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Discurso de posse

Senhores,

Antes de tomar posse da Cadeira que me destinastes, desejo fazer algumas considerações de caráter pessoal. Não me sinto em meio estranho. Além da grande honra de achar-me entre os mais elevados expoentes da inteligência brasileira, experimento a satisfação de aqui encontrar antigos companheiros de jornadas públicas e amizades que muito prezo.

Presidindo nossos trabalhos, vejo o Embaixador José Carlos de Macedo Soares, que foi meu eficiente e dedicado Ministro de Estado, personalidade por todos querida e admirada; também o seu ilustre antecessor ao tempo da minha eleição acadêmica, o Professor Levi Carneiro, que emprestou ao governo, em muitas oportunidades, as luzes da sua cultura jurídica; e, por último, o Ministro Ataulfo de Paiva, magistrado de altas virtudes, filantropo e homem de extensa projeção social, designado, em boa hora, para receber-me. Considero, ainda, a circunstância e o especial agrado de pertencerem a esta Casa os poetas, romancistas e polígrafos que sempre apreciei e distingui, entre as minhas mais sinceras admirações intelectuais.

Não, posso, finalmente, deixar de lembrar três nomes dos mais ilustres da nossa Companhia, e aos quais me liguei por laços de amizade sincera e compreensão intelectual: Gregório da Fonseca, meu colaborador de imediata confiança, grande coração e grande caráter; Humberto de Campos, cujos últimos dias da vida acompanhei com emocional carinho; Alberto de Oliveira, o magnífico poeta, gentil homem das letras, com quem me entretive em inesquecíveis momentos de contato espiritual.

Devo e quero agradecer, agora, o generoso empenho que pusestes em trazer-me ao vosso convívio permanente, conferindo-me honra por certo superior aos meus méritos de inteligência e cultura.

Senhor Presidente. Senhores Acadêmicos,

A atividade intelectual é para mim uma imposição da vida política, que exige de quem a ela se consagra a obrigação de comunicar-se com o público com precisão e clareza, explicando idéias e problemas de governo, esforçando-se por fazer-se ouvir e compreender.

Não sou e nunca pretendi ser um escritor de ofício, um cultor das belas-artes, embora tenha me habituado, desde moço, à amável convivência de poetas e romancistas, como leitor e admirador comovido das suas obras. Por que não hei de reconhecer também, numa confissão escusável nestas circunstâncias, a atração que sempre exerceram sobre mim os homens de pensamento, as inteligências cultas e desinteressadas, os espíritos de alto quilate moral, possuidores do divino dom de transmitir aos seus semelhantes as conquistas culturais, os anseios piedosos, os arrebatamentos da paixão e da fé?

Mas, tudo isso de que vos falo está longe de definir os méritos de um escritor, de legitimar pretensões à partilha dos louros e das glórias a que têm direito os príncipes da poesia e os mágicos exploradores dos reinos da ficção.

A Casa de Machado de Assis parecia reservada, nas minhas reflexões, aos homens votados à criação artística e ao estudo desinteressado dos problemas culturais. Não a considerava gleba apropriada ao rude amanho dos agricultores, mas terreno escolhido e tratado, onde os jardineiros operam milagres de beleza e colorido.

Nascida sob a invocação da Academia Francesa, por ela modelada, teria certamente o destino de servir de refúgio e assegurar repouso amável aos espíritos serenos, que olham a vida em termos de categoria filosófica e usam as lentes da perspectiva histórica para observar com imparcial frieza os acontecimentos da atualidade.

Sem dúvida, as circunstâncias da vossa Fundação delatavam o divórcio então existente entre a pura análise espiritual, a seriação e o estudo da realidade através das artes e as atividades chamadas práticas.

Naquele remanso do fim do século, passadas e esquecidas as agitações que auspiciaram o advento da República, políticos e administradores caminhavam de um lado e intelectuais do outro, ocupando margens opostas na torrente da vida social.

Por uma deformação lógica, sentiam-se quase incompatíveis. As alterações da semântica retratam, melhor do que amplas razões, essa situação de fato. Poeta era, ao tempo, sinônimo popular de lunático, pessoa ausente, habitando um mundo de fantasias e imagens; literato traduzia, num pejorativo brando, o teórico, pés fora do solo, cabeça nas nuvens, alheio às realidades quotidianas e convencido de poder ajustá-las aos esquemas simplistas da construção dialética.

Em ambiente assim, era inevitável, as energias sociais dispersavam-se esterilmente e o desdém do espírito pela matéria tomava formas quase extravagantes. Para o homem de letras, as palavras político, industrial, administrador, tinham igualmente um sentido alterado: significavam estreiteza de vistas, incapacidade imaginativa, grosseiro trato com as coisas belas da vida e os seus valores supremos. Para ser um exemplar dessa fauna tornava-se necessário ignorar as rosas, os poentes, as sutilezas da linguagem, o aguçamento de um sarcasmo e a finura de uma ironia.

Explicavam uns e outros, através de conceitos voluntariamente truncados, o desdém recíproco e a mútua desconfiança. Os literatos reclamavam o isolamento, a torre de marfim, a impassibilidade marmórea, e essa atitude se refletia na própria preferência pelas imagens do reino mineral, tão do gosto dos poetas mais celebrados do tempo. Os homens de ação, dedicados às tarefas práticas, desacreditavam, por seu turno, as possibilidades reais dos que sabiam pensar e dizer.

Não há novidade em declarar, por conseguinte, que a primeira fase da vossa ilustre Instituição decorreu à margem das atividades gerais, enquanto o Estado, a administração, a sociedade civil evolviam e se transformavam. Só no terceiro decênio deste século operou-se a simbiose necessária entre homens de pensamento e de ação. Hoje vemos em vosso meio, compartilhando a imortalidade com poetas e romancistas, representantes das profissões liberais, juristas, historiadores, políticos e até industriais. É admirável que isso aconteça. Os valores da inteligência são multiformes, resultam de múltiplas e fecundas aplicações. Os modernos processos de integração social não podem malbaratá-los e a todos disciplinam, num sentido útil, para maior bem da coletividade.

O papel das Academias não é, na atualidade, o que Chapelain atribuía à Academia Francesa: “Fazer um grande dicionário e fiscalizar a língua.” É mais importante, mais amplo e profundo.

Não corresponde, evidentemente, a uma instituição acadêmica vanguardear os movimentos revolucionários em Arte e Cultura. Também não lhe corresponde atuar do lado extremo, permanecendo fechada num conservantismo estreito e reacionário. Cabe-lhe, no conjunto das atividades gerais, uma função ativa, coordenadora de tendências, idéias e valores, capaz de elevar a vida intelectual do País a um plano superior, imprimindo-lhe direção construtiva, força e equilíbrio criador.

Foi com essa visão global das responsabilidades acadêmicas que aceitei um lugar na vossa ilustre Companhia, honrado com a escolha, que considero homenagem excepcional, e disposto a trabalhar convosco pela afirmação da nossa cultura, interessando-a na solução dos grandes problemas da Nacionalidade.

Eleito para a Cadeira 37, venho sentar-me entre vós, sob o patronato de Tomás Antônio Gonzaga, na sucessão de Silva Ramos e Alcântara Machado. Não me poderia sentir melhor em qualquer outra. O poeta da Inconfidência Mineira alcançou essa consagração mais pelo seu destino político que pela expressão da sua arte poética, aliás, formosa.

Numerosos foram os homens que, pela época, interpretaram em verso os anseios sentimentais, as dúvidas amorosas, os conflitos do desejo e das possibilidades. O que singularizou a figura daquele desembargador do século XVII não foi certamente a inovação literária, a inspiração de grandes vôos ou a criação lingüística, como aconteceu com Dante e Camões. A sua lírica é similar à de todos os poetas do tempo. Reflete idênticas influências, repassa concebidos modismos, veste-se com as mesmas galas retóricas. Versejar parecia, então, sestro generalizado, diversão preferida das classes cultas. Se desde os clássicos da língua se admitia que “não fazem dano as musas aos doutores”, contavam com absolvição antecipada os governantes poetas, os líricos magistrados.

Essa produção literária oferecia, entretanto, pouco ou nenhuma originalidade. Seguia invariavelmente regras aprendidas a modo de ofício manual e a temática restrita dos modelos. Tomás Antônio Gonzaga, que é o nosso exemplo vivendo em Vila Rica, cidade colonial das Minas Gerais – cheia de pretos da mineração, de brigas de garimpeiros, de façanhas de contrabando – não nos apresenta, nas suas composições, um esboço sequer da vida ambiente. A mais leve referência ao meio é esquecida. As suas poesias não se embeberam do cheiro estonteante da terra moça. As pastoras, os zangais, os pegureiros, que invoca e canta, não passam de simples expressões de um dicionário ignorado na colônia do ouro e das pedras, consumida pela febre das riquezas e do luxo que a Inglaterra e a Flandres produziam e Portugal importava e pagava com larguezas de perdulário.

Não foi, por conseqüência, essa literatura de amores infelizes, tão comum em tantos autores da época, o que elevou a herói o patrono desta Cadeira. A projeção excepcional da personalidade do cantor de Marília resultou da sua atuação política, da sua participação num acontecimento que objetivava emancipar a grande terra brasileira, ausente na obra do poeta e presente na existência do homem.

O verdadeiro patrono da Cadeira 37, não é, a rigor, o lírico de Marília de Dirceu. A poesia influiu na escolha como mera circunstância. A homenagem do patronato equivale a um preito de admiração à memória do poeta que se ligou a uma nobre causa e por ela padeceu o degredo e a morte expatriada. Iluminado por um sentimento de justiça, de independência, de anticolonialismo, Tomás Antônio Gonzaga legou-nos, ultrapassando a sua vocação lírica, a ascendência de uma vocação política sacrificada pela emancipação do Brasil.

Os fundadores da Academia tiveram, ao contrário do que se tem dito, uma iniciativa feliz, ao retirarem do hagiológio pátrio o nome do herói, confiando-lhe o destino de uma Cadeira que parece fadada a recolher os que, noutros tempos e por outros caminhos, se devotam ao engrandecimento da Nação, decididos a servi-la sem medir esforços.

Já originou observações curiosas a coincidência de ter sido português pelo sangue o patrono da Cadeira 37 e português pela formação literária seu primeiro ocupante. Silva Ramos, filólogo, pensando e escrevendo em moldes clássicos, era, realmente, um filho espiritual de Coimbra, exilado no Rio de Janeiro, entre gentes que deslocavam pronomes e abusavam dos gerúndios.

O fenômeno não é novo e o vemos repetir-se na América com desusada freqüência. Deriva claramente da herança lingüística. Os idiomas dos grandes grupos sociais originários da Europa tendem a retornar aos antepassados, numa forma de hereditariedade semelhante à do mundo biológico.

Fiel à mentalidade de herança que se fortalecera definitivamente na fase de formação cultural, Silva Ramos não se preocupou em readaptar-se às exigências do meio em que veio viver e trabalhar. Certamente, isso não lhe parecia necessário. A língua era e ainda é o único instrumento de expressão entre os dois povos e o laço mais forte de consangüinidade capaz de manter em contato íntimo e fraternal brasileiros e portugueses, Ficou tal como veio de Coimbra, exercendo com serenidade compreensiva a missão de mestre da boa linguagem. Foi um gramático, classificação que apesar de parecer hoje um tanto pejorativa, corresponde exatamente a certos períodos culturais em todas as latitudes:.. Com a perspectiva do tempo poderemos dizer que preferiu ser um selecionador a ser um criador. Conhecer e escolher afigurava-se-lhe talvez mais grato que inventar e produzir.

Em 1931, sucedeu a Silva Ramos o Professor José de Alcântara Machado de Oliveira, que, durante um decênio, emprestou à Academia o brilho do seu pensamento e da sua cultura séria e extensa.

Alcântara Machado representava entre nós uma estirpe mental de linhas fortes e bem definidas. Possuía uma formação cultural sólida e de amplos horizontes. Essa formação não se fizera, entretanto, com sacrifício da personalidade, que se constituiu reta e em constante ascensão, obedecendo a fundamentos morais de nítida influência cristã e encerrando, segundo o conceito de Maritain, a totalidade dos atributos humanos. Militante da cátedra, militante da política, exercendo no seu meio tão fecundo – a velha Faculdade de Direito de São Paulo – ação direta e pessoal como professor e mais tarde diretor, foi literariamente um tradicionalista.

As épocas passadas encontravam nele ressonâncias duradouras. Aprendera com Renan a considerar a tradição o mais forte fundamento da idéia de Pátria. Homem do seu tempo, apercebido das realidades atuais, compreensivo e plástico na atuação social, admirava os antepassados, celebrava-lhe os feitos e sentia-se perante eles herdeiro responsável das suas qualidades e virtudes.

O livro de estréia literária de Alcântara Machado – décimo trabalho publicado, porque até aí só as letras jurídicas o preocupavam – é Vida e Morte do Bandeirante. Todos vós conheceis essas páginas admiráveis. Retratando o viver simples, austero e frugal dos desbravadores e pioneiros das terras altas do Brasil, o autor se entrega a uma tarefa grata aos seus sentimentos tradicionalistas. Não se trata de um trabalho de pura reconstrução histórica. Por certo, se enquadra no gênero perfeitamente. Sobra-lhe exatidão documental e a recomposição da vida social da época se desdobra em quadros descritivos quase fotográficos, sem omitir a localização dos fatos, fixando-os à paisagem e aos seus acidentes caracterizadores. Sabia, naturalmente, que a história deriva da geografia. Colocando as personagens no seu meio, identificando-as com ele, conseguiu apresentá-las completas, talhadas, como deveriam ser na realidade, num único bloco. Ali estavam associados, inseparáveis, os dois elementos conformadores da personalidade de Alcântara Machado: – o amor à terra e o culto dos antepassados. Deles tirava, como Barrès, a sua lei de equilíbrio no seio de uma sociedade em crescimento, que se alargava em círculos maiores de diversificação à medida que lhe vinham de fora, de outras latitudes, contingentes étnicos de vária origem, portadores de novas forças de conquista e de novos processos de apropriação econômica. Vendo chegar os adventícios, o coração de Alcântara Machado se confrangia e o seu espírito se povoava de interrogações sobre o futuro.

É fora de dúvida que o confronto entre os dois quadros – o da expansão bandeirante e o da incorporação imigratória – sobressaltava-o e enchia-o de temores. A propósito, devemos lembrar uma passagem do discurso que pronunciou na Academia Paulista de Letras, em setembro de 1940.

– Porque não nos iludamos – dizia. – Aqui está se desenrolando a luta silenciosa e subterrânea, mas incessante e encarniçada, dos adventícios entre si e de todos contra nós. Agrava-se de momento a momento o perigo, já anunciado por alguém, de nos tornarmos uma colônia como as demais neste chão conquistado, fecundado e mantido ileso pela coragem e pelo trabalho dos nossos maiores.

Por mais que se digam, e mesmo que sinceramente se esforcem por ser brasileiros, não o são, nem podem sê-los, os recém-chegados. Faltam-lhes aquela integração no espírito da grei, aquela impregnação profunda da sensibilidade pela natureza, que vem do nosso lastro hereditário e determina o nosso modo e a nossa razão de ser. À ação de presença desses representantes de raças tão distantes, preocupados com a satisfação de interesses imediatos, não será ousadia atribuir o declínio sensível das nossas virtudes tradicionais.

Aí está o que nos deve apavorar. É a possibilidade de que um dia se desnature a alma coletiva, substituída por outra, feita de retalhos de tecidos disparatados. Retomam-se províncias arrancadas pelo inimigo; mas não se consegue jamais reaver consciências anexadas ao estrangeiro. Contra essa eventualidade, tornada mais temerária hoje em dia pelas tendências dominantes em certos países, que convertem cada emigrado em instrumento de expansão imperialista, urge que mobilizemos todas as energias.

As palavras de Alcântara Machado no discurso citado são as últimas que se lhe ouviram antes que a morte o roubasse ao convívio dos amigos e ao serviço das letras. Poderíamos considerá-las o seu testamento patriótico em face das provações da nova guerra e das incertezas do futuro para as nações jovens, de fraca densidade demográfica, abertas à imigração e desarmadas. Mostram, ainda, como era forte, no conjunto das suas qualidades de homem culto, o sentido da responsabilidade pública, sempre alertado nas situações em que teve de atuar, como professor, político, historiador, escritor ou jurista. E não é demais acentuar o equilíbrio, a serenidade, a dignidade das suas atitudes nos prélios onde foi chamado a opinar. Na cátedra, na tribuna parlamentar, nos concílios partidários, era sempre o mesmo – fidalgo na compostura, discreto no dissentir, firme sem jactâncias, lúcido no pensar e elegante no dizer.

Como instrumento de expressão a linguagem por ele usada em todas as circunstâncias aparecia dúctil, pulcra, transparente, cheia de ressonâncias clássicas, revelando um escritor com recursos excepcionais de estilo e de idéias. Em Alcântara Machado podemos comprovar o acerto de Sainte-Beuve quando afirma que “um pensamento firme e vivo já se apresenta necessariamente com a sua forma completa de expressão”.

Antes de ir adiante, quero anotar uma observação marginal sobre a atitude do autor de Vida e Morte do Bandeirante relativamente ao problema da assimilação dos contingentes imigratórios. Já sabemos como era ele amoroso da terra, profundamente enraizado ao solo pátrio. O livro em que evoca, magistral e comovidamente, o pioneirismo paulista dedica-o a membros da família, remontando a “Antônio de Oliveira, chegado a São Vicente em 1532”. Reata, assim, os laços de ascendência a velhos troncos patrícios dos primórdios da colonização portuguesa.

Alguns anos antes – eis o curioso desencontro – Antônio de Alcântara Machado, filho mais velho do nosso ilustre companheiro, publicava o seu primeiro trabalho literário, dando-lhe por título os nomes de três bairros populares de São Paulo e dedicando-o “aos novos mamelucos”, isto é, aos pioneiros do progresso paulista nos dias recentes do afluxo imigratório. E, ao invés de escrevê-lo na linguagem apurada que tanto elevou o nome do pai como escritor, utilizou-se do idioma dialetado dos descendentes de italianos, fazendo excelente literatura com os casos do quotidiano nas ruas movimentadas dos bairros industriais.

Aparecia, flagrante, a contradição. Para o filho, os bandeirantes do pai valiam tanto quanto os seus condes papalinos, os seus pequenos industriais prósperos e outros humildes adventícios, construtores anônimos do engrandecimento da cidade. Enquanto aquele evocava, orgulhoso, os sertanistas e desbravadores da era do ouro e das pedras, o outro olhava com admiração os homens novos, lutando dentro da floresta das chaminés fumegantes espetadas irreverentemente para os céus.

Compreendemos, desde logo, o antagonismo das duas gerações representados pelo pai e o filho, com as suas transformações de mentalidade e diferenciação social. Com quem estaria a razão? Talvez Alcântara Machado houvesse formulado a pergunta a si mesmo e nos tivesse dado a resposta na passagem da magnífica oração acadêmica anteriormente lembrada. Fácil seria certamente resolver o dissídio, sem recusar razões a ambos. Limitemo-nos, porém, à anotação do fato em si, evitando juízos que os mortos não podem contestar e aproveitando-o para mostrar como se apresenta, nos nossos dias, imperioso e contingente, o problema da incorporação dos imigrantes aos núcleos da população nacional. A atualidade, com os tremendos ensinamentos da guerra, está a indicar o único caminho possível: apressarmos, por todos os meios, a transformação dos adventícios em autênticos e bons brasileiros.

Depois desta digressão, retomemos o fio das considerações anteriores para fixar aspectos singulares da fisionomia moral de Alcântara Machado e marcar os ritmos da sua marcha vitoriosa desde os bancos acadêmicos até alcançar o mais alto plano da consagração literária.

Todos os adolescentes – opinam alguns psicólogos demasiado imaginosos – levam consigo, ao entrar no mundo dos descobrimentos e surpresas que a idade lhes reserva, um arquétipo, um modelo da personalidade, “aquele que desejariam ser” e cuja maneira de viver desejariam repetir. Escolhido o modelo procuram imitá-lo pelos anos afora, muitos sem êxito, outros com simples aproximações, alguns logo desiludidos da difícil empresa. Há ainda os que se desencantam nas primeiras experiências de adaptação e os que teimam em seguir padrões antípodas e incompatíveis com as tendências do temperamento e as condições de tempo e de meio. São, geralmente, os casos que mais se fazem notar pelo disparatado dos contrastes e a incongruência das atitudes postiças e caricaturescas. Não vemos por aí, com tanta freqüência, tartamudos que se julgam Demóstenes; pesquisadores de biblioteca que se consideram grandes eruditos; militares, políticos e estadistas empolgados pela imitação das figuras históricas de Napoleão, Alexandre e César? Quantos desses desencontros, dessas falsificações de modelos estarão a interferir desastrosamente no destino dos homens e dos povos?

Se tomássemos a sério a estranha teoria as verificações da sua aplicação haveriam de ser decepcionantes. Não, certamente, em relação a homens como Alcântara Machado, cujo arquétipo nenhum trabalho daria descobrir, tal a confessada fidelidade com que o seguiu, honrando-o consciente e exemplarmente. Nunca o ocultou e em todas as circunstâncias teve-o presente como supremo mentor das suas diretrizes morais e das suas conquistas de homem de pensamento. Era o pai, era Brasílio Machado, cuja biografia escreveu com tanto carinho e devoção filial.

De Alcântara Machado podemos dizer que foi um menino-moço. Cresceu e educou-se sob a direta e imediata influência paterna. Brasílio Machado, professor, advogado, político e orador marcou-lhe os rumos da existência desde os passos iniciais. Precoce, reconcentrado, estudioso – aos 21 anos se fazia professor na mesma escola onde pontificara o pai. A tese com que disputou a cadeira – um trabalho completo sobre medicina legal – revelou-o uma inteligência vigorosa, honesta e armada com os melhores recursos da cultura jurídica e das letras clássicas. Daí por diante, nenhuma hesitação na marcha. Entregou-se a outros trabalhos, como advogado e político, e os realizou com a mesma segurança e elevação de idéias.

Poucos contatos pessoais tive com Alcântara Machado para considerar-me habilitado a falar do seu feitio íntimo, das linhas do seu caráter, dos seus sentimentos e reações diante dos atos humanos e dos acontecimentos sociais. O que recolhi, porém, conforma substancialmente o testemunho dos amigos e dos que o conheceram mais de perto. Muitos se referem à sua bondade acolhedora, à timidez que parecia dominar-lhe os movimentos e dar a quem não o conhecia uma falsa impressão de soberba e superioridade estudada. Não me parece que esse fosse, realmente, o “defeito honesto” do seu caráter. A timidez nos espíritos cultos e sensitivos, fáceis de ser atingidos simultaneamente pelos caminhos da emoção e da inteligência, não passa as mais das vezes de uma disposição espontânea da personalidade. O tímido é geralmente um fraco de vontade. Nas suscetibilidades exageradas, nas tensões e afrouxamentos das reações nervosas, ora amortecidas, ora abruptas, deixa-se surpreender os primeiros contatos. Faltam-lhe, por isso mesmo, nas ações e na maneira de comportar-se, os nexos de continuidade e de serenidade, que são visíveis e persistentes nos temperamentos equilibrados, sadios e fortes. Alcântara Machado escapava, evidentemente, à classificação de tímido. Nos atos e nos modos de agir demonstrou sempre uma coragem serena e uma vontade firme. Poderiam levá-lo por convencimento a transigir, mas não o obrigariam jamais a desistir por imposição ou temor. Era, apesar disso – afirmam quantos lhe desfrutaram a convivência e o trato fidalgo – um afetivo. Não se confiava facilmente a intimidades, mas reservava para os amigos uma constante e enternecida assistência. O que o fazia parco em expansões e o colocava na posição de quem não quer ser visto talvez fosse o receio de parecer falso e metediço, quando o seu empenho maior consistia em guardar fidelidade a si mesmo. Pertencendo a uma geração de crise – a de 1890 – teve oportunidade de conhecer períodos de depressão, de prosperidade geral e de sérios traumatismos políticos. Recolhera, na fase de formação, as últimas influências do Romantismo e sofreu as primeiras inquietações do século. Explica-se, assim, por que ao atingir a idade madura, desfeitas muitas ilusões e embebido de resignação cristã, viesse a considerar “a vida uma grande lição de humildade”.

Os últimos anos de existência consagrou-os Alcântara Machado a dois trabalhos totalmente diferentes: a biografia de Brasílio Machado e o Código Criminal Brasileiro.

O estudo biográfico do pai assinala mais um marco definitivo na carreira do escritor. Executou-o com cuidados enternecidos. O perfil do notável professor vale por uma perfeita reprodução da sua personalidade. Brasílio Machado possuía, indiscutivelmente, títulos de sobra para destacar-se no meio em que viveu e atuou. A inteligência pronta, a cultura jurídica, a combatividade faziam-no admirado e respeitado como mestre e causídico. Possuía porte tribunício, flama e audácias verbais de autêntico orador. Era também capaz de devotar-se a causas nobres e desinteressadas. Firme de caráter e de convicções, quando renunciou às lutas partidárias não o fez para encerrar-se no cômodo silêncio do conformismo. Católico praticante, antes dos vinte anos converte à religião o próprio pai, velho brigadeiro, maçom, anticlerical, excelente protótipo dos homens do Primeiro Império. Completa, afinal, brilhantemente o ciclo da sua projeção social, batendo-se, como diria o filho, “pela recristianização do Brasil, pela volta ao espiritualismo de uma terra que ao espiritualismo cristão devem grande parte seu crescimento e sua unidade”.

O jurista, em Alcântara Machado, antecipou-se ao homem de letras. A parte mais sólida da sua cultura, a sistemática dos conhecimentos, a orientação filosófica foram aquisições feitas na mocidade, durante o curso de Direito, na velha e gloriosa Faculdade de São Paulo. Ao ingressar no professorado a sua mentalidade já estava definitivamente conformada e apta a aplicar-se com seguro equilíbrio. Foi, por isso, um mestre completo e um causídico de rara proficiência.

A organização do Código Criminal vem a ser, por conseguinte, uma espécie de coroamento das atividades do jurista, do professor e do advogado. Foi-lhe confiada numa hora de transição política, quando se mudavam as instituições para cuja adoção o parlamentar decisivamente contribuíra. Lembro a circunstância para salientar como o político sabia sobrepor-se, serena e patrioticamente, às contingências dos acontecimentos. Esquecendo-se de si, superior às suscetibilidades e às decepções, esteve sempre pronto a aplicar o saber e a sacrificar as comodidades pessoais em proveito das iniciativas úteis à coletividade.

Apraz-me destacar, mais uma vez, esse traço marcante da personalidade de Alcântara Machado. O sentido da solidariedade humana era nele tão forte como a vontade de realizar. Pensava certamente com Montaigne que “quem não vive de algum modo para os outros mal vive para si”.

Nas atividades de acadêmico conduziu-se com idêntica elevação de espírito. Já o disseram melhor do que eu, por ocasião da sua morte, os eminentes confrades congregados em sessão para celebrar-lhe a memória. No acervo dos seus trabalhos, as orações acadêmicas representam uma contribuição literária destinada a durar e a incorporar-se ao patrimônio cultural do país. São páginas vigorosas de penetração crítica, saturadas de sentido humanista, onde o escritor se mostra na plenitude dos seus recursos de expressão. Lembremos, nos discursos de posse e recepção que pronunciou, os juízos sobre Silva Ramos, Luís Guimarães Júnior, João Ribeiro e Joaquim Nabuco. A precisão dos conceitos, o exame das ascendências culturais e os nexos históricos indispensáveis em trabalhos críticos de ampla estruturação transformam os perfis traçados numa galeria rica de conteúdo espiritual e de interesse humano.

Alcântara Machado trouxe para os trabalhos acadêmicos a sua deslumbrada capacidade de compreender e aquilatar, sem restrições ideológicas e preconceitos de escola, os valores fecundos da inteligência. Acreditava no préstimo social dos intelectuais e na função política da literatura.

A existência de instituições como a nossa não encontraria justificação plausível no conjunto das atividades sociais se limitássemos a sua esfera de ação à tarefa de selecionar e consagrar, dentro das fronteiras do país, as glórias literárias. É o que se pode concluir também, atentando para a feição peculiar da obra de Alcântara Machado e evocando as palavras magistrais da parte final da sua oração de posse, quando afirma caber à Academia, “que é a expressão luminosa do pensamento e da sensibilidade nacionais, o dever, de que jamais desertou, de apertar os elos de solidariedade, por uma compreensão e um conhecimento mais perfeitos, entre os brasileiros de todos os Estados”.

Encerra essa afirmação todo um programa de atuação construtiva e nacionalizadora. A Academia, preciso é reconhecer, já começou a executá-lo desde o momento em que abriu as portas da imortalidade aos representantes da inteligência brasileira vindos dos diversos quadrantes geográficos e considerados expoentes legítimos nas Letras, na Sociologia, na Medicina, na Administração e nas ciências em geral. Cumpre-lhe, apenas, desenvolvê-lo, ampliá-lo, exercendo uma espécie de judicatura sobre a vida mental do País, preparando uma atmosfera de interesse e de respeito pelas criações intelectuais, estimulando as vocações e facilitando-lhes o acesso às fontes de revigoramento e renovação espiritual.

O Brasil realizou a sua emancipação política, constrói agora a sua emancipação econômica e inicia, finalmente, a sua emancipação cultural. As responsabilidades dessa magna tarefa têm de recair necessariamente sobre os intelectuais e os homens de pensamento. A Academia Brasileira de Letras não reúne a todos, mas dispõe de meios para congregá-los, oferecendo o exemplo dos seus ilustres membros, que não se recusarão a consagrar a tão alta empresa o que melhor possuem como expressão de inteligência, de generosidade, de fé patriótica.