momentos de tédio, ele já não pudesse regressar aos interesses puramente intelectuais de sua mocidade. Condicionado tanto tempo pelo Jornalismo político, só a ação viva, imediata, a ação sobre os homens e não sobre as coisas e as ideias, poderia, já, satisfazê-lo. Pois foi desses momentos de tédio da vida política que nasceram todas essas campanhas que ele lançou e com as quais realizou toda essa obra não literária que todos tanto admiramos.

Senhores Acadêmicos,
está em Marianne Moore:

O sentimento mais profundo se mostra sempre em silêncio;
não em silêncio, mas contenção.
 
Assim, permiti que vos expresse com a contenção de um lacônico (mas intenso) “muito obrigado”, meus agradecimentos por me haverdes acolhido a vossa companhia e pela maneira como me haveis acolhido. E agradecimentos, também, por haverdes escolhido para me receber o grande pioneiro, e mestre, não só de todos nós escritores do Nordeste, mas de toda uma geração de escritores brasileiros, José Américo de Almeida; e, para “ungir-me”, Múcio Leão, meu primo e conterrâneo, que publicou em seu “Autores e Livros” os primeiros poemas meus divulgados no Sul.

Um outro motivo tenho para esse laconismo. Fazer render demais meu agradecimento acabaria sendo uma forma de vaidade. Acabaria parecendo que eu, ao insistir em vossos gestos para comigo, estava querendo menos salientar vossa benignidade do que salientar a pessoa, eu mesmo, a quem dispensastes tanta benignidade.

Assim, para compensar o laconismo de um “muito obrigado” e expressar meu reconhecimento de outra maneira, quero dizer que me sinto muito honrado em vir a ser um de vós. E não apenas pelo que cada um de vós representa em nossa vida intelectual como porque a Academia, que vós todos, em conjunto, constituís, é uma de nossas instituições em que se tem mantido mais vivo o respeito pela liberdade do espírito. Daí (e não sei de maior elogio que se possa fazer a um corpo de escritores, homens para quem a liberdade de espírito é condição de existência) meu empenho em declarar que, entrando para a Academia, não tenho o sentido de estar abdicando de nenhuma das coisas que me são importantes como escritor. 

Na verdade, venho ser companheiro de escritores que representaram, ou representam, o que a pesquisa formal, no nível da textura e da estrutura do estilo, tem de mais experimental; escritores outros cuja obra é uma permanente, e renovada, denúncia de condições sociais que espíritos acomodados achariam mais conveniente não dar a ver; escritores que, em momentos os mais diversos de nossa história política, têm combatido situações políticas também as mais diversas; escritores que, já acadêmicos, têm julgado livremente a Academia, patronos de suas Cadeiras e membros de suas Cadeiras. E tudo isso sem que a Academia tenha procurado exercer nenhuma censura e sem que a posição de acadêmicos tenha levado esses escritores a qualquer autocensura.

Nestes últimos instantes de meu discurso de posse, antes de que ela se tenha consumado, quando talvez ainda seja insuspeito para falar da Academia, porque ainda não me “confundi” nela (como disse Valéry), quero dizer também que não a vejo, hoje em dia, menos representativa da Literatura Brasileira do que o foi, em seus primeiros anos, ou em qualquer época posterior; e, também, que a vejo mais representativa da Literatura Brasileira do que são, de suas respectivas literaturas, outras Academias de Letras, mais antigas e prestigiosas.

Mais representativa e mais aberta do que outras academias mais famosas. Porque não creio que nessas academias se encontre, como entre vós, o número de escritores marcados pelo empenho de renovação e de transformação sem o qual toda Cultura está condenada ao esclerosamento. E se, entre vós, há também escritores dedicados a gêneros de Literatura que, por sua natureza, não dependem de maneira imediata da pesquisa de novas formas de expressão, o fato de esses escritores haverem escolhido os renovadores que aqui estiveram e que aqui estão, demonstra neles uma compreensão do fenômeno literário que não se vê noutras academias.

Assis Chateaubriand, embora de seus votos na Academia eu não tenha conhecimento, mas que, como dono de jornal, soube confiar a crítica e a orientação literária de seus jornais a escritores empenhados em renovar formas de expressão ou a teóricos e defensores do que estava sendo renovação, para não falar de todos os verdadeiros escritores que fizeram ou ainda fazem parte de seus jornais e revistas, Assis Chateaubriand, ia eu dizendo, foi um homem que compreendeu a necessidade de renovação permanente de qualquer forma cultural. Pois este é um detalhe que me deixa também “obrigado” pela sucessão que me confiastes.

6/5/1969