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Heráclito Graça

SIRVA DE PRÓLOGO

Meu caro Gil Vidal,

Rendendo-me à sua intimação reiterada, envio-lhe as primeiras tiras do trabalho, já concluído, a que por simples estudo e para meu exclusivo ensinamento me entreguei, confutando por ordem alfabética algumas opiniões e sentenças do Sr. Cândido de Figueiredo derramadas na primeira série dos artigos filológicos que publicou no Jornal do Comércio desta capital sob a epígrafe “O que se não deve dizer”, e nos três volumes das Lições práticas da língua portuguesa, volumes, que por motivo daqueles artigos, e quando o autor passou no mesmo Jornal a ocupar-se dilatadamente da nossa inextricável ortografia e de estrangeirismos, procurei ler e efetivamente li, admirando a profusão, brevidade e leveza dos capítulos, e perfilhando a doutrina em quase tudo.

É V. um exemplar na arte de escrever. Em breve trecho revelou-se exímio escritor e perfeito jornalista político, diariamente com pleno conhecimento e propriedade tratando o assunto que o preocupa e expressando-o em linguagem elevada e perspícua, com precisão, concisão, vigor e simplicidade maravilhosa, coisas que raramente andam juntas.

Assim, muito me edifica dizendo e supondo V. que da publicação de meus pobres reparos a alguns pontos filológicos e vernáculos do Sr. Cândido de Figueiredo virá proveito a quem em muitas aperturas procura o fio do labirinto da ciência da linguagem portuguesa, lamentando que ainda não tenha esta a fixidade de outras línguas, da francesa, por exemplo.

Em todas as línguas e na sua constante evolução há e há de haver dúvidas e incertezas. Na francesa, se a parte ortográfica logrou uniformizar-se, o mesmo não sucede com a construção. Unicamente aos que não a conhecem gramaticalmente, serão estranhas as inumeráveis dificuldades que os mestres registram, ensinando os meios mais seguros e adequados de solvê-las, e evitar erros grosseiros. Vale muito ao francês o estudar sua língua e somente a sua língua. O português e o brasileiro sabem mal a língua riquíssima e harmoniosa que lhes tocou em sorte, e, desdenhando-a, leem e aprendem por livros franceses em toda a carreira da vida.

Creio que do meu trabalho, que V. porfia em publicar, ressaltará principalmente um ato: ver-se que é tão vasto e basto o material dos nossos clássicos, que até um literato e filólogo do tomo do Sr. Cândido de Figueiredo, provavelmente por escassez de tempo para consultá-los com vagar à medida que aprestava a reposta ilustrativa às multíplices questões que lhe eram sujeitas, os esqueceu às vezes, equivocando-se, e induzindo, por isso, em erro a consulentes e leitores, a quem era seu propósito esclarecer e instruir, como o prova a valorosa campanha que há dezenas de anos sustenta indefesso em Portugal contra os corruptores da língua de seu país, nomeadamente contra os escritores da imprensa diária e periódica que a deturpam com estrangeirismos, solecismos, incorreções e destemperos, porventura em maior cópia do que entre nós os confrades.

Oxalá que o ilustrado Sr. Cândido de Figueiredo, com a superioridade de seu espírito culto, receba sereno minha humilde crítica, já compenetrando-se dos intuitos que a geraram, conformes aos seus, inspirados pela mesma santa causa e ardente amor à pureza da língua materna, já benévolo indicando-me os erros e equívocos que eu cometer. Só os espíritos pequeninos se consideram sabedores de tudo e indefectíveis em suas ideias e pareceres, bamboleando-se em vaidades, que se enviperam irritadiças à primeira e mais leve observação. E o padre Antônio Vieira dizia: quem não é dócil, não pode ser douto.

                            Abraça-o seu velho amigo afetuoso - Heráclito Graça.

                                                  24 de fevereiro de 1903.

        (Carta publicada no Correio da Manhã, de 26 de fevereiro de 1903)

 

                                          A PAR E PASSO

“Tolice vulgaríssima em gazetas. Como é sabido, há uma locução-latina, pari passu, que noticiaristas vários macaqueiam, escrevendo: A par e passo.

Não há tradução mais disparatada. O pari passu, ou se há de empregar na forma original ou traduzi-lo por: A passo igual, ou - com igual passo. (Lições práticas, t. 2.)

Nem a tradução é disparatada, nem tolice de escritores e noticiaristas de gazetas a locução a par e passo, que, entre outros escritores de nota, Garrett e Camilo Castelo Branco perfilharam.

“A par e passo que as ideias desvairavam, desvairava também o estilo.” Garrett, Bosquejo da história da literatura e língua portuguesa, Escritos diversos, p. 110.

“A par e passo as obras do quilate desta do Sr. Bernardes Branco me levam em prata o que me deixam em luz.” Camilo, Narcóticos, t. 2, p. 16 – “A par e passo que eu me perdia na floresta.” - Idem, Romance de um rapaz pobre, c. 5. – “A par e passo que ele Geral usava do melhor pão de Lisboa.” Idem, Mosaico, p. 90.

Ignora-se como se formou a frase portuguesa - a par e passo, que lembra a latina - pari passu e exprime ideia idêntica. Realmente, em português par é igual, e a par - juntamente, por igual, ao mesmo compasso, junto, ombro a ombro, ao lado, etc.; passo é passada, e a passo ou passo, como advérbio, - devagar, em passo moderado, etc., como testificam os dicionários, incluído o da 2ª edição de Morais. Assim, a par e passo é o mesmo que a passo igual ou com igual passo, tradução literal de pari passu do Sr. Figueiredo; e se a par e passo se segue a conjunção que, temos uma locução conjuntiva - a par e passo que, equivalente a - ao mesmo tempo ou ao mesmo tempo que, ao mesmo passo que, ao passo que, etc.

O anônimo, autor da locução a par e passo, quis conservar no português as palavras que lembram o latim pari passu; colocou, porém, entre as duas a copulativa e, e advertindo que na língua existe tanto a locução adverbial a par, como a locução adverbial a passo, preferiu dizer a par e passo a dizer malsoante - com par passo, com passo par ou passo igual ou com passo igual, tradução referida do Sr. Figueiredo. Conhecia e amava a língua e possuía bom ouvido o autor anônimo. O mesmo fez outro anônimo do povo com a locução tal qual, colocando por eufonia e por ênfase um e no meio, e convertendo-a em tal e qual, locução aceita por muitos escritores abalizados, e corrente na linguagem oral.

Garrett e Camilo viveram na província e jornadearam em todo o reino de Portugal; ouviram naturalmente a locução a par e passo entre o povo, cujo dialeto é o mais poderoso reparador e conservador da língua; ouviram-na também entre gente culta que a recolheu e divulgou. Aquelas duas intelectualidade portentosas, insolitamente literárias e que sabiam português, como quem melhor o pode saber, semearam em seus escritos as locuções a par e passo e a par e passo que, dando-lhes foro incontestado e com elas enriquecendo a língua.

E remanesce e perdurará a frase, ache-a errada em boa ou má hora o Sr. Cândido de Figueiredo. O filósofo Protágoras formulou regras sobre os gêneros, e increpou as de Homero, por isso que divergiam das suas; vaníssima lhe foi a empresa. Homero, o divino Homero sobrepujou ao crítico, em cujas palavras nem os contemporâneos nem o pósteros jamais juraram.

 

                                                 BAILA

“Tem a palavra um jornal da noite: - Trazendo à baila o caso da outra metade... Trazendo à baila. Isso é o que por aí se diz às vezes, mas não é, creio eu, o que se deve dizer, e ainda menos o que se deverá escrever.

À balha, trazendo à balha, é que é.” (Lições práticas, 2º edição, pág. 71.)

Em nota, referindo um exemplo de Castilho e outro de M. Afonso de Miranda, acrescenta o Sr. Cândido de Figueiredo que balha não vem do arcaísmo balhar, hoje bailar, e por isso baila não pode substituir a velha balha, nem esta confundir-se com o balho que em vez de baile é ainda usado pelo povo de algumas províncias; daí conclui que trazer à balha nada tem com o verbo balhar ou bailar, são coisas distintas as duas expressões, e que muito naturalmente balha veio do francês bail (arrendamento) e significa entre nós enumeração, menção de ciosas várias pela analogia com a enumeração que nos títulos de arrendamento se faz das ciosas arrendadas!

Esta forçada etimologia de balha, com as incuriais razões de sua justificação, bebeu-as o Sr. Cândido de Figueiredo no velho Morais, a quem entretanto não cita. Há mais uma agravante: Morais, na 3ª edição do dicionário, depois de relacionar a locução vir à balha, no sentido de ser mencionado, pergunta entre parênteses: virá do francês bail, traduzida a palavra em razão da enumeração, que nas cartas de arrendamento se faz das coisas arrendadas.

- O Sr. Cândido de Figueiredo, sem advertir no disparate da origem, assevera que muito naturalmente (!) baila procede do francês bail, arrendamento.

Releva-se a pergunta a Morais, que era fraquíssimo em etimologia e escrevia ao tempo em que esta não havia passado pelos processos científicos que a aperfeiçoaram no decurso do século XIX. Ao Sr. Cândido de Figueiredo bastavam os fatos da língua para repelir essa hipótese absurda e responder negativamente à pergunta.

Balha, bailha, baila, bailo e balha eram sinônimos, significando baile, festa, dança acompanhada de canto. Balha não se afastou de seus sinônimos, não tinha origem diversa da deles, nem significava, como afirma sem fundamento o Sr. Cândido de Figueiredo, somente enumeração: para destruir este castelo sério, é suficiente ler o quinhentista Antônio Prestes, no “Auto da Ave Maria”, p. 56:

“...entro em balha;

Acodi vós com o tanger.”

O próprio Morais é contraditório, dando a balha etimologia e significação diversa da dos referidos sinônimos. No v. baila, diz: vir à baila, vid. Bailha. O v. bailha, remete o leitor ao v. Balha. Só a baile e bailo define: função onde se dança. Entretanto, dá aos verbos bailar, bailhar e balhar a acepção de dançar. Ora, de tais verbos vêm os substantivos baila, baile, balho, bailha e balha, e assim tinham todos eles, por causa da origem, significação idêntica, lembrando a dos verbos.

O Sr. Adolfo Coelho, no Dicionário, revelou-se observador judicioso. Bailar, bailhar, balhar são formas do mesmo verbo, do latim bárbaro ballare, jogar a bola, jogo que na Idade Média e entre os gregos era acompanhado de canto e dança. Quando trata da palavra baila, manda ver balha, e neste vocábulo diz: “dança; fig. conversação animada em que se fala em muitas coisas. Usada só na frase vir à balha. Do verbo bailar.

Vir à baila ou vir à balha são, portanto, formas idênticas, equivalem-se: aparecer na festa, vir ao baile e daí - ser visto, ser falado, vir à colação, andar na baila ou na balha.

O Dicionário contemporâneo dá como legítima qualquer das locuções: vir à baila ou vir à balha.

E ainda pelo Morais se chega à mesma conclusão: quando escreve vir à baila, abona-se com a autoridade de Feo, Trat. de S. Est. Disc. 4; quando escreve vir à bailha ou vir à balha, cita a Miranda, Tempo de agora.

A Feo agreguem-se, entre outros escritores de nota, três conhecedores da língua, Filinto, Garrett e Camilo.

                         “...Nequid nimis

               Tema é que anda na baila,

               Mas que nunca se observa.”

                    Filinto, Fábulas de Lafont. 1. 3. F. 55.

 “Os fantasmas escandinavos, caledônios e todas as outras invenções e mitologia rúnica andavam na baila por versos e versinhos de toda a gente.”

 Garret, nota C ao canto 3º de D. Banca. “Vieram então à baila, em galante mistura, cavalos, cães e todas as damas daqueles arredores.”

                                                                          (Fatos da linguagem, 1904)