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Discurso de posse

Excelentíssima Senhora Presidente Nélida Piñon,
Senhores Membros da Mesa,
Autoridades,
Prezados Acadêmicos,
Minhas Senhoras e meus Senhores:

Fui eleito pelos prezados acadêmicos para a Cadeira 15, vaga pela morte de Dom Marcos Barbosa. Devo confessar-vos, com toda a simplicidade, a inibição que sinto provocada por compreensíveis constrangimentos.

Meu primeiro constrangimento vem do fato de que todos os acadêmicos que me precederam nesta Cadeira foram poetas, desde Olavo Bilac, o fundador, que escolheu Gonçalves Dias como patrono, até meu caro predecessor, Dom Marcos Barbosa, depois de passarem Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida e Odylo Costa, filho. Recordo hoje a memória deles prosaicamente, ou seja, numa prosa modesta que contrasta com a cintilância poética de meus predecessores.

Aliás, quando Olavo Bilac morreu, em 1918, foi levantada a idéia de que a Cadeira 15 ficasse sempre vaga, porque, como disse Amadeu Amaral em seu discurso de posse, “nenhum poeta parecia ainda digno de sentar-se na Cadeira de Bilac, como o mereceria alguém que não fosse poeta de todo?” Ora, este é precisamente o meu caso. Em recente conferência, sobre os poetas da Academia, o acadêmico Lêdo Ivo chamou a atenção para a redução do número de acadêmicos que dedicaram à poesia a parte mais importante de sua produção literária. Eles teriam sido nove, na fundação, um século atrás, e hoje seriam apenas três. Assim, minha eleição para a Cadeira no 15, sempre ocupada por poetas, pode até parecer o resultado de uma conspiração prosaica.

Sofro ainda um outro motivo de constrangimento ao suceder dom Marcos Barbosa, aqui recebido no dia 5 de maio de 1980 com a saudação de Alceu Amoroso Lima: “Senhor Dom Marcos Barbosa, monge da Ordem de São Bento e Poeta da Ordem dos Trovadores do Reino de Deus...”

A resposta de Alceu ao discurso inaugural de dom Marcos é de uma beleza só atingível por um grande talento iluminado por uma grande amizade. Aliás, por significativa coincidência, para a qual me alertou o caro amigo Prof.Candido Mendes de Almeida, irmão de meu irmão jesuíta, dom Luciano Mendes de Almeida, minha eleição ocorreu no dia 14 de agosto, dia do décimo quarto aniversário da morte de Alceu.

Vejo nessa coincidência como que uma advertência, um apelo, para exaltar a memória daquele que Mestre Alceu aqui recebera com tão grande brilho. Tenho plena consciência, porém, de que para tanto faltam-me o seu engenho e sua arte.

Entretanto, uma observação de Odylo Costa, filho, em seu discurso de posse, ameniza o meu constrangimento. Ele discorda de seu antecessor Guilherme de Almeida, que considerava a Cadeira 15 a Cadeira da poesia. “Não é só a poesia que define esta Cadeira, nem ela é, entre todas, a Cadeira da poesia”. Confirma sua observação com exemplos: “...da poesia também poderiam ser as que têm como patronos Castro Alves, ou Álvares de Azevedo ou Fagundes Varela, ou Casimiro de Abreu...” e conclui: “nem esta Cadeira é, entre todas, a da poesia, nem foram apenas poetas os que, como ele - Guilherme de Almeida - me antecederam.”

Todos eles foram homens de jornal, com intensa atividade em órgãos da imprensa, que influenciaram profundamente a opinião pública, tais como Jornal do Commercio, Correio Mercantil, Correio da Tarde, Correio da Manhã, O Estado de S. Paulo, Gazeta de Notícias e tantos outros.

Muitos deles foram verdadeiros ativistas cívicos. Envolveram-se em campanhas de expressiva importância para a promoção cultural e política do povo, mobilizando a opinião púbica, inclusive, pelo vigor de seu estilo poético. Entre eles destacam-se as figuras de Gonçalves Dias, Olavo Bilac e do próprio Guilherme de Almeida. A idéia de considerar a Cadeira 15 como a cadeira da poesia foi retomada no discurso de dom Marcos Barbosa, que era poeta.

Eu não consegui ser poeta, conquanto a idéia tenha seduzido minha juventude. Confesso-vos que perpetrei alguns versos juvenis - quantos aqui não os terão perpetrado? - mas foram versos muito mais impregnados pelas humanidades clássicas em que me formara do que na beleza poética dos imortais que aqui me precederam. Na austeridade da formação jesuítica de então, ali só penetravam textos não só castiços, mas principalmente castos, o que impunha serveros limites à minha iniciação literária, como é fácil de compreender. Não me dava ainda bem conta da verdade austera do dito latino: “Peta nascitur; orator fit.” Não nasci poeta. Os versos então perpetrados não ressoaram além das ameias clericais em que vivia. Traí de certo modo as esperanças de meu pai, “clínico” de profissão, mas peta por inclinação. Ele sucumbiu ao vezo da época, ao “sonetismo” ironizado com tanta elegância por Peregrino Júnior, saudando o acadêmico Odylo Costa, filho. Meu pai também deixou sonetos, inéditos, marcados pela tristeza. Pela sua silenciosa discrição, nunca vim a saber se, não seguindo sua carreira e seus pendores, tenha eu sido a causa de sua secreta melancolia.

Tenho assim, portanto, consciência dos motivos pelos quais não poderei frustrar a confiança que em mim depositaram os prezados acadêmicos elegendo a mim, que não sou nem poeta bissexto, para uma Cadeira até hoje ocupada por poetas, os quais, porém, não foram só poetas.

Meus predecessores

O fundador da Cadeira 15 foi Olavo Bilac, que escolheu como patrono Gonçalves Dias. A Bilac sucedeu Amadeu Amaral, seguido de Guilherme de Almeida, Odylo Costa, filho e dom Marcos Barbosa.

Guilherme de Almeida teve a idéia de definir o legado literário que caracterizava melhor cada um de seus antecessores. A Gonçalves Dias atribuiu o ritmo; a Olavo Bilac o lirismo e a Amadeu Amaral a primazia do pensamento.

Odylo Costa, filho retoma a idéia de seu predecessor definindo-a, porém, com mais precisão. Para ele, Gonçalves Dias inaugura no Brasil a poesia romântica; Olavo Bilac é o parnasiano por excelência; Amadeu Amaral se desprende dos rigores da métrica para dar mais liberdade à expressão clara do pensamento e, em seu discurso de posse, diz: «Poderia acrescentar que Guilherme foi o sentimento.»

Antônio Gonçalves Dias

O ritmo não foi só urna das características de seu verso, de sua poesia. Foi também a característica de sua vida, escandida, nos seus 41 anos, por urna alternância cruel de reveses, de glórias e fracassos, de êxitos e desastres na vida pública, corno acentuou Olavo Bilac em discurso de homenagem ao patrono por ele escolhido para a Cadeira 15, revezes principalmente devidos a envolvimentos e turbulências amorosas.

O perfeito domínio da língua e do ritmo que tanto impressionava o austero Alexandre Herculano aparece com maestria, a meu ver sem igual, na sua poesia. A tempestade, a segunda que ele dedicara ao tema. Parte da descrição da aurora radiosa, em versos dissílabos:

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso
De luz,
E trêmulo
E puro
Se aviva
Se esquiva
Rutila
Seduz

Utiliza toda a variedade métrica, culminando com desabar da tempestade descrita em versos de 11 sílabas:

Nos últimos cimos dos montes erguidos
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares
Até que lascados baqueiam no chão.

Percorre de volta a mesma escala métrica, até fechar a poesia também com fugidios versos dissílabos:

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai,
VaciIa
Palpita
Mais grossa
Hesita
E treme
E cai

Entretanto, já no Prólogo da primeira edição de seus Primeiros cantos, ele mesmo, em 1846, quando tinha apenas 23 anos, faz a revelação surpreendente da origem secreta de sua vocação poética:

Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política, para ler em minha alma, reduzindo a linguagem harmoniosa e candente o pensamento que me vem de improviso e as idéias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano, o aspecto, enfim, da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento, o coração com o entendimento, a idéia com a paixão, colorir tudo com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia, a Poesia grande e santa, a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir.

Não tenho a pretensão de fazer aqui o encômio do patrono, já feito com tanta beleza pelo próprio Dom Marcos Barbosa em seu discurso de posse nesta Academia, em 5 de maio de 1980.

Limito-me apenas a referir-me a certos aspectos da vida de Gonçalves Dias, que mais impressionam, especialmente sua intensa atividade na vida pública e a preservação de sua vocação poética.

Formou-se em Direito em Coimbra, com 17 anos, em 1840. Exerceu atividades de magistério, como professor de Latim e de História do Brasil no Colégio Pedro II.

Com um Canto Inaugural em memória do Cônego ]anuário da Cunha Barbosa, entra no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1847.

É enviado às províncias do Norte do Brasil, com incumbência de estudar a situação da instrução primária, secundária e profissional. Em 1854, foi à Europa para avaliar precisamente os métodos de instrução pública. A incumbência o levou a visitar Portugal, França, Inglaterra, Alemanha e Espanha. Aproveita esta viagem para publicar em Leipzig um dicionário da língua tupi, 1857.

De volta ao Rio, em 1858, é enviado mais uma vez ao Norte, como membro da Comissão Científica de Exploração da Riqueza Amazônica, só regressando em 1861, já debilitado pela doença. Em busca de tratamento, viaja no ano seguinte, outra vez à Europa, de onde voltaria para morrer no naufrágio do Ville de Bourgogne, já às vistas de suas plagas de origens, em 1864 (Grandes poetas românticos do Brasil, São Paulo, Edições LEP, 1949).

Causa espanto verificar como Gonçalves Dias, de saúde frágil, marcado pela discriminação racial de sua ascendência mestiça, com tantas responsabilidades burocráticas, nos tenha deixado um tão caudaloso legado literário, de poesias, poemas, sonetos, cantos de saudade, de amor à Pátria e a outros amores, de traduções primorosas dos originais de Heine, Dante, Lope de Vega, num domínio total da metrificação. Era um paisagista admirável e um apaixonado sentimental, e se projetou, sobre muitas de suas obras, a luz crepuscular de um panteísmo difuso, não diluiu a referência a um Deus pessoal, como aparece nos seus Cantos, na poesia intitulada A Idéia de Deus (o.c., p. 383). Foi o que captou Carlos Magalhães de Azeredo, como o confessa em seu discurso de saudação a Amadeu Amaral: “Imergi-me com Gonçalves Dias... e senti com ele como, partindo do encanto familiar da florzinha nascida no nosso jardim ou da palmeira que se ergue de um recanto da nossa chácara para o espaço, podemos abranger pelo olhar e pelo sonho um espaço muito mais amplo, indefinido, todo o espaço, acolher no nosso coração os vales, os montes, os bosques, e os rios, as nuvens e os ventos e os astros e a causa das causas que em tudo vive e espera, aquele Agente universal e eterno de que fala o florentino: 'L' amor che muove il sole e l'altre stelle'.” (Discursos acadêmicos, voI. IV, pp. 254-255.)

Gonçalves Dias viveu muitos anos na Europa, no século em que ela se afirmara como a metrópole cultural do Ocidente. Ele sentia ali uma condescendente displicência para com as periferias culturais, inclusive as Américas. Foi este sentimento ou ressentimento que teria influenciado o seu americanismo. Foi “o amor da gente americana”, como observa Olavo Bilac em seu discurso, antes citado, gente americana vilipendiada na Europa, que Gonçalves Dias quis resgatar em suas obras mais vigorosas: “Os timbiras”, infelizmente inacabada, e principalmente “I-Juca-Pirama”, segundo Bilac: “obra-prima do maior poeta de nossa terra”, Foi este americanismo de Gonçalves Dias que inspirou o soneto do autor das Panóplias:

A Gonçalves Dias

Celebraste o domínio soberano
Das grandes tribus, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,

O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inúbia, e o kanitar indiano...
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.

Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplíssimas florestas

Guardam teu nome; e a lyra que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que cantaste.

Olavo Bilac

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o verso alexandrino já começa pelo nome. Certamente foi o mais brilhante poeta da era clássica de nosso lirismo, antes da ruptura ocorrida na Semana da Arte Moderna. Bilac morreu, com efeito, em 1918.

Bilac é o poeta parnasiano por excelência. Distancia-se de nosso lirismo romântico, pela busca de uma poesia mais objetiva e pelo cuidado no cultivo da forma poética. Ninguém utilizou com mais perfeição o verso dodecassílabo, o alexandrino, cujo ritmo mais se aproxima do hexâmetro latino da grande epopéia, a Eneida, de Virgílio.

Mas não só de versos viveu Bilac. O pai, o médico Dr. Guimarães Bilac, era um homem austero que impunha ao filho uma formação acadêmica e haveria de se indignar com sua boemia. Não conseguiu terminar o curso de Medicina no Rio e foi para São Paulo com o propósito de se formar em Direito. Do Direito mesmo pouco se ocupou, mergulhado na literatura, especialmente a francesa: Gautier, Victor Hugo, Leconte de Lisle, que rompera com o romantismo e reunira um grupo de poetas que formaram exatamente a escola parnasiana. Tenho sérias suspeitas da influência do poeta dos Poèmes barbares (1862) sobre o futuro autor do Caçador de Esmeraldas. Volta para o Rio e abandona definitivamente qualquer preocupação com o bacharelado e mergulha na boemia tão repudiada por seu pai. Sobre essa boemia dos poetas da época, aos quais se associava Bilac, diria Odylo Costa, filho, em seu discurso de posse: “Todos riam, sabiam rir. As tristezas ficavam para os versos.”

Começou então uma intensa atividade jornalística, em muitos órgãos e revistas da capital e dos estados, e, através de seus artigos, envolve-se em debates políticos e participa de inúmeras iniciativas administrativas e promocionais, como a remodelação da cidade, a campanha contra o analfabetismo e pelo serviço militar: “Quer um Brasil sem analfabetos, sem arrivistas, sem morfina e sem tango”, na citação do mesmo Odylo Costa, filho.

Aliás, desde a juventude, como o nota Amadeu Amaral no belo discurso de posse, como sucessor de Bilac, este, “de par com a luta contra a escravidão e contra a monarquia, punha na atmosfera uma permanente vibração de energias insurreicionais, a revolta contra as estreitezas e as escurezas do espírito burguês, em regra escravocrata e monárquico...” (Discursos acadêmicos, voI. IV, p. 209.)

É o mesmo Amadeu Amaral que detecta com lucidez a transformação que se operava na poesia brasileira, evoluindo dos lirismos convencionais para a corrente parnasiana pela atuação decisiva de Olavo Bilac: “O fundo era velho e pobre: atitudes românticas, de fatalismo filosófico, de pieguice amorosa, de democratismo verboso; o tom, declamatório e maquinal; os temas, estafados; as pinturas, artificiais; as imagens, oratórias e gastas; as cadências, infantis; os metros, cambaios; as rimas, enfim, demasiado insignificantes para serem metidas tão à força.” Desta crítica mordaz escapavam Gonçalves Dias e Castro Alves. A reação não se faria esperar canalizada pelo parnasianismo: ”modificaram-se as atitudes, balizaram-se novos rumos, refez-se a provisão dos assuntos gerais, reeducou-se a técnica transviada e claudicante. Sobretudo, procurou-se, a exemplo dos mestres franceses em voga, a recortada precisão das idéias, o relevo forte da imagem, a cadência sacudida e vivaz do verso, o ressair pontiagudo da rima - cada coisa bem limada, bem acabada, bem repolida e cada coisa no seu justo lugar.” (Ibid., p. 213.)

Se Bilac representou essa renovação da forma de nosso lirismo, foi devido à profunda evolução interior que marcou sua vida, provocando um impulso ascensional também no conteúdo de sua vasta produção literária.

Apesar de ter sofrido muito a influência do positivismo comtiano e do materialismo de Guerra Junqueiro, passou por uma evolução interior que Amadeu Amaral soube também registrar: “subindo da juventude à maturidade, ele subiu do materialismo alado, onde predominou o sensualismo - de seus primeiros dias, a uma alta espiritualidade, onde entrelaçou as flores mais finas do sonho pagão com as flores mais viçosas do cristianismo... E essa constante ascensão ele a fez por uma escada de estrelas.” (Ibid., pp. 221, 226.)

Ora, direis, ouvir estrelas!
...
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.

(Via Láctea)

Na fase de minha vida em que trabalhei como professor do curso de Retórica, devia preparar cada ano, com meus alunos jesuítas, uma representação teatral. No primeiro ano, fiz representar uma montagem dialogal, com tradução simultânea por microfones, da Anábase, de Xenofonte, com o desfecho emocionante do “Thálassa, Thálassa”. O tema, aliás, o mar, inspirou também um dos belos poemas de meu predecessor Dom Marcos Barbosa. No segundo ano, fizemos, com a mesma técnica, uma representação de O Santo Graal, que o caro Pe. Augusto Magne acabara de publicar, inclusive com músicas de fundo do Lohengrin e Taunhäuser, pela banda local da Eutuérpia. No terceiro ano, enfim, deslumbrado pela beleza do Caçador de Esmeraldas, montei a peça que intitulei Auto de Nossa Vida, de futuros caçadores de almas.

Ah! Quem te vira assim, no alvorecer da vida
Bruta Pátria, no berço, entre as selvas dormida,
No virginal pudor das primitivas eras,
Quando aos beijos do sol, mal compreendendo o anseio,
Do mundo por nascer que trazias no seio,
Reboavas ao tropel dos índios e das feras.

Para surpresa minha, esse pudor virginal, esses beijos, seios e anseios escandalizaram o pudor clerical de meu Superior eclesiástico, que recomendou a supressão da estrofe impudica. Mas ficou o delírio:

Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas
Verdes, na verde mata, embalam-se as ramas
E flores verdes no ar brandamente se movem,
Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio,
Em esmeraldas flui a água verde do rio
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem.
E é uma ressurreição! O corpo se levanta...

A idéia de ressurreição tinha ressonâncias bíblicas. Meu auto foi aprovado e, com ele, a minha pobre obra-prima mutilada.

Amadeu Amaral

Dos poetas que ocuparam a Cadeira 15, Amadeu Amaral é talvez aquele cujas obras, ao menos fora de São Paulo, tiveram menor ressonância. No entanto, nas qualificações definidas por Guilherme de Almeida, ele se destaca, de maneira clara, como o poeta que se despojou deliberadamente da sofisticação parnasiana, no intuito de preservar o vigor do pensamento, a primazia do conteúdo sobre a forma.

Não era fácil suceder a um Olavo Bilac. Contudo, pela praxe protocolar de o acadêmico fazer o elogio ao seu predecessor, nenhum dos ocupantes da Cadeira 15 desempenhou esta tarefa com mais brilho e pertinência do que Amadeu Amaral.

Ele, que nasceu em São Paulo em 1875, ali viveu, trabalhou e publicou suas numerosas obras poéticas, sofria uma certa amargura pelo desinteresse e desapreço do público pela poesia. Em seus Estudos e Notas de Literatura que editou com o título de Elogio da mediocridade, dedica um capítulo ao Calvário dos poetas, “cuja sina dolorosa constituía... uma admirável prova de coragem moral, de uma serena e persistente coragem, coragem estúpida porque a ninguém e a nada aproveita o fazer um cidadão tão completo sacrifício do seu tempo, da sua saúde, do seu sossego, do seu futuro e de sua reputação” (pp. 18 e 19).

Foi a Academia Brasileira de Letras que reconheceria o valor dessa coragem, recebendo-o entre os seus membros já em 1919, como sucessor de Olavo Bilac.

Aquela amargura fechou-o, nos inícios de sua produção literária, em urna reclusão quase monástica. É o que atesta Carlos Magalhães de Azeredo no discurso em resposta ao novo acadêmico.

Desta fase é sua primeira obra poética, Urzes (1899), opúsculo que revela uma certa imaturidade, a qual Azeredo, com elegante franqueza, não deixa de criticar: “a língua é, a espaços, tosca, a metáfora é rebelde ou canhestra, o ritmo... trai... um árduo esforço de adaptação” (Discursos acadêmicos, vol. IV, p. 238).

Passaram-se 11 anos até a publicação de seu segundo livro de poesias, Névoas, no qual o autor já manifesta um pleno domínio da arte mais sublime da palavra. Só em 1917, apareceria a sua terceira coletânea poética, Espumas, onde já surge o poeta que se impunha como digno sucessor de Olavo Bilac. Só em 1931, dois anos após sua morte, é editado o volume Poesias, com suas obras poéticas dispersas, inclusive com sua última poesia, “O açude”, que revela a frustração interior que tanto o atormentava.

O Açude

Que me importa o rumor transitório ou perene,
que afetuoso me exalte ou duro me condene?
Que a obra pereça ou dure e brilhe ainda,
se findou para mim, desde que a dei por finda?
Certo é doce pensar, numa volúpia calma
que a feitura, onde estão pedaços de nossa alma
há de permanecer, forte - quais penedias
sob inquieto caudal - sob o dobrar dos dias.
Certo é doce a quimera. Às vezes a quimera é
todo o bem do herói, que, na treva, ainda espera
ver de brusco raiar, do atro horizonte ao nível
o encantado fulgor de uma aurora impossível...

Entretanto, nem só na poesia ele atingiu níveis de excelência, mas como prosador, estimulado talvez pela queixa de Carlos Magalhães de Azeredo, afirmou também sua presença na literatura. Além de uma intensa atividade jornalística durante 20 anos, n' O Estado de S. Paulo e na Gazeta de Notícias, do Rio, além do Elogio da mediocridade, já citado, publicado em 1924, dedicara-se ao estudo do folclore paulista em A poesia da vida (1921), da linguagem e das tradições das populações humildes em O dialeto caipira e Tradições populares, edições de textos dispersos por ele deixados. Em sua atividade jornalística, bateu-se por campanhas cívicas decisivas para resgatar nossa democracia vacilante, como foi o caso da luta pelo voto secreto e os debates que deflagraram a revolução constitucionalista de 1932 (ver Discurso de Odylo Costa, filho, Discursos acadêmicos, voI. VII, p. 524).

Aquilo que para Amadeu Amaral parecia uma quimera, o encantado fulgor de uma aurora impossível, tornou-se realidade, fulgiu do horizonte ao nível, quando foi acolhido com tanta cordialidade por esta Academia nas palavras de Carlos Magalhães de Azeredo: “A Academia quis consagrar... sobretudo o valor intrínseco dos vossos escritos. Assim, vos chamamos para aqui, como companheiro excelente, correligionário e irmão de armas, a fim de conosco discorrerdes dos altos anelos do espírito, a fim de combaterdes conosco os justos combates contra o materialismo dos critérios e das cobiças que, pela errada ou deficiente compreensão deste momento histórico, ameaça, hoje, talvez mais que nunca, a personalidade intelectual e moral da nossa pátria.” (Discursos acadêmicos, voI. IV, p. 249.)

Entretanto, foi Guilherme de Almeida, em seu discurso de posse, que formulou uma análise inexcedível em pertinência e elegância, da obra de Amadeu Amaral (Discursos acadêmicos, voI. VII, pp. 254 e ss.). É o sonhador, é o apóstolo, que ensina: “Basta crer na beleza, ama o que é forte e puro, odeia o que é perverso”; é o crente do anseio ascensional de uma fé que não verga; é o sábio que repreende a tristeza dos fúteis; é o amigo em quem constantemente o amigo “procura a mão serena que o procura; é o poeta: é o justo, é o puro, é o bom; é o humilde entre as glórias do mundo; é o lutador que resume seu sentido de vida nos versos finais”:

Tudo quanto me alenta o esforço é o
próprio esforço...
O esforço é bom quando nos ergue e nos
arrasta no turbilhão da vida e do sonho!
E isso basta.

Guilherme de Almeida

Guilherme de Almeida inaugurou a idéia de definir uma característica essencial de seus predecessores: Gonçalves Dias, o ritmo; Olavo Bilac, a forma parnasiana; Amadeu Amaral, a primazia do pensamento sobre as constrições formais. Odylo Costa, filho, que o sucederia em 1969, diz em seu discurso de posse: “Guilherme foi o sentimento” (Discursos Acadêmicos, voI. XIX, p. 516).

Entendo o sentimento atribuído a Guilherme de Almeida quase que como um elã vital impetuoso que o lançou na multiplicidade de causas, de compromissos e de instituições em que se envolveu, ela que arrebatou, numa evolução surpreendente, sua trajetória poética, arraigada em sua paixão pela língua de Portugal, cuja beleza o poeta exaltou nesta Academia:

Adubada generosamente de sangues invasores derramados em lutas escuras, aí vicejava uma língua abundante, compósita, variada e versátil; à policromia, à flexibilidade, à inquietude, ao bulício, à vivacidade imitativa do latim, juntara-se a aspereza de tropel das línguas germânicas despejadas do Norte brumoso em hordas de vândalos, suevos e alanos, que roem ruivos, bruscos, brutos, esporeando ancas, entre estrépitos bárbaros de corcéis sem brida, brandir de montantes brunidos, roçar rústico de adagas e toques roucos de toscas buzinas; juntara-se também a languidez cantante da modulada algaravia mourisca, cheia de estalidos de almenaras, tatalar de estandartes nas albarrãs das alcovas, bandurras e arrabis tangidos sobre alcatifas e alfombras, nos páteos coloridos de pavões, alfaias, esmaltes, azulejos e cheiros de sândalo, cânfora, almíscar, rosas e granadas... (Discursos acadêmicos, voI. VII, p. 244.)

Esta língua de Portugal, enriquecida no Brasil pela enorme influência indígena e negra, às quais Guilherme de Almeida não se refere aqui, seria o instrumento de uma prosa e de uma poesia que o levariam aos cimos da literatura brasileira.

Formado em Direito, em São Paulo, em 1912, dedicou-se à imprensa, trabalhando em todos os jornais paulistas e colaborando com grande número de instituições nacionais e estrangeiras.

Creio que poucos membros desta Academia tenham acumulado tantos títulos acadêmicos e tantas condecorações como ele. Foi membro da Union Cultural de Sevilha; do Seminário de Estudos Galegos de Santiago de Compostela; do Instituto de Coimbra; Comendador da Ordem de Santiago da Espada, Portugal; Grande Oficial da Coroa da Romênia; Cavaleiro da Legião de Honra, França; Grande Oficial da Ordem Militar de Cristo, Portugal; Grande Oficial do Mérito da Síria; Comendador da Ordem do Tesouro Sagrado, Japão, dentre outras.

Foi um apaixonado pela heráldica e autor dos brasões de várias cidades brasileiras, inclusive São Paulo e Brasília.

Envolveu-se na revolução constitucionalista e, todos os anos, em 9 de julho, recitava a “Oração à Última Trincheira”, junto ao túmulo dos heróis de 1932, como, mais tarde, foi o autor da “Canção do Expedicionário” cantada pelos pracinhas brasileiros na guerra contra o Eixo.

Mas Guilherme de Almeida foi, acima de tudo, um poeta. Aliás, ele mesmo disse: “Para mim nada existe fora da poesia” (citado por Odylo Costa, filho, ibid., p. 529).

Com efeito, como vimos acima, seu texto sobre a língua de Portugal é de uma extraordinária beleza poética.

Em seu discurso de posse, observa, com um certo reducionismo retórica, que a muda importada da língua de Portugal, por três séculos, pareceu seca e morta. Era preciso que surgisse um Gonçalves Dias ”porque nas suas veias estava consumado, pelo rito amoroso da mestiçagem, o milagre da raça”. Ele já era o Brasil. Guilherme de Almeida é tão espontaneamente poeta que o texto, sobre o primeiro romântico brasileiro, flui marcado pela cadência do mesmo ritmo do verso de Gonçalves Dias: “Cantou, no assovio dos ventos sedosos que passam nas folhas moventes e frescas, a igara que voga na fuga dos rios; a voz da Mãe d'Água nas listas correntes, que lavam e levam seus finos cabelos; a flecha' que foge; Tupã nos trovões.”

É também em versos, e versos alexandrinos, que o seu discurso celebra o parnasianismo de Olavo Bilac: “Agora, num gemido, uma alma inquieta passa: e há nas vozes da terra um desejo mudo; há palavras de fé que nunca foram ditas; há confissões de amor que morrem na garganta... A Pátria é uma mulher, é a namorada verdade, que mostra ao bandeirante, entre as selvas dormida, o mundo por nascer que trazia no seio...” (Ibid., p. 249.)

De Amadeu Amaral, Guilherme fala com especial carinho porque o conheceu pessoalmente: “Alto e calmo. Alto como uma aspiração para o céu; calmo como uma conformação com o mundo... Há pureza e inteligência e resignação no seu perfil certo de águia prisioneira... Fala e é como se estivesse dizendo uma prece... Amadeu foi justamente o poeta que nunca pareceu um poeta. Porque ele foi um poeta. A sua vida e sua obra dizem isso. Numa e noutra nunca houve cabotinismo nem coube nunca a maldade... Não pode haver poesia verdadeira onde não há a bondade. Porque a bondade é a forma inteligente da beleza e a beleza é todo e único material de todo puro artista.” (Ibid., p. 251.)

Neste elogio ao amigo, que abdicava do preciosismo da forma para preservar a verdade do pensamento, Guilherme de Almeida, talvez sem se dar conta, formulava a tese fundamental da metafísica aristotélica: os valores supremos são inseparáveis: na perfeita unidade se integram a beleza, a bondade e a verdade supremas.

A trajetória poética de Guilherme de Almeida foi acidentada. Partiu da poesia lírica fiel aos cânones convencionais na qual atingiu culminâncias fulgurantes, já perceptíveis em seus primeiros versos do livro Nós, de 1917; mais refinadas na Dança das Horas (1919); Messidor (1920); Livro de Horas de Sóror Dolorosa (1920), que ele considerava seu livro predileto; Era uma vez (1922) e A frauta que eu perdi (1924), do qual recitou algumas poesias, no meio de vaias, na Semana de Arte Moderna. Da poesia lírica inicial evolui na linha do modernismo triunfante, quando publica, dentre outras, as duas mais importantes: Meu e Raça, ambos em 1925.

Aos poucos, entretanto, volta às suas origens líricas, sem perder o contato com seus companheiros do modernismo. É intenso, nessa época, seu trabalho de traduções em prosa e verso. Publica Poemas escolhidos (1931); Acaso (1938); O anjo de sol (1951) e Pequeno romanceiro (1957).

Uma obra poética tão rica e tão brilhante havia de merecer-lhe, em 16 de setembro de 1959, o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, em eleição da qual participaram Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e o próprio Mário de Andrade. Seus últimos livros de poesia foram: Rua (1961) e Rosamor (1965), nos quais ele já parecia pressentir o fim:

E há para o vôo aceso numa aurora,
Pressentimentos de asa nos meus ombros
Quando a Moça da Foice me namora.
Deixem-me descansar.
...
Já fiz o que tinha de fazer.

Era a madrugada de 11 de julho de 1969.

Odylo Costa, Filho

Odylo é o penúltimo escritor que me precedeu nessa Cadeira, também ele, como seus antecessores, com uma rica produção literária, mas, sobretudo, poética. Foi ele que atribuiu a Guilherme de Almeida, como definição característica de seu estilo e de sua vida, o sentimento. Não gostaria que com ele a tradição terminasse. Antecipo-me assim a explicitar a nota essencial que, para mim, caracteriza os meus dois antecessores: Odylo Costa, filho, a magnanimidade; dom Marcos Barbosa, a oblação.

Odylo é maranhense, de São Luís, como o patrono, Gonçalves Dias, onde veio à luz em 1914. Nascia com a Primeira Guerra Mundial, demonstração devastadora de ambições e de rancores, que já prenunciava a segunda, mais terrível, quando Odylo, já no Rio de Janeiro, se dedicava ao jornalismo, onde entrara em 1931 pela mão do acadêmico Félix Pacheco, para a redação do Jornal do Commercio.

Sua vida era quase totalmente absorvida por atividades burocráticas e pelos setores de jornalismo e de radiodifusão. Não abandonava, entretanto, uma quase secreta atividade literária, que desabrocharia, em 1949, na peça infantil O balão que caiu no mar, inspirada em um poema de Manuel Bandeira, que viria a ser seu maior amigo. Foi Manuel Bandeira que incluiu, na sua Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos, poemas inéditos de Odylo.

Em 1942, casara-se com Nazareth, à qual Peregrino Júnior haveria de se referir na resposta ao discurso de posse de Odylo na Academia: ”boa, doce, tranqüila, de uma suave e autêntica beleza, sem artifício nem ostentação, foi também a dona de sua vida e a fiandeira de sua glória.” (Discursos acadêmicos, voI. XXI, p. 65.)

No Rio, a família se instalara em Santa Teresa, onde cresce o lar harmonioso e fecundo e se reuniam os amigos de Odylo. É ali que o casal, em 1963, é ferido pela dor. Morre sua filhinha Maria Aurora, a suave e longa aurora que levou 11 anos para amanhecer no céu. Ali os atinge o golpe fulminante da morte heróica do filho mais velho, também chamado Odylo. Heróica é também a reação do pai: de resignação, de perdão e de apelo pungente pela salvação dos meninos de rua, como o assassino de seu filho.

O sofrimento assumido pelo casal, com tão emocionante magnanimidade, leva Odylo a reduzir suas atividades burocráticas, a recolher-se no silêncio, no qual criaria poemas admiráveis, que Manuel Bandeira colocava “entre os mais belos da língua portuguesa” (cfr. Anuário da ABL, 1970, p. 81).

O Soneto de Job

Este grito, que é rio amargo, choro
que não é meu apenas, mas de todos
que o filtro das insônias decantou,
ouve-o, Senhor, que é grito de infelizes.

Perdi-me e te procuro pela névoa
no céu em fogo, no calado mar
a Teus pés volto. Faça-se o que queres
Tanto me deste que por mais que tires

Sempre me resta do que Tu me deste
Deus necessita do perdão dos homens
E é esse perdão que venho Te trazer
Com o coração rasgado, mas ao alto
Senhor, Te entrego os filhos que levaste
pelo amor dos meus filhos que ficaram.

O drama emocionou a opinião pública e despertou um movimento em defesa da criança abandonada, que resultou na criação da Comissão do Bem-estar do Menor.

Recolhido em sua dor, resolveu retomar uma história inacabada que lera para Odylinho, o qual lhe pedira que a terminasse. Daí nasceu a novela A Faca e o Rio e, com ela, sua vocação de ficcionista, que o levaria a elaborar depois A invenção da Ilha da Madeira e, sob a forma de um canto de Natal, a História de seu Tomé meu pai e minha mãe Maria.

Mas Odylo Costa, filho, foi sobretudo poeta; poeta, como disse Alceu, de poucos versos e muita poesia. Sua atividade literária foi incentivada pelo contato com seus amigos de Portugal, nos anos de 1965 a 1967, onde foi adido cultural da Embaixada do Brasil, quando editou Tempo de Lisboa e outros Poemas. Suas outras principais obras poéticas foram: Cantiga incompleta, com prefácio de Heráclio Sales (1971); Os bichos no Céu (1974), poemas com ilustrações de sua esposa Nazareth; Notícias de amor (1976); A vida de Nossa Senhora, com ilustrações de Nazareth (1977); e Boca da Noite (1979), cujo manuscrito foi por ele entregue à Editora Salamandra poucos dias antes de sua morte. Ao texto, a Editora acrescentou ainda dois poemas compostos pouco depois da entrega do manuscrito. Um destes poemas, intitulado “Insônia”, contém estrofes que parecem soar como um presságio:

E me faço a pior das companhias.
Foi-se-me o gosto do viver terrestre,
já nem quero fugir para alegrias
de sol urbano ou de ventura agreste.
Fujo de mim. Minhas recordações têm um travo
terrível de água morta.
Ó vinde a mim, novas fabulações,
e me guiai para a celeste porta.

Uma semana depois, em 19 de agosto de 1979, a porta celeste abrir-se-ia para ele. Conheci pessoalmente os dois últimos ocupantes desta Cadeira de número 15: Odylo Costa, filho, e Dom Marcos Barbosa. O primeiro, conheci nas circunstâncias atormentadas pela dor, na missa que celebrei pelo filho. O segundo, conheci nesta Academia.

São símbolos de duas opções de vida que têm, contudo, um postulado comum. Odylo se refere à sua opção numa passagem emocionante do discurso no dia de sua posse:

Foi a vida que me transformou... em poeta contumaz. Ela, a vida, me devolveu em verso as coroas de areia e as canoas no rio, meu carneiro no quintal, o cavalo pequeno galopando na chapada, meu Pai, severo, minha Mãe paciente. E os olhos puros com que um dia vi adolescente aquela que é hoje minha mulher... A poesia me dá de novo uma existência inteira, até mesmo os filhos que perdi e entrego a Deus, a quem rezo ainda hoje o Padre Nosso que aprendi pequeno, não só pelos que me restam como pelos outros, os outros meninos deste meu país.

A opção de Odylo foi por Nazareth, opção que ele exalta com emocionante beleza no seu soneto “Fidelidade”, do qual recordo os últimos tercetos:

Molhamos nosso pão quotidiano
na vontade de Deus aceita e clara,
que nos fazia para sempre um,
E de tal forma o próprio ser humano
Mudou-se em nós que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.

Pela sua opção de vida, Dom Marcos Barbosa renunciou à família, cuja beleza tanto exaltou em palavras e escritos, e consagrou-se à vida monacal. Não lhe foi uma opção fácil e só assumida quando se convenceu de que a dedicação à vida contemplativa não exigiria a renúncia a seu culto ao ideal da beleza artística. O próprio Dom Marcos, num diálogo representado no encerramento do II Congresso dos Religiosos, em São Paulo (1956), revela o sentido profundo de sua vida na resposta generosa ao apelo do Mestre:

Se queres ser perfeito
vai, corre, voa
vende tudo que tens
e dá tudo aos pobres.
Eles partiram tristes
porque tinham muitos bens
Vós também
ireis, acaso, deixar-me?
Senhor, nós deixamos tudo e te seguimos
Meu Deus e meu tudo.

Dom Marcos deixou tudo, como os apóstolos, para seguir o Mestre:

Deixaram tudo...
umas redes, uns peixes,
umas terras
um pai
uma noiva
uma profissão
um sonho.

As duas opções, entretanto, de Odylo e de Dom Marcos, têm um postulado comum, que dá a eles toda a sua beleza e que formularia nestes termos: eles sabiam que a suprema expressão da liberdade é a decisão, a coragem de assumir compromissos irreversíveis. Com todas as alegrias e tribulações, eles foram fiéis até o fim: Odylo e Nazareth e Dom Marcos, monge da Ordem de São Bento e Poeta da Ordem dos Trovadores de Deus. Eles sabiam que o amor é que dá sentido à vida e é mais importante que a vida, palavras do Pe.João Bosco Bumier S.J. poucos dias antes de ser assassinado.

É a Dom Marcos Barbosa que desejo agora referir-me quando ocuparei sua Cadeira, precisamente no dia em que, se vivo fosse, completaria 82 anos de idade.

Dom Marcos Barbosa, OSB

A primeira e mais intrigante indagação refere-se precisamente à sua opção de vida. Num Brasil que, como ressaltava Alceu Amoroso Lima, em seu discurso em resposta ao novo acadêmico, enfrentava desafios novos, aquele jovem prendado, fazendo seu curso de Direito e já atraindo as atenções pelo charme de seu trato e de seus primeiros ensaios literários; no momento em que parecia tão importante permanecer nas lides da ação, este jovem deixa tudo, opta pela vida contemplativa e se recolhe ao silêncio claustral do Mosteiro de São Bento. Sua opção seria uma fuga das responsabilidades, seria um distanciamento dos compromissos com as angústias e esperanças de tantos que dele tanto esperavam?

Consideraria mesquinha tal interpretação do gesto difícil e nobre de Dom Marcos Barbosa, optando pela vida contemplativa. Foi em um jesuíta, talvez o mais fulgurante pensador jesuíta deste século, que encontrei a mais linda interpretação da opção das almas contemplativas. Refiro-me a Pierre Teilhard de Chardin S.J., que deles escreveu: deixando a planície da ação imediata e buscando os cimos da vida contemplativa, “Elles respirent pour nous les plus purs courants de Ia haute atmosphère”. Os cimos cobertos de neves eternas não são utilizáveis para a agricultura que sacia a fome dos homens; parecem uma grandiosa e inútil exibição do esplendor da natureza. No entanto, é deles que as planícies e os campos recebem as correntes límpidas que os fecundam.

No momento em que o jovem Lauro Barbosa, orientado por Alceu Amoroso Lima, compreendeu claramente que sua opção pela vida monástica não implicava a exigência da renúncia, mas, ao contrário, a exaltação de seu culto à beleza literária, ele não hesitou. Foi este o sentido profundo da opção daquele jovem que, em 1939, ingressava na Ordem de São Bento.

Não gozei de maior intimidade com o futuro acadêmico, mas, através de seus escritos, tive a impressão de surpreender que ele viveu, no seu íntimo, aquela inefável e decisiva experiência que o gênio da patrística latina, Santo Agostinho, exprimia nas suas confissões: “Quam suave mihi subito factum est carere suavitatibus nugarum; et quod ammittere metus fuerat jam dimittere gaudium erat”: “Como, de repente, se tomou tão suave para mim carecer das suavidades mesquinhas e, de tudo aquilo que tinha tanto medo de perder, abri mão com tanta alegria.”

O mosteiro beneditino do Rio de Janeiro fora fundado em 25 de março de 1590, como consta da belíssima edição da obra O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, 1590-1990, Studio HMF, com prefácio de Lúcio Costa e texto de Dom Mateus Ramalho Rocha O. S. B.

No mosteiro, se conserva e se venera a imagem de Nossa Senhora de Montserrat. Por uma surpreendente coincidência, foi na noite de 24 para 25 de março de 1522 que um cavaleiro basco de nome Inigo de Loyola, no mosteiro beneditino, não longe de Barcelona, diante da estátua da mesma Virgem Maria de Montserrat, fez sua vigília de armas e ali depositou sua espada. Despojado de suas insígnias e vestes de nobreza, recolheu-se a Manresa, onde assumiria o compromisso decisivo de sua vida: de cavaleiro de um rei terreno, consagra-se como cavaleiro do Reino de Cristo. Aquela vigília de armas foi o início de uma evolução interior que culminaria com a instituição que Inácio de Loyola haveria de ver aprovada em 1540, pelo Papa Paulo III, Farnese, a Companhia de Jesus. A esse cavaleiro, Inácio de Loyola, Dom Marcos Barbosa haveria de se referir, muitos anos depois, em seu livro Poemas para crianças e alguns adultos, com a poesia “Um coxo que vai longe”. Como São Bento, sobre a derrocada da Roma Imperial, tinha expandido a primavera monacal de sua Ordem, assim esse cavaleiro de Loyola haveria de trazer novas forças à Roma Pontifícia ameaçada pela corrupção interna e pelo impacto da Reforma Protestante. Hoje, o primeiro membro dessa Companhia de Jesus, que germinou aos pés da Virgem de Montserrat, ingressa nessa Academia, sucedendo a um beneditino da Abadia do Rio de Janeiro, de Nossa Senhora de Montserrat.

Referências Biográficas

Lauro de Araújo Barbosa nasceu em Cristina, Minas Gerais, em 12 de novembro de 1915. Estaria, assim, completando hoje 82 anos. Fez seus estudos ginasiais em Itajubá e, em 1934, vem para o Rio, onde inicia seu aprendizado jurídico na recém-fundada Universidade do Distrito Federal.

São desta época seus primeiros ensaios literários quando, na capital da República, ainda se sentiam as agitações que iriam modificar os rumos de nossa história política e cultural. Eram os impactos da Semana de Arte Moderna, que criara tantas turbulências, no meio literário e cultural, inclusive como antes notava, em um dos mais brilhantes acadêmicos da Cadeira 15, Guilherme de Almeida. No campo político, eram as turbulências da Revolução de 1930, a reação constitucionalista de 1932, na qual também se envolveram Amadeu Amaral e sobretudo Guilherme de Almeida. Era a surda insatisfação nos quartéis que explodiria na chamada Intentona Comunista de 1935, ou seja, no ano seguinte da chegada ao Rio de Lauro Araújo Barbosa: era a efervescência da Ação Integralista Brasileira, que ofereceria o pretexto final para a imposição do Estado Novo, em 1937.

Entrementes, nosso jovem mineiro se aproximara do Centro Dom Vital, fundado em 1920 por Jackson de Figueiredo e que, desde 1932, funcionava no Paço da Cidade, onde em 1938 fora criada a mais antiga instituição cultural da América Latina, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi ali que, em 1934, conta Alceu, “me defrontei de imprevisto com um jovem pálido, tímido e desconhecido que, sem qualquer apresentação, vinha bater à nossa porta, como tantos outros de uma nova geração insatisfeita com a disponibilidade filosófica e religiosa e principalmente com a substituição de um Império anacrônico por uma República burguesa” (resposta de Alceu ao discurso de posse de Dom Marcos Barbosa – Discursos Acadêmicos, voI. XXIII, p. 175). Era o momento em que, por iniciativa do Papa Pio XI, se expandia a Ação Católica, a maior mobilização do laicato católico no mundo. No Brasil, ela também se desenvolvia sob a liderança de Dom Sebastião Leme, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, que nomeara Alceu Amoroso Lima Presidente da Ação Católica Brasileira. E Alceu convida aquele jovem mineiro “tímido e pálido” para ser seu secretário. Uma nova vida começava para ele.

Situava-se num ponto privilegiado de convergência e de irradiação. Diria mesmo que estava no centro de um tornado de poderosas forças de aspiração ascensional, forças de renovação cultural e filosófica, forças da renovação religiosa e litúrgica.

Saindo da metáfora para a história, é imperiosa a referência a nomes como os de Jacques Maritain e Dom Martinho Michler O.S.B. De Paris se irradiara o pensamento do primeiro, com Les dégrés du savoir (1932) e L'Humanisme intégral (1936).

De Beuron, com Dom Martinho Michler O.S.B., vinha a renovação da vida monástica e da beleza da liturgia, da mesma Beuron, aliás, de onde ressoava o encanto genial e irreverente da Carmina Burana.

Deste frêmito espiritual e cultural, em cujo centro se destacava a figura de Alceu, surge um laicato católico, do qual uma parte iria, com o próprio Alceu, colaborar com Pe. Leonel Franca S.J. na fundação da primeira Universidade Católica do Brasil, e outra parte, composta especialmente de jovens, procuraria na vida monástica a busca de novos horizontes. Entre esses jovens estava Lauro de Araújo Barbosa, que, terminado o curso jurídico, trabalhara no escritório de advocacia de José Nabuco, mas, em 1939, ingressa na Ordem de São Bento, no Mosteiro do Rio de Janeiro, onde se ordenou sacerdote em 1947.

Ali, sob o signo beneditino do “ora et labora”, Dom Marcos Barbosa orou e trabalhou durante 58 anos de uma vida que “melhor atendia às duas vocações inatas que trazíeis, em vosso coração e em vossa inteligência: a de uma profunda e espontânea espiritualidade e a de uma veia poética irresistível”, como disse Alceu Amoroso Lima ao recebê-lo, no dia 5 de maio de 1980.

Aqui a figura de Dom Marcos Barbosa avulta como o homem da palavra escrita. Para além deste cenáculo cultural, como ainda para além do mosteiro ao qual se recolheu, o nome de Dom Marcos Barbosa ressoa como o homem da palavra falada.

O homem da palavra escrita, o homem da palavra falada, são duas facetas do cristal luminoso que procurarei refletir, mesmo sem o brilho que merece.

Dom Marcos, Tradutor

Ele foi um tradutor primoroso e fiel, não um traditore.

A obra cuja tradução, revista por ele, e pela qual maior gratidão lhe deve a Igreja Católica no Brasil, foi certamente Os Salmos, que, juntamente com o Cântico dos Cânticos, foram considerados, ou seja, cum-sideribus, com os astros, as mais cintilantes fulgurações do lirismo no horizonte da cultura bíblico-cristã. A versão dos Salmos lhe foi solicitada pelas Edições Loyola, como ele mesmo informa na Introdução, que lhe propuseram dar uma redação literária e poética à tradução do texto hebraico publicada, em 1951, pelo jesuíta Pe. Ernesto Vogt S. J., Reitor do Instituto Bíblico de Roma. A tradução de Dom Marcos, publicada em 1977, com muitas reedições, foi o texto que, desde então, veio sempre sendo aperfeiçoado. Assim, não é exagero dizer que hoje a Igreja Católica orante, no Brasil, salmodia com as preces cuja letra original lhe foi legada por ele.

Dom Marcos vertera para o português, de Maurice Druon, O menino do dedo verde, hoje na 59a edição, e, de Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe, 44a edição, 1997. Não são textos ingênuos. São símbolos da inocência que tem a intuição dos sentidos essenciais e da relatividade dos valores. Traduziu ainda: Orações da Arca, de Carmen Bernos de Gasztold; Marcelino Pão e Vinho, de Josemaria Sanchez da Silva; O pão da vida, de François Mauriac. Fez uma adaptação das obras do Pe. MarceI Marie Desmarais: Pílulas de otimismo, em três volumes, e Clínica do coração.

Entretanto, Paul Claudel foi o autor francês do qual traduziu mais obras: O anúncio feito a Maria; Joana d'Arc entre as chamas; Via Sacra; O diálogo de Santa Escolástica com seu Irmão, São Bento, texto do qual fez a tradução em versos.

O ano de 1955, pouco depois de Dom Marcos começar suas crônicas radiofônicas, foi um ano inclemente e simbólico para as letras francesas. Nele, Paul Claudel, um gênio vulcânico, se extingue na Quarta-Feira de Cinzas. Nele, Pierre Teilhard de Chardin S. J., uma fulguração radiosa, se apaga na luminosa manhã do Domingo da Páscoa da Ressurreição.

Lamentavelmente foi Paul Claudel que lhe causou a mais profunda mágoa, à qual se refere em sua crônica radiofônica publicada na revista A Ordem de 8 de março de 1955. A notícia da morte de Claudel, ocorrida poucos dias antes, em 23 de fevereiro, deixara-o embaraçado, como ele mesmo o narra em seu artigo “Amigo”:

“Terei eu o direito de colocar sob a rubrica de amigo o genial poeta, aquele que grandes espíritos consideram superior a Dante e capaz de dialogar, através dos séculos, com os maiores trágicos gregos? Terei eu o direito de usar esse adjetivo em relação a quem recebeu com tão pouco interesse a visita de um Tristão de Ataíde, talvez o maior divulgador entre nós de sua obra genial? Creio que sim. Que Claudel é meu amigo pelo muito que me deu na sua obra. Foi bom que eu não o conhecesse, que eu pouco me informasse de sua aparência distante, de suas atitudes antipáticas. Pois nada disso me impediu de receber em cheio o choque de sua poesia, o turbilhão de seu gênio.” (A Ordem, maio de 1955.)

De Teilhard de Chardin S.J., Dom Marcos Barbosa não conhecia então os trabalhos. Suas teses sobre a cosmogênese, a antropogênese e a cristogênese foram julgadas perigosamente avançadas pelo Superior Geral da Companhia de Jesus, que lhe vetara a publicação de livros ou artigos. No entanto, foi Teilhard que deu uma das mais belas interpretações da beleza da vida monástica. Num momento em que um intenso ativismo pastoral agitava a França, considerada pays de mission, não faltaram os que depreciassem a vocação contemplativa como uma forma de alienação das urgências eclesiais. Na publicação póstuma da correspondência de Teilhard, encontra-se a expressão antes citada de sua certeza da importância, para a Igreja, das vocações contemplativas.

Dom Marcos Barbosa não guardou ressentimentos das atitudes de Paul Claudel, que morrera com 87 anos, quando orientava os ensaios da peça Jeanne d'Arc au bûcher, no momento em que a heroína acabava de pronunciar, nos versos traduzidos por Dom Marcos:

Como é belo viver e como a glória de Deus
é imensa. Mas como é bom também morrer
quando se acaba bem
e sobre nós se estende pouco a pouco
o obscurecimento de uma sombra escura.
"À sombra de Deus sentou-se o grande poeta, comenta Dom Marcos, que encheu o mundo de uma luz que não se apaga, acesa na fé e no gênio."
 (A Ordem, maio de 1955, p. 345.)

Dom Marcos, Autor

Dom Marcos escreveu em prosa e verso. É a única divisão excludente que é possível fazer de sua obra literária. Entretanto, ele se notabilizou mais como poeta. Foi em versos que compôs hinos, grande variedade de autos, além de suas numerosas obras poéticas. Aliás, seu primeiro livro, Teatro, publicado no ano mesmo de sua ordenação sacerdotal, 1947, prefaciado por Gustavo Corção, recém-convertido, era uma coletânea de pequenos autos em verso, representados no próprio mosteiro.

No mesmo gênero literário dos autos, que lembram muito os do Pe. José de Anchieta, ele publicou vários outros livros, entre os quais menciono, como os mais expressivos e os mais representados: Mãe Nossa que estais no Céu, publicado em Belo Horizonte, s.d.; Para a noite de Natal, Petrópolis, Editora Vozes (1963); Para preparar e celebrar a Páscoa, ibid. (1964); A noite será como o dia, publicado em 1959 e reeditado em 1968; Um menino nos foi dado, organizado por Lúcia Benedetti, in Teatro infantil (1974).

As obras em prosa que tiveram maior influência na formação do laicato católico foram O livro do peregrino, publicado em 1955; O livro da família cristã, prefaciado por Dom Hélder Câmara; Um encontro com Deus, Rio de Janeiro, Editora José Olympio (1991), que publicara, em 1985, Nossos amigos, os Santos. Colaborou também em estudos de natureza cultural, como: Manifestações de autonomia literária: a Escola Mineira e outros Movimentos, in História da cultura brasileira, Rio de Janeiro, Fename/CFC-1973; A arte sacra, Rio de Janeiro (1976), Coleção Tema Atual.

A maior parte, porém, dos seus escritos em prosa foram as crônicas radiofônicas publicados na A Ordem e Encontro Marcado, lidas durante quase 40 anos na Rádio Jornal do Brasil, e depois na Rádio Catedral, e nos artigos que publicava semanalmente no mesmo Jornal do Brasil.

Dom Marcos Barbosa foi, antes de tudo, um poeta, autor inclusive do hino do 36o Congresso Eucarístico Internacional de 1955, hino traduzido em várias línguas, inclusive em latim, pelo próprio Dom Marcos, e em inglês por Thomas Merton, que nascera, como ele, em 1915, e com ele mantinha fraternal amizade.

Dom Marcos Barbosa, Poeta

Dom Marcos Barbosa como poeta não teve pretensões nem épicas nem trágicas. Seu lirismo se fez sentir em sua palavra escrita e em sua palavra falada, nas crônicas, nos autos, nos oratórios e poemas.

Seu culto à beleza não era o efeito de um fútil esteticismo literário. Era fruto da certeza de sua convicção metafísica antes referida, de que os supremos valores universais são inseparáveis: a suprema unidade é o supremo bem, a suprema verdade, a suprema beleza. A fidelidade a essa suprema beleza como critério de vida já é um culto de adoração à suprema e única bondade, à suprema e única verdade, fidelidade na qual hauria a força para sua opção de vida.

Ele é um poeta e a primeira característica que nele me impressiona é a simplicidade, a total ausência de vaidade, diria mesmo, a inocência.

Falei em inocência. O termo se presta a uma ambigüidade semântica, pela proximidade de suas raízes etimológicas latinas: nocere e noscere. Apenas uma letra, um s, as distingue. Dom Marcos foi um inocente, alguém incapaz de nocere, de fazer mal a quem quer fosse e sempre disposto a prestar a mais cordial satisfação a quem um mal-entendido pudesse eventualmente ter magoado. Entretanto, neste cenáculo do culto às letras, permito-me pedir licença aos austeros zeladores da autenticidade semântica, para relacionar inocentemente a inocência também com o noscere, mais próximo do radical grego gnasco, gnóstico, mas usado em latim no verbo cognoscere, conhecer. Neste sentido também, Dom Marcos Barbosa foi um inocente. Sem se envolver em sofisticados debates gnósticos, ele se dirigia, ex abundantia cordis aos inocentes, àqueles que só entendem um gesto, uma palavra de ternura e compaixão. O inocente tem o dom, como ele, Dom Marcos, de se extasiar ante as belezas singelas, por exemplo, as flores:

As muitas flores conversam
no silêncio do jardim:
Todos que passam me aspiram!
Diz a primeira. O jasmim.
Eu reino como rainha
e sou por isso orgulhosa,
Qual outra a mim se compara? pergunta, insolente, a rosa.
Da orquídea sofisticada
à repetitiva hortênsia,
gabam todos seus encantos
numa fútil concorrência.

Porém, oculta entre as folhas,
uma flor nos desconcerta:
a violeta quer dar-nos
o prazer da descoberta.

A expressão, porém, mais singela desta inocência literária de Dom Marcos talvez seja o livro As vinte e seis andorinhas, no qual evoca a lembrança de um menino que viu sua mãe sorrindo lendo um livro que, para seu espanto, não tinha figuras. A mãe explica que as letrinhas escondiam histórias que faziam rir ou chorar. O menino aprendeu a ler e a escrever aquelas letrinhas:

As letras são como flores,
formando um belo buquê
que o grego chama alfabeto
e o português ABC.

O menino tomou-se escritor. Chamava-se Gustavo Corção, que haveria de prefaciar o primeiro livro de Dom Marcos.

A poesia, para Dom Marcos, “não é apenas a plenitude do homem, ela é a sombra de Deus, o apelo de Deus, o limiar do paraíso e do mistério, a própria porta do céu” (”A Escolha da Poesia», A Ordem, 1961, p. 226).

O lirismo de Dom Marcos se revela também no que chamaria um certo detalhismo descritivo dos fenômenos e dos gestos. Só a inocência das crianças e dos humildes, tão próxima do humus, do chão, pode captar os detalhes, os pormenores, que não chamam a atenção dos que se deixam envolver no turbilhão das preocupações cotidianas:

Do céu desceu a chuva
a gota entrou no chão
a vinha deu a uva
a espiga deu o pão.
O homem com carinho
curvou a rude mão
da uva faz o vinho
do trigo faz o pão.

(Hino do Congresso Eucarístico, cantado por milhões de fiéis no altar do Aterro.)

Iludir-se-ia, entretanto, quem visse em Dom Marcos Barbosa o poeta de pequenas poesias bem metrificadas e rimadas. Ele é também o poeta dos êxtases ante a beleza cósmica e a tragédia humana. Soube inclusive livrar-se dos rigores prosódicos convencionais. A beleza o seduziu, como ele mesmo confidencia no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Arte, em 12 de setembro de 1985: “só foi capaz de deixar de repelir o chamado de Deus, quando a Ordem de São Bento lhe revelou que a beleza, apesar de tudo, não fora de todo banida da Casa do Senhor.” Eis um exemplo de seu êxtase ante o mistério da beleza e da dor:

Mar, misterioso mar
Profundezas misteriosas do mar,
que ninguém jamais viu,
onde apenas penetra
quando as ondas são claras,
nas noites de lua,
o olhar apagado
dos mártires cegos.
Mar,

quantas túnicas guardas no teu fundo
das virgens que se despiram,
quantos corpos de recém-nascidos
que os peixes não ousaram tocar.

Por isso, mar, és negro no teu fundo
e quando todos dormem tranqüilos
na noite quieta,
na noite de estrelas
só tu te agitas.

Mar, misterioso mar,
de quantos corpos de suicidas
és o habitáculo profundo?
Quantos buscaram em ti o esquecimento?

Mar terrível
Mar monstruoso
Os que morrem em ti
não têm a calma tranqüila,
o sono abençoado à sombra da cruz.

Mar, belo mar selvagem,
que inspirastes os poetas de todos os tempos
e deste ao cetro do rei
as pérolas do teu seio.

Mar terrível, mar de pecados e lamentos
chorando de noite
batendo no peito das rochas
mas sempre seduzindo os viajores incautos
e as mulheres desiludidas.

Quando repousarás, ó mar?
Quando serás tranqüilo como os olhos mortos
e o gesto sereno dos santos?

Para que habite em ti,
como no princípio,
quando as coisas não eram
o Espírito vermelho
que vaga no mundo
turbando os homens?

(Poemas do Reino de Deus)

A segunda característica que destaco em Dom Marcos é a simpatia. Também aqui me refiro às origens semânticas do termo grego: syn + pathein, sofrer com; partilhar dos mesmos sentimentos. Na sua vida, encarnou a inspiração do lema do monge da Ordem de São Bento: Succisa virescit, a planta cortada rebrota verdejante. O sofrimento, longo sofrimento, que o golpeava nunca o impediu de florescer de novo em sua intensa e múltipla operosidade, em suas crônicas radiofônicas, seus poemas, sua atividade jornalística, seus artigos, seus autos, sua correspondência. Foi somente nos últimos três anos de sua vida que a dependência do tratamento reduziu seu ritmo de trabalho, mas nunca lhe arrefeceu a certeza de que, golpeado pela dor, haveria de reverdecer na plenitude instantânea da glória.

Respeito sinceramente aqueles que não compartilham das convicções religiosas dele e minhas, mas seria injusto para com ele, se omitisse a referência ao lado luminoso de sua fé, à imagem de serena beleza de sua devoção, à vertente sofrida de sua simpatia para com os que sofrem.

Essa característica de Dom Marcos, de saber como o Apóstolo Paulo “flere cum flentibus; guadere cum gaudentibus”, chorar com os que choram; alegrar-se com os que se alegram, transcende sua atividade poética e manifesta-se em toda a variedade de formas de comunicação por ele usadas, na palavra escrita e falada.

O amor, mais forte do que a morte, inspirara já ao jovem Lauro Araújo Barbosa, recém-chegado das Minas Gerais, a poesia, na qual Antônio Corrêa de Oliveira via a promessa de um grande poeta, e que o autor oferecia para ser publicada na revista A Ordem em 1937, dois anos antes de sua entrada no Mosteiro. Alceu, que atesta o fato, vê no poema uma sublimação de amores adolescentes no mais puro amor celeste. Vejo no poema a afirmação da certeza cristã no destino definitivo da criatura humana, como o revela o próprio título, o repto mais frontal, mais ousado da fé à inexorabilidade cósmica:

Ressurreição da carne
Teu corpo
Perfeito como o vaso do oleiro
Em que bebi a essência de tu' alma
Há de voltar ao solo
De onde vem a argila.

Tuas mãos,
Que se erguem numa oferta,
E se puseram sobre as minhas num gesto de noivado,
Hão de tomar-se um húmus,
De onde vem o lírio.

Teu cabelo,
Que cobria tua cabeça como um véu,
Diante da minha majestade de homem,
Há de voltar às minas
De onde vem o ouro.

Teus olhos,
Carvões desoladores,
Que queimaram a minh' alma e purificaram o meu corpo,
Se apagarão no céu,
De onde vem a luz.

Tua boca,
Livro purpúreo
Que guardava as palavras da Sabedoria,
Mergulhará no mar
De onde o coral vem.

Teus gestos, sóbrios como um culto,
Que marcaram o limite do meu mundo
Hão de perder-se no espaço
Como um vôo ferido.

Tua voz,
Que aplacava a minha ira
E chegava à torre do meu exílio,
Há de se partir como a corda
De onde vem o som.

Teus passos,
Que marcaram sulcos na minha carne,
Hão de se perder como o rastro do peregrino,
Que a areia do deserto apaga
Na direção incerta.

Mas um dia,
Ao soar das trombetas,
As tuas partículas desagregadas,
Entradas na formação de outros mundos,
De novo formarão um todo perfeito,
Sem ruga e sem mancha.

Então os anjos,
Com as suas asas de fogo,
Longas e rubras,
Formarão um círculo em torno do teu corpo
Para defendê-lo;
E ele será como a cidade invicta,
Onde ninguém penetra.

Mas quando eu chegar,
Transfigurado,
Na minha veste de núpcias,
Os anjos se afastarão,
Silenciosos, ...

E eu, comovido,
Ante a tua beleza,
Que nada iguala,
Apenas tocarei, com medo,
A orla do teu vestido.

Entrando no Mosteiro, na Ordem de São Bento, o jovem percorre seus anos de formação monástica e vai descobrindo novas e secretas fontes de inspiração, na liturgia e na sua nova opção de vida.

E não demorava muito para que iniciasse sua trajetória de escritor “numa linguagem saborosa, moderna, viva, plástica, diáfana...” que lhe permitiu construir uma obra discreta, feita de sutileza, de pureza, de angelitude, no sentido da leveza e da extrema delicadeza, como dele escreveu Antônio Carlos Vilaça.

Publicou muitos autos, especialmente para o Natal e para festas de Nossa Senhora, como o que narra o diálogo dela com José.

José: Chegamos de fato a uma gruta
transformada em estábulo.
Maria: Sinto agora meu filho
estremecer em meu regaço
Ouço a voz de meu filhinho

dizer baixinho:
É aqui.
José: Não quis nascer como Deus,
não quis nascer como rei,
não quis nascer como pastor,
quis nascer como pobre.
Maria: É aqui. É aqui.

(Natal de 1960.)

Tais versos foram escritos muito antes de a Conferência Episcopal Latino-Americana (CeIam) ter proclamado no México, em Puebla, 1978, “a opção preferencial pelos pobres”.

O mais longo e mais lindo auto de Dom Marcos, sobre aquela que era sua mais secreta e amorosa devoção, é o auto Maria, Mãe de Deus e dos homens, que, aliás, inclui textos de Gabriela Mistral e Cecília Meireles e reconstitui todos os episódios da vida mariana, do Fiat que tornou possível o maior evento de toda a história do Cosmo, a construção célula por célula, nas entranhas virginais, do corpo do Filho do Homem - Filho de Deus; do Fiat até a espada da dor que lhe traspassa o coração, aos pés da cruz onde seu filho se imola pela redenção do mundo, a cruz, o símbolo geometricamente mais perfeito: um eixo horizontal que abraça todas as latitudes cortado pelo eixo vertical que atravessa todas as longitudes (cfr.: A Ordem, 1961).

Sobre os autos de Dom Marcos Barbosa ninguém escreveu com tanta beleza e lucidez quanto Sábato Magaldi, no Ciclo de Conferências do Centenário da Academia Brasileira de Letras, sobre o tema “Os Dramaturgos”.

A “simpatia”, segunda característica de Dom Marcos, o mostra solidário com a dor humana. Em seu programa da Rádio Jornal do Brasil, não se perdia em especulações eruditas, mas levava conforto ao sofrimento e alento às alegrias. Seus milhares de ouvintes experimentaram uma espécie de sentimento de orfandade com o silêncio final dos Encontros Marcados, transmitidos por quase 40 anos.

Esta solidariedade com o sofrimento também é tema de muitas de suas mensagens radiofônicas, reproduzidas pela revista A Ordem, como as mensagens sobre a morte do repórter e fotógrafo Luciano Carneiro, e ao casal Celso Augusto FontenelIe e Lia Duarte Pereira pela morte do filhinho em 1957.

Dom Marcos, em seus artigos e alocuções, dedicou um carinho especial ao amor humano, consagrado, pelo sacramento do Matrimônio, à família cristã, através de inúmeros autos, poemas, recitais, homilias, como a pronunciada no Mosteiro, em abril de 1957, quando abençoava o casamento de Marcílio Marques Moreira e Maria Luiza Oliveira Pena. Essa preocupação com a obra-prima da cultura cristã, que é o lar cristão, a família cristã, era-lhe talvez inspirada por um sentido premonitório das graves crises que a família enfrenta hoje e que motivou a convocação aqui para o Rio de Janeiro do II Encontro Internacional sobre a Família, presidido pelo Sumo Pontífice, João Paulo II.

É a esse amor consagrado na família que ele dedicou uma das suas mais belas poesias:

O ouro do amor
Ouro saído das minas
o que na terra vais ser?
Serei do rei a coroa,
o cetro do seu poder.

Ouro saído das minas
qual na terra o teu destino?
Serei do poeta a pena,
jorrando o verso divino.

Ouro saído da terra,
na terra qual o teu fado?
Serei um par de alianças
para selar um noivado.

Um foi ouro do poder,
outro foi ouro de glória,
mas foi o ouro do amor
que teve a mais bela história!

Foi quando o império passou
e foi o poema olvidado,
que o amor estava,
brilhando nos filhos transfigurado...

“Per dipingere le cose del Cristo, bisogna vivere con il Cristo.” Permito-me parafrasear esta frase atribuída a Fra Angelico: também para cantar as coisas do Cristo, é preciso viver com o Cristo, como o fez Dom Marcos Barbosa. Quem percorre sua obra tem a impressão de que a vocação à vida monástica representou uma ruptura, quem sabe, uma ruptura heróica, em sua evolução poética. Sua facilidade em versejar, sua inspiração artística não são mais levadas a revelar sentimentos e emoções. Ele as dedica inteiramente a serem instrumentos, no sentido melódico do termo, do anúncio, à cultura moderna, da mensagem religiosa do Reino de Deus, em versos bem comportados: boa prosódia, metrificados e de rimas simples. O monge capturou o trovador.

“Esse poeta das coisas simples e das coisas mais altas, dos mistérios e das claridades”, citando José Arthur Rios e Rui Domingues, esconde aí o seu mais íntimo segredo: viver com o Cristo, amar o que Ele amou, desde sua Mãe Santíssima até os.seus irmãozinhos mais pobres, passando pelo todo imenso sofrimento humano, iluminado também por radiosas alegrias.

É esta união entre poesia e fé que fez toda a beleza da obra desse Monge da Ordem de São Bento e desse Poeta da Ordem dos Trovadores do Reino de Deus. Mais de 400 pessoas estiveram presentes no seu sepultamento no próprio Mosteiro, no dia 5 de março de 1997, quando passou para a plenitude instantânea da imortalidade que não tem ocaso.

Senhora Presidente, Senhores Membros da Mesa, prezados Acadêmicos, caros parentes e amigos.

Nesta Academia Brasileira de Letras, na qual sou hoje recebido, precederam-me quatro membros do clero católico: Dom Silvério Gomes Pimenta, do clero diocesano, primeiro arcebispo de Mariana, que tomou posse em 1920, recebido por Carlos de Laet na Cadeira 19; Dom Francisco de Aquino Correia, da Ordem Salesiana, segundo arcebispo de Cuiabá, recebido em 1937 por Ataulfo de Paiva, na Cadeira 34; Dom Marcos Barbosa, da Ordem de São Bento, recebido na Cadeira 15 por Alceu Amoroso Lima, em 1980; e Dom Lucas Moreira Neves, da Ordem Dominicana, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil empossado em 1996 na Cadeira 12, saudado por Marcos Almir Madeira.

Sou, assim, o primeiro da Companhia de Jesus a ingressar na Academia.

O presente ano, 1997, é particularmente auspicioso pelo número de centenários que nele se celebram: o próprio centenário de nossa Academia, o centenário de seu decano, Barbosa Lima Sobrinho, e, permitam-me evocar dois outros especialmente caros para mim: o 4o centenário do Beato José de Anchieta e o 3o centenário de Antônio Vieira, dois membros da Companhia de Jesus, que se assinalaram por sua contribuição à cultura brasileira.

José de Anchieta, de ancestrais de origem ibérica, basca, nascido em Tenerife, em 1534, chegou a nossas plagas, a Bahia de Todos os Santos, em 1553. Dedicou à Terra de Santa Cruz 42 anos de sua vida. Ocupou-se, com sacrifícios heróicos, da instrução e catequese dos colonos e dos índios, na linha precursora do que chamamos hoje a inculturação. Redigia com fluência em português, latim e tupi-guarani. Compôs cancioneiros, poemas e autos, muitos deles recitados e representados no Pátio do Colégio de Piratininga, em torno do qual cresceria a cidade de São Paulo. Foi autor de uma gramática e de um vocabulário da língua tupi, “a língua mais falada na costa brasileira”, como escreveria mais tarde. Em latim, compôs, entre outras obras, o primeiro poema escrito em nossa pátria: De Beata Virgine Dei Matre Maria. O poema foi composto em dísticos, seqüências de hexâmetros e pentâmetros, num total de 5.785 versos, divididos em cinco cantos e uma dedicatória final à Virgem Maria. A obra foi traduzida no Brasil com o título: Poema da Virgem.

Composto por José de Anchieta
quando refém dos selvagens em Iperoig.
Texto latino e versão portuguesa do
Pe. Armando Cardoso S. J.
Edição do Arquivo Nacional, 1949,
Rio de Janeiro.

Anchieta abriu no Rio de Janeiro a Santa Casa de Misericórdia e construiu em Salvador, Bahia, a igreja do Colégio dos Jesuítas, o qual, um século depois, receberia um ilustre aluno de nome Antônio Vieira.

Na Capitania de São Vicente, fundou as aldeias de Barueri e Guarulhos. Conseguiu a colaboração dos índios tupis na luta contra os flibusteiros ingleses e os corsários franceses, que já se haviam instalado na Bahia de Guanabara.

Na Capitania do Espírito Santo, criou as aldeias de Guarapari, Cricaré, Reis Magos, São Mateus e Reritiba, hoje Anchieta, onde morreria em 9 de junho de 1597.

José de Anchieta pode ser considerado um dos fundadores da literatura brasileira. Sabia transmitir sua mensagem numa linguagem simples que o povo humilde entendia, linguagem musical, com os coros e danças de seus autos representados principalmente em Piratininga e Maniçoba, hoje ltu. Sobre os autos do Pe. Anchieta, não posso deixar de fazer especial menção ao erudito estudo de Luísa Trias Folch e Nicolás Extremera Tapia, da Universidade de Granada: O teatro do Padre Anchieta, recursos dramáticos para a evangelização, texto editado em 1997 pelos Anais do XXVIII Congresso Brasileiro de Língua e Literatura, realizado no ano passado aqui no Rio de Janeiro.

Foi um missionário incansável que, apesar de sua saúde precária, aglutinou os grupos étnicos dos colonos portugueses, dos índios e dos mamelucos aos quais se associariam, mais tarde, os negros, pardos e cafuzos. Esta foi a matriz étnica da nação brasileira, para cuja formação foi decisiva a ação catequética de Anchieta.

O Brasil, pelas suas mais conspícuas instituições culturais, como esta Academia e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vem rendendo um preito de gratidão a José de Anchieta, cuja ação missionária tanto contribuiu para preservar a unidade territorial de nossa pátria no momento em que o Novo Mundo começava a se integrar à Civilização Ocidental.

Muitos ilustres poetas brasileiros renderam sentida homenagem a seu predecessor. Em 1864, no Canto X de sua epopéia, A Confederação dos Tamoios, a ele se refere Domingos José Gonçalves de Magalhães, patrono da Cadeira 9.

Quando, entre o céu e o mar, o sol no ocaso
seus últimos fulgores dardejava
tingindo o berço seu de um mesto roxo;
nestas plácidas horas em que os bosques
se cobrem de sombria majestade
e a voz ressoa das sonoras brenhas
como da sonolenta Natureza
melancólicas preces do repouso;
ia o vate cristão meditabundo
vagar sozinho na deserta praia,
co' a mente cheia do celeste assunto,
que em versos de seus lábios derramava,
ao gemebundo som da undosa orquestra.
Como por vê-lo e admirar-lhe os passos,
entre os círios do céu se erguia a lua,
longa zona argentina refletindo
sobre o mar salpicado de ardentia:
disseras ser um rio de luz pura,
que de vulcão celeste a flux surgindo,
em campo diamantino deslizava!
Ao fulgor dessa luz tão cara aos vates,
ele co' o seu bordão ia escrevendo
seus espontâneos versos sobre a areia,
que das vagas os beijos alisaram;
e na firme memória recolhendo
essa correta página deixava
que o mar na enchente lhe varresse os traços.

Em 1875, Fagundes Varela, patrono da Cadeira 11, no seu extenso poema, em dez cantos, Anchieta ou o Evangelho nas Selvas, deixou-se arrebatar pelo seu esto romântico, para muito além da realidade histórica e da precisão exegética. Não deixou, entretanto, de dedicar-lhe uma piedosa invocação:

Alma inspirada de Anchieta ilustre,
espírito do apóstolo das selvas!
sábio e cantor, luzeiro do futuro!
Tu, que nas solidões do Novo Mundo
sobre as alvas areias, borrifadas
das escumas do mar, traçastes os versos
do poema da Virgem e ensinaste
aos povos do deserto a lei sublime
que ao reino do Senhor conduz os seres;
ensina à minha musa timorata
a linguagem celeste que falavas!
Dá-lhe a doce expressão, a graça infinda,
a força, a eloqüência e a verdade
dessas singelas narrações, que à noite
fazias nos outeiros, nas florestas,
às multidões que ouvindo-te choravam,
e pediam as águas do batismo!

Em 1902, nas Poesias completas - Ocidentais, o fundador desta Academia consagra a Anchieta uma de suas mais enternecidas composições. Assim escrevia Machado de Assis:

Esse que as vestes ásperas cingia,
e a viva flor da ardente juventude
dentro do peito a todos escondia.
Que em página de areia vasta e rude
os versos escrevia e encomendava
à mente, como esforço de virtude;

Esses nos rios de Babei achava
Jerusalém, cantos primitivos
e novamente aos ares os cantava

Não procedia então como os cativos
de Sião, consumidos de saudades,
velados de tristeza e pensativos.

Os cantos de outro clima e de outra idade
ensinava sorrindo às novas gentes
pela língua do amor e da piedade.

E iam caindo os versos excelentes
no abençoado chão, e iam caindo
do mesmo modo as místicas sementes.

Nas florestas, os pássaros, ouvindo
o nome de Jesus e os seus louvores,
iam cantando o mesmo canto lindo.

Eram as notas como alheias flores
que verdejam no meio de verduras
de diversas origens e primores.

Anchieta, soltando as vozes puras,

achas outra Sião neste hemisfério
e a mesma fé e igual amor apuras.
Certo, ferindo as cordas do saltério,
unicamente contas divulgá-la
a palavra cristã e o seu mistério.

Trepar não cuidas a luzente escala
que aos heróis cabe e leva à clara esfera
onde eterna se faz a humana fala.

Onde os tempos não são esta quimera
que apenas brilha e logo se esvaece
como folhas de escassa primavera.

Onde nada se perde nem se esquece
e no dorso dos séculos trazido
o nome de Anchieta resplandece
ao vivo nome do Brasil unido.

Três dos ilustres ocupantes desta Cadeira 15, para a qual a Academia elegeu um irmão de Anchieta, da Companhia de Jesus, a ele dedicaram poesias, a começar pelo próprio fundador, Olavo Bilac:

Anchieta
Cavaleiro da mística aventura,
Herói cristão, nas provações atrozes
Sonhas, casando a tua voz às vozes
Dos ventos e dos rios na espessura:

Entrando as brenhas, teu amor procura
Os índios, ora filhos, ora algozes,
Aves pela inocência, e onças ferozes
Pela bruteza, na floresta escura.

Semeador de esperanças e quimeras,
Bandeirante de “entradas” mais suaves,
Nos espinhos a carne dilaceras:

E, por que as almas e os sertões desbraves,
Cantas: Orfeu humanizando as feras,
São Francisco de Assis pregando às aves...

Guilherme de Almeida rende homenagem ao fundador de Piratininga:

Prece a Anchieta

Santo, erguestes a cruz na selva escura;
herói, plantastes nossa velha aldeia;
mestre, ensinastes a doutrina pura;
poeta, escrevestes versos sobre a areia!

Golpeia a cruz a foice inculta e dura;
invade a vila multidão alheia;
morre a voz sábia entre a distância e a altura;
apaga o poema a onda espumante e cheia...

Santo, herói, mestre e poeta: - pela glória
que deste a esta terra e à sua história,
pela dor que sofremos sempre sós;

Pelo bem que quisestes a este povo,
Novo Batista deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós.

Para encerrar, não podia faltar a palavra de meu irmão de sacerdócio, da Ordem de São Bento, Dom Marcos Barbosa:

Um poema na areia
Anchieta escreve na areia,
e onda vai, onda vem,
O mar rouba à terra os versos:
Maria é dele também.

O poema vai se apagando,
porém o poeta o decora,
e seu coração é um búzio
só de louvor à Senhora.

A que nasceu sem pecado,
à que virgem deu à luz,
e, como estrela, se é noite,
o barco ao porto conduz.

Como pisou a serpente,
esmaga na terra o mal
e sobre os filhos se inclina
na luz de cada natal.

Não posso também omitir uma referência a outro jesuíta, no III centenário de sua morte, Antônio Vieira, declarado por Fernando Pessoa Imperador da língua portuguesa.

A homenagem a Vieira é para mim mais fácil, porque basta associar-me aos muitos que já celebraram sua importância para a literatura portuguesa e tanto contribuíram para exaltá-la.

Permitam-me fazer uma referência inicial àquele do qual guardo a mais antiga memória, o velho Pe. Luiz Gonzaga Cabral S.J., autor do livro Vieira, pregador, antigo reitor do Colégio Antônio Vieira na Bahia.

Entre outros, dele foram alunos vários membros desta Academia: Herberto Sales, como consta de seu discurso na Universidade da Bahia, agradecendo o título de Doutor Honoris Causa; Jorge Amado, que fugiu em tempo do colégio para a universidade da vida, como ele mesmo o atesta em O menino grapiúna; Anísio Teixeira, a quem o referido Pe. Cabral fez de tudo para atraí-lo à Companhia de Jesus, como o narra outro acadêmico, Hermes Lima, em Anísio Teixeira – Estadista da Educação. Aliás, sobre ele, não posso omitir referência à obra de Luiz Viana Filho: Anísio Teixeira - A polêmica da Educação.

Amadeu Amaral, sucessor de Bilac nesta Cadeira 15, em seus Estudos e notas de literatura, publicado, em 1924, sob o título de O elogio da mediocridade, de que já fiz menção, responde à dura crítica que do Pe. Antônio Vieira fizera Paulo Prado, em artigo do jornal O Estado de S. Paulo, acusando-o de “político tortuoso em sua retórica teatral”. Diz, de Vieira, Amadeu Amaral:

O seu estilo já é o comentário perpétuo de um caráter: sempre homogêneo, sempre igual, sempre o mesmo nas muitas dezenas de longos sermões pregados. É sempre o mesmo no desapego ascético das palavras, das galas e dos arrebiques, é sempre o mesmo a servir-se do vocabulário como coisa indispensável à comunicação das idéias e só na medida do indispensável; é sempre a mesma designação precisa e inconfundível das coisas, chamando ao parvo, parvo; ao ladrão, ladrão; à mentira, mentira; é sempre a mesma elocução desempeçada, correntia, viva, natural, feita de pensamento e de justeza, sem mais literatura, de ordinário, que aquela pedida pela expressão exata do que se tem para dizer. (Ob. cit., p. 155.)

Vieira, missionário incansável, grande pregador, gozava de alto prestígio, que o arrastou a envolver-se na ação política pela qual receberia acerbas críticas.

No entanto, o mesmo Amadeu Amara! destaca também grandes acertos de sua intrepidez e lisura:

Incomodou... os que desfrutavam, ciosos, os doces favores do paço... Incomodou, com seu fulgor e com sua crítica, os literatos eclesiásticos e civis do seu tempo. Incomodou a nobreza... com o aço acuminado de suas ironias. Incomodou os traficantes de carne humana; incomodou os caçadores de índios e de negros, incomodou diplomatas com suas intromissões nos negócios; incomodou os funcionários com sua incansável atividade nos assuntos do Estado. Incomodou, em suma, toda gente... (Ibid., p. 165.)

Vieira, que nascera em Lisboa em 1609 e viera para o Brasil com 6 anos, aos 15 anos entrava na Companhia de Jesus. Defendeu destemidamente a liberdade dos índios nos longos anos de missionário aqui vividos.

Amadeu Amaral consagra a importância de sua obra:

A vida dos grandes homens não termina com a morte do corpo. Eles continuam a viver e a agir, incorporados ao patrimônio das aquisições humanas... modificando idéias e ações, guiando inteligências e latejando até, por uma eucaristia estranha, na própria substância dos espíritos que os devoram. (Ibid., p. 164.)

Ao Pe. Antônio Vieira, o prezado professor e amigo Gladstone Chaves de MeIo, austero defensor de nossa pureza lingüística, dedicou vários estudos, nos seus longos anos de magistério. Não quis omitir-se na celebração do terceiro centenário de Vieira, publicando na Carta Mensal da Confederação Nacional do Comércio o artigo intitulado “Vieira e o Sermão do Bom Ladrão”, vigorosa e esmagadora objurgatória contra os corruptos e corruptores impunes. Sem querer acentuar muito a atualidade do Sermão, talvez porque o seu título continha um adjetivo não muito atual, o “bom” ladrão, não deixa de observar que o texto “parece retratar os nossos dias marcados pela mais ruinosa voragem dos tranqüilos assaltantes da fazenda pública”.

A Antônio Vieira, nossa Academia dedicou todo um número de sua Revista Brasileira, publicado no primeiro trimestre deste ano centenário. Nele colaboraram: João de Scantimburgo, com o “O Tempo em Sermão do Padre Antônio Vieira”; o Rev. José Gonçalves Salvador, “O Pe. Antônio Vieira e os Cristãos-Novos”; Leodegário A. de Azevedo Filho, “Arte, Tópica e Método no Sermão da Sexagésima”; Silvio Elia, «O Enigma da Arte de Furtar»; Ivan Lins, “Atualidade do Pe. Antônio Vieira, S. J.”; Ernesto Pereira Carneiro, ”O Pe. Antônio Vieira, Clássico da Língua Portuguesa”. Com tão ilustres autores de temas tão pertinentes no estudo da vida e obra de Antônio Vieira, foram convidados a colaborar dois jesuítas, como ele. O primeiro foi o Pe. Armando Cardoso S. J., que publicara o texto latino e com sua tradução portuguesa do Poema da Virgem, de Anchieta, e que redigiu o artigo “O Pe. Antônio Vieira, Missionário da Amazônia”; o segundo convidado foi o Pe. Hélio Abranches Viotti S. J., que procurara dar a Anchieta o devido relevo, o qual não lhe fora conferido por Serafim Leite S. J. em sua História da Companhia de Jesus no Brasil (1947), escreve o artigo intitulado ”Vieira, através de sua Brasilidade”.

A tão eminentes estudiosos da obra de Vieira devo associar a Professora Sônia Salomão, Presidente do Centro de Estudos Antônio Vieira, que acaba de publicar: “Sermão da Sexagésima com Rara Tradução Italiana de 1668” (Gráfica do Senado, 112 p., 1997). Trata-se do texto talvez mais famoso de Vieira, o Sermão pregado em 1655, na Capela Real de Lisboa, sobre a parábola evangélica: a semente é a Palavra de Deus. Nota a Professora Sônia que a tradução italiana, que não foi redigida por Pe. Antônio Vieira, é “mais fiel ao sermão originariamente proferido do que a edição portuguesa”. Com efeito, este fora editado em 1679, quando o autor julgou prudente omitir nomes e expressões mais veementes, de vez que as razões de sua veemência contra os que não combatiam como ele a escravização dos índios tinham sido, até certo ponto, atenuadas.

Vieira legou às nossas letras mais de 200 sermões e de 500 cartas. Assumiu vários cargos e múltiplos encargos a serviço da Coroa portuguesa em missões diplomáticas na França, Holanda, Inglaterra e Itália. Envolveu-se também em complicações doutrinais que o obrigaram a ir para Roma, onde viveu de 1669 a 1675, até obter do Sumo Pontífice Clemente X o breve que o absolvia das acusações que o tinham levado à prisão, por ordem da Inquisição. “Esta o acusava de defender teses tendentes a conciliar o judaísmo ou a admissão de algumas de suas práticas com lugares das Escrituras restritos à exegese católica.”

É a análise do Professor Alcir Pécora, da Universidade de Campinas, dos textos expostos por Vieira na carta “Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo” dirigida à rainha Dona Luísa de Gusmão, em abril de 1659, como na obra Clavis Prophetarum, a ser editada ainda este ano em Portugal. Obra inacabada, foi considerada por Vieira como sua obra mais importante e significativa.

A idéia de Vieira se fixava na convicção de que a glória de Portugal seria garantida pelo êxito no comércio internacional: “Portugal não se pode conservar sem muito dinheiro e para o haver não há meio mais eficaz que o do comércio e para o comércio não há outros homens de igual cabedal e indústria, aos da nação judaica.”

Toda a força oratória de Vieira se empenhava “na criação de condições favoráveis ao fortalecimento de Portugal e à expansão universal da fé” e para ele “o instrumento fundamental para reparar-se o estado miserável do Reino sempre era o capital judeu”. (“A exegese do capital”, Alciir Pécora - artigo publicado na Folha de S. Paulo, 13/7/97).

Em Roma, foi pregador da Rainha Cristina, da Suécia, convertida ao catolicismo, cujo salão reunia grande número de intelectuais. Pronunciava seus sermões na igreja de Santo Andre della Valle, gigantesco templo situado na atual Via Vittorio Emmanuele, que transbordava de fiéis desejosos de ouvi-lo.

Em 1675, com o breve pontifício, voltou a Lisboa, de onde embarcou para o Brasil em 1681, para dedicar-se à revisão de seus sermões “restituídos e escritos a partir dos seus 71 anos”, como atesta o artigo do Professor Gladstone Chaves de MeIo, ou seja, dedicou a seus sermões os últimos anos de sua vida.

Pe. Antônio Vieira dava mais importância à grandeza e à justiça das causas que entendia dever defender do que a qualquer pretensão de vaidade literária. É o que se infere das palavras com que apresentava a edição de seus sermões, citadas pela Professora Sônia Salomão: “Se gostas da affectação, pompa de palavras e do estylo que chamam culto, não me leyas.”

Morreu na Bahia, em 18 de julho de 1697, com 89 anos. Como irmão de Ordem de Antônio Vieira S. J., não posso omitir um aspecto de sua vida certamente o mais profundo: com seus erros e acertos, em suas lutas e andanças, Vieira conservou a fé: fidem servavit. A expressão mais emocionante e mais patética desta fé encontra-se no sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda, sermão pregado diante do Santíssimo Sacramento exposto na Sé da Bahia e que passou para tantas antologias sob o nome de Apóstrofe atrevida.

A leitura dos sermões de Vieira desperta três grandes impressões. A primeira é o extraordinário conhecimento escriturístico do autor. A segunda se refere ao fato de que, com tal conhecimento, Vieira se permite, com freqüência, um certo contorcionsimo exegético, pelo qual, de textos claros e simples, ele sabe extrair mirabolantes elucubrações. Terceira impressão: tudo, porém, é feito por Vieira numa linguagem tão escorreita que mesmo os eruditos hermeneutas modernos o lêem com benevolente complacência.

Como dizia, de início, todos os que me precederam na Cadeira 15 foram poetas, sem omitir o patrono, Gonçalves Dias, que inaugurava entre nós o romantismo. O fundador, Olavo Bilac, se alça às alturas parnasianas consagradas às musas. É sucedido por Amadeu Amaral, “modelador da poesia inteligente dessa terra”, como o saudaria seu sucessor Guilherme de Almeida, coroado como Príncipe dos Poetas Brasileiros. Veio depois Odylo Costa, filho, com sua poesia marcada pela beleza trágica da dor, e, enfim, Dom Marcos Barbosa O.S.B., com sua poesia iluminada pela beleza serena da contemplação. Já em resposta a seu discurso de posse, Alceu Amoroso Lima, em 1980, projetava sua trajetória acadêmica à luz do alvorecer do terceiro milênio. Essa alvorada se aproxima.

A instituição na qual hoje sou acolhido tão cordialmente pelo meu prestimoso e dedicado amigo e agora prezado colega, Prof. Alberto Venancio Filho, a Academia Brasileira de Letras, através das grandes figuras que por ela passaram no seu primeiro século de existência, desempenhou com brilho e empenho sua missão estatutária.

Entretanto, no exercício dessa missão e de sua responsabilidade pela língua portuguesa e pelas letras brasileiras, ela jamais foi uma instituição alienada da vida concreta e dos grandes desafios com que se defrontavam o Brasil e o mundo.

Os seis poetas, meus predecessores, foram intérpretes, cada um em seu estilo próprio, das angústias, tribulações e também alegrias e esperanças de seu tempo.

Não sou poeta, mas simples escritor, que, com a sinceridade de seu compromisso, procurará compensar sua prosa sem brilho.

Vivemos neste final de século e milênio, numa fase de aceleração crescente dos processos históricos, provocada especialmente pela rapidez do progresso científico e tecnológico, a qual, em uma geração, acumulou mais conquistas do que todas as obtidas desde o início da era moderna.

Esta aceleração provocou graves impactos, principalmente no plano social e cultural.

No plano social, o grande desafio com que nos defrontamos, provém do risco de que cada vez mais rapidamente se reduzam os prazos por uma solução não convulsional de nossos problemas, aos quais se referiu o Santo Padre João Paulo II, em 2 de outubro de 1997, no discurso de sua chegada ao Brasil. No passado, superamos de modo pacífico e incruento desafios históricos que, em outros países das Américas, só foram superados por lutas sangrentas, não obstante dolorosos conflitos que ainda hoje nos entristecem.

No plano cultural, os impactos são mais profundos e mais universais, despertando processos irreversíveis, cujas conseqüências são, entretanto, para nós imprevisíveis, tais como a ampliação gigantesca do poder da informática e dos meios de comunicação de massa, enfatizando a primazia das imagens, para o público anônimo, sobre as idéias, para os senhores do poder. São cada vez mais rápidas as possibilidades de multiplicar as infinitas combinações possíveis dos sinais sonoros. No entanto, haverão de conservar sua beleza eterna os concertos de Bach, as sonatas de Mozart, as sinfonias de Beethoven. Com os sinais visuais, haverá de processar-se, através da informática, uma evolução ainda mais radical. No entanto, conservarão também sua beleza imortal as grandes obras clássicas da poesia e da prosa, uma epopéia de Homero, uma tragédia de Sófocles, um discurso de Demóstenes ou de Cícero, um soneto de Machado de Assis.

Aqui reside a missão essencial desta Academia por ser ela sua causa constitutiva, sua própria razão de ser.

Tenho a convicção de que a Academia Brasileira de Letras, que ora me recebe, será arauto de uma afirmação serena e imparcial, na sua tradição de superar sempre os desafios com que se defronta com a mesma dignidade e independência com que os enfrentou em seu passado centenário.

Senhora Presidente, Senhores Acadêmicos, prezados amigos, que aqui vieram por esta cerimônia.

Com a reserva já antes feita de meu respeito para com aqueles que não compartilham de minhas convicções, terminando, tomo a liberdade de sintetizar a mensagem que constituiu o sentido de toda a minha opção de vida: a certeza de um destino, de uma plenitude instantânea de vida além da morte, destino que espera os que aceitaram o ideal da solidariedade. Nós nos realizamos na medida em que empenhamos nossos esforços para que o outro se realize em sua inalienável identidade. Este é o sentido da vida e da imortalidade. Neste pequeno planeta azul, arrastado em um turbilhão de galáxias, ou solitários nos perdemos ou nos salvamos solidários.