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Garcia Redondo

TRÊS CHARUTOS

A Belarmino Carneiro

Três anos havia já que eu não visitava o meu amigo Eduardo da Silveira quando, uma noite, ao entrar no meu quarto, encontrei sobre o criado-mudo um cartão postal desse velho camarada que dizia o seguinte:

“Por Júpiter!... Parece que estamos de relações cortadas!... Há um século que não apareces. Vem amanhã almoçar comigo e traze o teu xadrez de algibeira para jogarmos uma partida sob a mangueira frondosa do meu jardim. Estou agora à rua de S. Clemente, N... em um ninho minúsculo, mas confortável e tranquilo. Cá te espero sem falta.”

Fui, e quando entrei sem-cerimoniosamente no gabinete de trabalho desse ditoso rapaz, envelhecido prematuramente nos gozos da vida elegante, encontrou-o de robe de chambre, sentado em frente à sua secretária e pondo em ordem alguns papéis dentro de uma gaveta estreita, comprida e funda.

Caímos nos braços um do outro e depois das exclamações habituais: “Até que afinal!... Mas... como estás velho!... - Como estás mudado!...” etc., Eduardo fez-me sentar a seu lado, dizendo-me:

- Deixa-me concluir o arranjo desta gaveta e estou todo ao teu dispor.

- Ah! Cá estão, cá estão eles... É uma preciosidade!... - exclamou.

E passando-me o envelope:

- Sabes o que é isto?

Tomei o envelope e apalpei-o:

 - Serão charutos?... inquiri duvidoso.

- Exatamente, são três charutos que têm uma história triste. Custaram-me três contos de réis.

Encarei-o, admirado, sem compreender.

 - Espera, espera um pouco; eu concluo já esta tarefa e depois contar-te-ei esse caso.

E, sorrindo, abriu o envelope e dele tirou três pequenos charutos, castanhos e esguios, apertados por uma cinta de papel branco, onde havia estes dizeres:

                                Herança de Palmira

                   Rs. 3:000$000 16 de março de 1891.

 - Aqui os tens; admira-os, enquanto acabo com isto.

E continuou na sua tarefa de ordenar os papéis dentro da gaveta, enquanto eu examinava curiosamente os charutos, sem atinar com o motivo de tão elevado custo.

Cinco minutos depois, Eduardo empurrava a gaveta e voltando-se para mim dizia-me:

 - Sou todo teu agora. Vamos portanto à história dos charutos, que naturalmente te está intrigando. Lembras-te da minha afilhada Palmira, filha da Marta do Recreio Dramático?

 - Tenho uma lembrança vaga.

 - Pois bem: essa criança, há três anos, ficou órfã de mãe que, como sabes, morreu tísica; e a pobre Marta, que eu tanto amei nos tempos em que a sua graciosa figura fascinava os ociosos da rua do Ouvidor, vendo-se definhar, poucos dias antes de morrer mandou-se chamar, pediu-me que velasse pela Palmira e entregou-me três contos de réis, fruto das suas economias e única herança da filha.

“Aceitei o encargo, e no dia em que conduzi a linda e voluptuosa Marta à sua última morada trouxe a filha para minha casa. Não saí nessa noite muito de indústria para distrair e consolar a pobre criança que me fora entregue e que, ferida cruelmente pela morte da mãe, tinha caído em um desespero bem fácil de ser compreendido por aqueles que já perderam o único ente querido que lhes restava. Mas, no dia seguinte, depois do almoço, saí, levando no espírito a preocupação de colocar a pequena fortuna da pobre órfã em condições de lhe produzir a máxima renda possível. E, então, cogitando durante o dia inteiro no melhor emprego para esse capital, lembrei-me de comprar com ele uma pequena propriedade, bonitinha e bem tratada, que, um mês antes, eu vira no Engenho Novo e cujo preço não excedia então de quatro contos. Era possível que a propriedade ainda não tivesse sido vendida e também não era impossível que, em tal caso, o proprietário fizesse abatimento no preço, cedendo-a pelos três contos. Não me enganei, porque, indo nesse mesmo dia ao Engenho Novo, lá combinei a compra pelos três contos, ficando assentado que a escritura seria lavrada no dia seguinte.

 “Dei, nessa mesma tarde, a notícia a Palmira, e no dia imediato, depois do almoço, meti na minha carteira os três contos e parti em direção ao cartório onde a escritura devia ser assinada. Mas, ao sair de casa, encontrei, junto ao portão do jardim, a Palmira de fisionomia abatida e de olhos vermelhos. Chorava evidentemente e no seu olhar havia ainda uma tristeza infinda. Comoveu-me o pesar dessa infeliz órfã e, procurando consolá-la, atraí-a ao meu peito e beijei-a. Notei então que a cabeça e as mãos da criança estavam quentes e perguntei-lhe se sentia algum incômodo. Respondeu-me que nada sentia, mas pediu-me que não saísse, que ficasse com ela, que estava com medo de ficar só. E recomeçou a chorar. Tranquilizei-a, e desculpando-me com a necessidade de estar na cidade, nesse dia, à hora marcada para assinar a escritura, parti, prometendo que voltaria cedo e que a levaria ao teatro.

 “A Palmira ficara junto ao portão do jardim e do carro, em que entrei, ainda a vi durante algum tempo, seguindo-me com os seus olhos vermelhos e tristes. Quando o carro começou a ocultar-se ao dobrar a primeira esquina, eu vi o braço dessa criança erguer-se para agitar um lenço na direção que eu levava.

 “Confesso-te que, nesse momento, tive ímpetos de retroceder, mas lembrei-me do meu compromisso relativo à escritura e deixei-me conduzir à cidade, prometendo a mim mesmo regressar o mais cedo possível.

“Na cidade, encontrei um bilhete do dono da propriedade cuja compra eu ajustara, desculpando-se de faltar ao rendez-vous que me havia marcado e pedindo-me que voltasse ao Engenho Novo para entender-me com ele sobre assunto de interesse comum.

“Fui, e depois de resolvida com o proprietário uma pequena dificuldade relativa a uma hipoteca que pesava sobre o imóvel, assentamos de novo que a escritura seria passada no dia imediato, sem falta. Na volta, muito satisfeito com a solução desse negócio, fui jantar ao Clube, resolvido a partir imediatamente depois para casa, a fim de conduzir a Palmira ao teatro. Mas, no Clube jogava-se, e da sala do jantar eu ouvia o ruído das fichas e a vozeria dos pontos em torno da mesa da roleta, em uma sala próxima. De estômago cheio, bem disposto e satisfeito, depois do jantar, quis arriscar uma centena de mil-réis e dirigi-me à sala do jogo. Quando entrei, um dos pontos, o Boaventura, aquele Boaventura das suíças vermelhas e do dedo torto, disse-me: Em quarenta e quatro bolas, dadas até agora, já saíram todos os números, menos o 9. Essa revelação deu-me um palpite: jogar no 9 obstinada e exclusivamente. E comecei a jogar nesse número, onde, para principiar, apostei três fichas de 1$. Não veio o 9, e na segunda parada eu arriscava seis fichas, depois nove, depois doze, continuando assim até 100$, que era o máximo permitido. Durante uma meia hora mantive-me nesse jogo, mas depois, já dominado pela febre, querendo readquirir o perdido e ter lucro, comecei a fazer jogo largo, e em cada parada arriscava o máximo. Na minha frente, um rapaz de dezoito anos, ainda imberbe, louro, de olhar brilhante, amontoava uns sobre outros cartões do valor de 50$ e tinha um grande lucro, calculado pelos pontos em cerca de doze contos, adquirido com uma entrada de 20$ apenas. Pela originalidade do seu jogo, que consistia em apostar exclusivamente nos zeros e nas cores, esse ponto feliz era o alvo das atenções de toda a sala, principalmente do banqueiro, que não perdia de vista a montanha de cartões de 50$, que ele acumulava na sua frente e sobre a qual pousava a sua mão alva e trêmula. Na sala, completamente cheia, fazia um calor abrasador e a atmosfera, carregada do fumo do tabaco e das emanações da carne, abafava e entorpecia os sentidos. De vez em quando, um criado do Clube percorria a sala oferecendo refresco e charutos aos pontos. Ouvia-se um vozear contínuo, exclamações de prazer ou de decepção dos jogadores, à mistura com o ruído das fichas e com a voz do banqueiro anunciando os números e fazendo os pagamentos. Às onze horas da noite, consultei a carteira: dos três contos de Palmira só possuía quatrocentos mil réis!... O 9 tinha engolido o resto e até esse momento a bola havia girado setenta e seis vezes sem cair nele!...

 “O que me restava em dinheiro dava apenas para quatro paradas, se eu persistisse em jogar o máximo.

“Ora, evidentemente, as probabilidades a favor do 9 aumentavam, e por isso arrisquei ainda e continuei a apontar nesse número.

“Na última parada, quando nada mais tinha do que cem mil-réis que eu, com mão convulsa, depositei no centro do quadrado em que estava o 9, o banqueiro anunciou o 2. Levantei-me então. O rapaz que jogava na minha frente e que já estava na déveine disse-me: Uma vez que o senhor abandona o 9, vou agora jogar nele. E fez a mesma parada que eu fizera até esse momento. Conservei-me ainda na sala para assistir a essa jogada e, por uma ironia da sorte, a bola caiu no 9. Saí desalentado, e para castigar o corpo fui para casa a pé, pensando na pobre órfã confiada aos meus cuidados, cuja herança eu acabara de dissipar estupidamente. Que dia e que noite tristes deveria ter passado essa criança, isolada, reclusa no meio de uma casa silenciosa, sem distrações, inteiramente entregue à sua dor!... Este pensamento afligiu-me. Quando entrei em casa, o criado comunicou-me que a Palmira estava doente. Cheio de remorsos, fui vê-la. Estava deitada na sua pequena cama de mogno e ardia em febre. Um médico, que mandei chamar a toda a pressa, diagnosticou a varíola. Torturado pelo remorso e atormentado por pressentimentos maus, passei o resto da noite ao lado dessa infeliz, que delirava chamando repetidas vezes pela mãe. No dia seguinte, o diagnóstico confirmava-se: a varíola aparecia. Durante uma semana conservei-me à cabeceira da doente, servindo-lhe de enfermeiro e disputando-a à morte. Mas, de nada serviram a minha dedicação e os cuidados do médico, porque, ao cabo desses sete dias, a desventurada Palmira exalava o último suspiro, horrivelmente desfigurada e chamando sempre, até o último momento, pela mãe, que ela via nos seus delírios e que certamente também chamava por ela lá do humilde jazigo, onde dormia o eterno sono. Nessa mesma tarde cumpri a piedosa missão de depositar a filha ao lado da mãe no cemitério de S. João Batista da Lagoa e, quatro meses depois, sobre a terra que guarda os ossos dessas duas infelizes, fiz erguer um mausoléu modesto, mas elegante em três contos de réis.”

E como o Silveira cessasse de falar e ficasse com os lábios um pouco trêmulos e os olhos mais brilhantes do que o costume, parecendo ter dado fim à narração, disse-lhe:

- É na realidade comovente a história que acabas de contar-me; mas o que tem tudo isso com estes charutos?

- Ah! sim, tens razão. É que na manhã seguinte à noite em que perdi a herança da Palmira, encontrei no mesmo bolso em que guardara o dinheiro, em vez dos três contos de réis, esses três charutos que me foram oferecidos pelo criado do Clube durante o jogo e que eu maquinalmente aceitei e guardei. E, como os charutos estavam ali substituindo a quantia perdida, rotulei-os com esse dístico que aí vês e no dia em que levei a pobre criança ao cemitério, sobre a sua sepultura jurei que nunca mais tornaria a jogar. Nunca mais joguei, de fato, a não ser o xadrez como exercício mental e, para recordar-me sempre do triste episódio que te acabo de narrar, conservei esses três charutos, que efetivamente me custaram um conto de réis cada um. São um tanto caros, não achas?

- Pelo contrário, acho-os baratíssimos. Quantos contos de réis terias tu perdido na roleta, de então para cá, se estes três charutos te não tivessem custado a herança da Palmira?...

O Silveira fez um sinal de assentimento e, tomando silenciosamente os charutos, beijou-os e meteu-os na gaveta da sua secretaria, que só então fechou à chave.

Meia hora depois, à sombra convidativa da frondosa mangueira do seu jardim minúsculo, e em frente a um tabuleiro de xadrez, meditávamos no xeque-mate que devíamos dar um no outro, enquanto as cigarras chiavam alegremente abençoando essa alma boa de solteirão solitário.

(A choupana de rosas, 1897.)

 

O DESCOBRIMENTO DO BRASIL

 [...]

A rota traçada nas linhas e entrelinhas do regimento era, pois: seguir a frota de Lisboa à ilha de Santiago, de Cabo Verde, daí seguir a frota à ilha de Santiago, de Cabo Verde, daí seguir pelo sul, bordejando pelo sudoeste, até alcançar a costa da Terra dos Papagaios, daí zarpar para o Cabo, dobrá-lo e seguir para a Índia.

Esse rumo inda é o mesmo que hoje seguem os navios que vêm de Lisboa ao Brasil. Pronta a frota de Cabral, partiu ela do Tejo aos 9 de março de 1500, acompanhando-a o rei d. Manuel até fora da barra. Cinco dias depois, a 14 de março, passa a frota pelas Canárias onde encontra calmaria e onde permanece um dia; a 22, chega a Cabo Verde e, exatamente um mês depois, a 22 de abril, avista a terra brasileira, gastando, de Lisboa a Porto Seguro, 43 dias.

Dos historiadores que consultei, e não poucos foram, sobre a viagem de Cabral ao Brasil, atribuem uns ao acaso esse feito, dizem outros que a frota fora impelida para a nossa costa por um forte temporal, que a apanhou.

Nenhum deles, porém, explica em que altura a frota foi apanhada pelo temporal nem quanto tempo este durou.

Ora, contra esse forte temporal protestam energicamente dois documentos que possuímos da viagem de Cabral: as cartas que Mestre João, o cosmógrafo da frota, e Vaz Caminha, o escrivão, enviaram ao rei d. Manuel, de Porto Seguro, pela nau que daí partiu a 1º de maio, de regresso a Lisboa, para dar conta do feito ao monarca.

Nem o cosmógrafo nem Caminha falam de tal temporal, pelo contrário, o que dizem é que, durante a viagem, houve calmaria e que por causa dela perdeu a frota um dia em frente às Canárias. Temporal sofreu a frota, mas depois que deixou o Brasil e se fez vela para o Cabo, onde faleceu o seu descobridor Bartolomeu Dias.

Não houve, pois, temporal na travessia até ao Brasil, nem o acaso interveio na chegada da frota cabralina a esta terra. O rumo a seguir tinha-lhe sido traçado; além disso, já nessa época tinham os portugueses perfeito conhecimento das correntes marítimas e dos ventos gerais e sabiam aproveitá-los de acordo com as rotas a seguir. O duplo fim de Cabral, tomando o rumo seguido e aportando ao Brasil, era, como já o disse, abastecer-se de lenha e água, dando descanso à marinhagem e tomar posse oficial da Terra dos Papagaios para a coroa portuguesa. O acaso e o temporal têm, portanto, de ser banidos dos livros que se ocupam do descobrimento da terra de Vera Cruz.

O primeiro e grande historiador que o Brasil teve, ainda hoje o mais sincero e verídico, é Pero Vaz Caminha, o modesto escrivão, que narrou ao rei d. Manuel, numa comovente e encantadora carta, onde a minúcia corre parelhas com a simplicidade, a história da travessia, da chegada e da permanência de Cabral na terra brasileira.

 Nessa longa missiva, escrita de Porto Seguro e datada de 1º de maio de 1500, o consciencioso historiador dá conta ao seu rei e senhor de todas as peripécias da viagem, desde a partida de Lisboa até ao Brasil e ainda de tudo o que se passou durante os 12 dias em que a frota ficou ancorada em frente à costa brasileira. Persuadido de que o que mais interessaria a D. Manuel era o conhecimento exato da terra reconhecida, da gente que a habitava, dos seus costumes e índole, das riquezas que possuía e da facilidade que poderia oferecer à colonização, não poupou minúcias para pôr o rei ao corrente do que vira e do que lhe poderia ser proveitoso.

É assim que ele descreveu com entusiasmo e cores vivas o esplendor da natureza brasileira, a frescura, abundância e potabilidade das nossas águas, a brandura do clima, a beleza do nosso céu, onde rutilava o cruzeiro, referindo-se com interesse e insistência à índole pacífica dos nossos indígenas, aos seus hábitos e costumes, à beleza das suas formas, à sua completa inocência, depreendida da sua completa nudez, e à facilidade com que aceitavam a catequese, parecendo-lhe empresa de pequeno esforço fazê-los cristãos, chamando-os ao grêmio da igreja. Tratando dos produtos naturais, descreveu a fauna e a flora que encontrou, a fauna e a flora que encontrou, acentuando que os íncolas haviam dado demonstrações evidentes aos da frota de que em terra havia ouro, prata e papagaios.

Descrevendo o que fizeram os indígenas, que acudiram à praia, quando das naus partiram as primeiras almadias para o transporte de água, diz que “os índios logo trouxeram cabaças e tomavam alguns barris que nós levávamos, enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis.”

Este trecho da carta de Caminha prova que a frota cabralina começou logo por fazer aguada e prova também que os indígenas vinham oferecer água aos homens brancos, como se já estivessem habituados a praticar esse serviço, repetindo atos praticados anteriormente; o que demonstra que não era a primeira vez que viam homens brancos e naus.

A facilidade com que alguns dos naturais se deixaram capturar e levar a bordo da nau capitânia, ali permanecendo e dormindo tranqüilamente durante uma noite, como narra Caminha, prova ainda que os nossos indígenas já estavam familiarizados com os europeus, que já os conheciam, que conheciam os seus hábitos e costumes, que deles não tinham receio.

E isso é ainda uma prova indireta de que os portugueses já haviam estado no Brasil antes de Cabral aqui chegar. E, de fato, cá estiveram, porque já aqui estava João Ramalho, que havia chegado 10 anos antes e que tanto facilitou a missão de Martim Afonso, quando este aportou à antiga capitania de S. Vicente.

Ao primeiro monte que avistou deu Cabral o nome de Monte Pascoal, à terra o nome de Vera Cruz, porque no céu rutilava o cruzeiro, e ao porto, onde definitivamente fundeou, o de Porto Seguro. Chegou o domingo de Pascoela, e, narra Caminha, que o capitão-mor deliberou ouvir missa e sermão em um ilhéu de Porto Seguro. Logo ali se armou o altar e frei Henrique de Coimbra oficiou, cercado de todos os padres da frota. Foi essa a primeira missa, de que temos notícia exata e circunstanciada, dita no Brasil, que forneceu assunto para um dos mais belos e sugestivos quadros de Vítor Meireles. Terminada a missa, frei Henrique subiu a uma cadeira alta, que lhe serviu de púlpito, e dali pregou, fazendo a história do Evangelho, descrevendo a travessia e pondo a terra reconhecida por Cabral sob a proteção da Cruz. À missa e ao sermão assistiram os naturais que ao ilhéu acudiram e que, ao depois, folgaram, fraternizando com os tripulantes da frota. Na nau capitânia discutiu-se depois se conviria tomar dois indígenas para enviá-los ao reino, ou se seria preferível deixar entre eles alguns degredados, sendo por grande maioria adotado de preferência este último alvitre, pois os degredados, ficando ali, aprenderiam a língua dos naturais e poderiam servir de intérpretes, quando o rei mandasse nova frota ao Brasil para o colonizar; acresce que era do plano de Cabral, como foi mais tarde do de Martim Afonso, não hostilizar os indígenas, não lhes incutir desconfiança alguma, tratando-os com carinho e brandura, sem os violentar jamais, para assim não sair dos preceitos da caridade cristã e tê-los sempre como aliados. Para os ir habituando à vida com os brancos, que deviam ficar definitivamente com eles, foram logo enviados à praia e aí deixados dois degredados, que deviam passar a noite com os naturais; mas estes, sem os molestar, coagiram-nos a voltar às naus. Quando os da frota ergueram num ponto elevado da costa, dominando o mar, a primeira cruz, que ficou em terra brasileira e que confirmou o nome de Vera Cruz, que Cabral lhe havia dado, os indígenas auxiliaram depois a abastecer as naus de lenha e de água. E quando a maruja beijou a cruz erguida, os índios também a beijaram, pondo-se de joelhos, gestos que levaram Caminha a afirmar “que era gente de tal inocência que, se os entendêssemos e eles a nós, seriam logo cristãos, porque, segundo parece, não têm nenhuma crença”. E acrescenta, logo depois, na sua luminosa carta ao rei: “se os degredados, que hão de ficar, aprenderem bem a sua fala, não duvido, segunda a santa tenção de vossa alteza, fazerem-se cristãos e crerem a nossa santa fé à qual praza Nosso Senhor que os traga, porque decerto esta gente é boa e imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhe quiseram dar... e, portanto, v. alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica, deve entender na sua salvação, e prazerá a Deus que com pouco trabalho será assim.”

Prova este trecho de carta do escrivão da frota que ele conhecia a tenção do rei, que sabia que o seu intento era chamar os naturais das terras, por onde passasse a frota, ao grêmio da igreja e que, ao contrário do que fizeram Colombo, Pinzón, Hojeda, Lepe e outros, era do seu programa assegurar a posse da terra reconhecida, conquistando os naturais pela brandura, e carinho, incutindo-lhes a fé cristã.

No dia primeiro de maio de 1500, véspera da partida de Cabral para o Cabo, nova missa foi dita por frei Henrique de Coimbra, não mais no ilhéu em que dissera a primeira, mas junto à cruz erguida em terra e à qual foi pregado o escudo das armas de Portugal.

Ainda a essa missa assistiram os indígenas, imitando todos os gestos que viram fazer aos portugueses e, depois do sermão, frei Henrique lançou ao pescoço de todos os que ali estavam, pequenos crucifixos de metal, que eles beijaram com satisfação e receberam com visível empenho.

Em seguida, foram-se os mareantes para as naus, deixando em terra dois degredados e no dia imediato, 2 de maio, a frota fez-se de vela para o Cabo da Boa Esperança, tendo regressado ao reino uma das caravelas, capitaneada por Gaspar de Lemos, para levar ao rei a notícia do reconhecimento oficialmente feito da terra do Brasil e da sua posse para a coroa portuguesa.

A essa terra, que era conhecida pelo nome de Terra dos Papagaios e que Cabral dominou Vera Cruz, pôs d. Manuel, em 1502, o nome de Santa Cruz, que foi posteriormente substituído pelo de Brasil, devido ao grande comércio do pau-brasil que ela produzia.

Dando conta, em carta, ao rei da Espanha do reconhecimento do Brasil feito por Cabral, disse d. Manuel: “o capitão deixou ali dois degredados à mercê de Deus.” Um dos pilotos da frota explicou depois que esses degredados puseram-se a chorar e que logo os naturais os animaram, mostrando ter piedade deles.

Vaz Caminha, na sua deliciosa carta, revela que, além desses dois degredados, que foram abandonados em terra, dois grumetes da frota para ela fugiram e nela ficaram por sua livre vontade, o que significa que a gente que a habitava era pacífica e hospitaleira.

Vem talvez daí a herança dessa proverbial hospitalidade brasileira, que tanto surpreende e encanta os estrangeiros que visitam o nosso país.

Eis, senhores, como foi descoberto o Brasil e como Cabral, 65 anos depois do seu descobrimento, o reconheceu e dele oficialmente tomou posse para a coroa de Portugal, à qual aliás pertencia pelo tratado de Tordesilhas.

Não coube, pois, a Cabral a grande glória de descobrir o Brasil, mas coube-lhe a não pequena glória de fazer o seu reconhecimento e dele tomar posse para o país que o descobrira, realizando o memorável feito sem hostilizar os filhos dessas regiões incultas, sem inflingir um ligeiro castigo, sem despertar neles o ódio que Colombo e os espanhóis, que depois vieram à conquista da América, acenderam entre os indígenas, dizimando-os, submetendo-os a ferro e fogo, caçando-os bárbara e desumanamente com cães amestrados na caça do homem, como quem caça hienas e lobos!

Essa imperecível glória coube a Cabral e basta ela para que se justifique o preito de admiração que lhe rendemos, sem olvidar os serviços inestimáveis dos seus maiores na busca e descobrimento desta terra abençoada.

Bastava a sua caridade cristã para com os filhos deste país para que lhe devêssemos o monumento que no Rio de Janeiro se acha erguido em frente ao mar glauco e luminoso, perpetuando a sua memória imaculada e a do seu feito incruento.

Com o reconhecimento do Brasil em 1500, fechou Portugal com elo de ouro o ciclo grandioso das suas descobertas no século XV com as quais dilatou o mundo e fez avançar a civilização.

Nesse século de estupenda atividade marítima, em que os lusos mareantes, guiados e instigados pela voz profética do infante d. Henrique, avançaram sem pavor pelo mar imenso e tenebroso, que devia estar cheio de escolhos, de bruma negra e povoado de monstros assustadores, descobriram eles, caminhando para o desconhecido, a ilha da Madeira, as Formigas, todas as ilhas do arquipélago dos Açores, todas as de Cabo Verde, o mar de Sargaços, uma grande parte do Brasil, uma parte da América Central e da América do Norte e, caminhando de ousadia em ousadia, dobraram o Cabo das Tormentas, descobriram e atravessaram o estreito de Magalhães, fizeram a primeira viagem em redor do mundo, apoderaram-se de uma parte da Ásia e de uma parte da África, enchendo o mapa com conquistas suas!...

(Primeira conferência da série organizada pelo Centro Republicano Português de São Paulo, realizada no Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, na noite de 3 de junho de 1911.)