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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Sousa Bandeira

RESPOSTA DO SR. SOUSA BANDEIRA

SR. FÉLIX Pacheco:

Num gesto de perdoável modéstia, começais perguntando a vós mesmo a razão do vosso ingresso nesta Casa. Passais uma rápida revista na vossa fé de ofício, tão curta em anos quanto longa em brilhantes serviços, e concluís supondo que em vós a Academia escolheu o jornalista. É interessante o vos esforço em menosprezar a própria bagagem intelectual, belos versos, pensados ensaios de crítica, proveitosas incursões nos domínios da história, interessantíssimos estudos de criminologia, luminosos trabalhos parlamentares. Nada disso, segundo vós, justificaria os nossos sufrágios. Pretendeis termos querido apenas chamar ao nosso grêmio o moço de talento, que em tão pouco tempo chegou a tão elevada posição num dos mais importantes jornais do continente. Começarei tirando-vos essa ilusão.

Longe de mim a idéia de diminuir o valor da imprensa. A vertigem com que se vai desenrolando aos nossos olhos a história contemporânea e as exigências da nossa existência febril e intensa, deram um grande papel intelectual ao jornalista, que recolhe os mil aspectos da vida e sabe em poucas frases, incisivas e fortes, transmitir a milhares de leitores a vibração que forma as grandes correntes da opinião.

Superioridade de intuição, golpe de vista seguro, cultura variada e pronta, talento de forma, são condições indispensáveis ao trabalho insano do jornalista. Tais qualidades se encontram admiravelmente em vós, e o mestre provecto de jornalismo que o diretor do Jornal do Commercio, confiando-vos, ainda tão jovem, a perigosa honra de substituí-lo, revelou, mais uma vez, como sabe conhecer os homens. Da vossa capacidade jornalística damos pleno testemunho. Do sisudo artigo de fundo sobre coisas financeiras ou militares passais insensivelmente a uma acirrada discussão política; um belo artigo literário sucede a uma vária maliciosa e por vezes perversa; um elegante tópico do dia fala com graça comedida de um acontecimento mundano; as discussões que tendes travado com os vossos colegas de imprensa passam logo a fazer época no jornalismo, e não vos desdenhais também de sugerir no “Diabo a quatro” coisas de faceta brejeirice. Se por uma fatalidade faltassem um dia todos os vossos companheiros de trabalho, e estivésseis só na sala de redação, nem por isso o Jornal do Commercio deixaria de sair no dia seguinte. Como todos os vossos leitores, reconhecemos em vós tão altas qualidades de cultura e de trabalho, e é com o maior prazer que em nome da Academia eu as proclamo daqui.

Não foi, porém, somente o jornalista que nós apreciamos na vossa individualidade literária. Foi o intelectual, o esteta, o homem que tem o nobre culto da beleza, e, ao contato com as vulgaridades da vida quotidiana, nunca perde a sobranceria de espírito com que fita as coisas do ideal. Foi o poeta que soube fazer passar um frêmito novo de mistério e de sonho através dos cânones estabelecidos da poesia parnasiana. Foi o espírito sincero que, à busca de novas emoções estéticas, veio das ardentias da adolescência irreverente para a ponderação de um homem consagrado, sempre fiel aos seus ideais artísticos.

Não passou despercebido à vossa malícia de jornalista que a Academia se lembraria dos tempos, não muito remotos, em que foi alvo dos vossos veementes ataques, das vossas aciculadas ironias. Nas revistas em que se espalhava a vossa exuberância juvenil e até nas graves colunas do Jornal do Commercio, já dissestes mal de nós. Que importa, se o fizestes com talento, com graça e com cultura? A Academia sabia apreciar o vosso valor e através das vossas diatribes via perfeitamente que vos estava reservado aqui um lugar. Não é o caso, pois, de vos penitenciardes, como fazeis. Sois hoje um consagrado nas letras, na política, no jornalismo. Alcançastes essa posição pelas qualidades que já possuíeis no tempo em que agredíeis os consagrados. Hoje, quantos jovens Félix Pachecos vociferam contra vós com a mesma vossa antiga veemência! Sossegai!... Os que tiverem valor real chegarão como vós a ser consagrados, e por sua vez serão vítimas dos futuros novos.

Na vossa carreira literária não perdestes tempo. Fostes um precoce. Recém-chegado da província, e matriculado no Colégio Militar, fundastes revistas e associações literárias. Ultrapassando os limites da literatice palavrosa e estéril, que, em geral, faz a base de nossa produção de colegiais, tínheis desde menino as vistas voltadas para os grandes vultos da nossa velha cultura, e no colégio promovestes os centenários de Basílio da Gama e de Gregório de Matos. Deste último, cuja cadeira ides hoje ocupar, acabais de falar com tanta autoridade, que vos constituístes na obrigação de escrever um estudo magistral como os sabeis fazer, completando assim os do vosso antecessor, a quem não foi dado versar os preciosos manuscritos da Biblioteca Nacional.

Não sei se o vosso confessado e talvez afetado horror à Matemática (pecado deplorável num membro eminente da Comissão de Orçamento); não sei se certa inaptidão pessoal para a carreira das armas, vos fizeram deixar o Colégio Militar. Assim, ao vosso modo, fostes também um egresso da farda, epíteto que com tanta propriedade aplicais a Euclides da Cunha e ao Sr. Alberto Rangel, no belo ensaio que consagrastes ao Inferno Verde.
Tendes, entretanto, sido um indefesso propugnador da melhoria do nosso Exército e da elevação moral e material das classes armadas.

Quanto à farda, contentai-vos com a que hoje trazeis e que, valha a verdade, vos fica muito bem.
Abandonando os estudos regulares, entrastes em plena imprensa, em pleno sonho, em plena liberdade.

Adotado o jornalismo como profissão, galgastes rapidamente todos os postos até o de redator. Colaborastes em revistas independentes, tumultuosas e efêmeras. Versejastes com inspiração, sentimento e desenvoltura. Assumistes a posição ardente do efebo atrevido e corajoso que se atira de lança em riste contra a sociedade burguesa. E, divertido, como tantos outros, com o movimento delirante da vossa hostilidade, desvanecestes-vos com o título glorioso de revoltado. Creio que datam de 1897 os vossos primeiros versos impressos. Têm o título sugestivo de Chicotadas, com a subepígrafe: versos revolucionários. Nesses versos, a propósito de Cuba, declarais pura e simplesmente a guerra à Espanha, e concitais a América a tratar a Europa como inimiga. Il faut bien que jeunesse se passe, como acabais de dizer. Mas quanto talento despendido em tão inocentes divertimentos!

Enchíeis os jornais com a prosa anônima do noticiário e do artigo de fundo, mas ao mesmo tempo continuáveis a vossa rota poética, publicando sonetos sobre sonetos, em que íeis polindo carinhosamente a forma e apurando o gosto pelo estado vago, cambiante e brumoso que constituía o feitio da mocidade da época, então em plena reação contra os verses marmóreos e espaçosos que Leconte de Lisle apregoava serem o cânone do Parnasianismo.
Foi nessa ocasião que o acaso da camaradagem de imprensa, as longas conversas das noites de plantão, com um grupo de rapazes inteligentes e ousados, vos fizeram imergir resolutamente nas novas correntes estéticas que então revolucionavam a literatura.

O Parnasianismo, depois de reagir em nome do gosto contra os desmandos do Romantismo, agonizava anquilosado na repetição sistemática dos imitadores de segunda mão, que copiavam as obras-primas dos mestres, querendo reduzir a arte à precisão geométrica dos jardins de Le Nôtre. O Naturalismo, que se erguera contra os velhos ideais, em nome da verdade experimental e da ciência moderna, depois de ter ocupado a praça conquistada em batalhas ruidosas e triunfais, começava a sentir o vazio da sua tentativa. A vossa geração sentia-se penetrar por um novo influxo. Pairava no ambiente uma atmosfera de misticismo e de mistério, contra a qual eram impotentes as afirmações dos homens da arte experimental. Brunetière apregoava a falência da ciência. De todos os pontos do mundo culto vinham informações de um novo estado de alma vago, indefinido. Hauptmann, Maeterlinck, Ibsen, D’Annunzio, Oscar Wilde, falavam uma estranha e sedutora linguagem, em que os homens de todas as raças fundiam a arte numa sã bruma, através da qual refulgiam em deliciosa meia-tinta sonhos vaporosos e etéreos.

Da França, meticulosa alfândega intelectual, por onde tem de passar forçosamente tudo o que importamos do estrangeiro, vinha-nos a grande corrente do Simbolismo. Verlaine, Mallarmé, Rodenbach, Rimbaud, Regnier, Moréas, pregavam a nuança, a imprecisão, o mistério, a fusão harmoniosa do som, da cor, do perfume, num halo colorido e sonoro que transformava a própria língua, e desorganizava as velhas regras de arte poética. Em Portugal, já se havia também formado o movimento nefelibata, que, não se por quê, vós e os vossos injustamente renegais.

Era este o estado de espírito da vossa geração. Tínheis forçosamente que acompanhar a corrente. Fizeste-lo, honra vos seja, com brilho para vós, e com proveito para a arte. Data daí a vossa grande fascinação por Cruz e Sousa, o admirável poeta negro, tão mal compreendido pelos seus contemporâneos, e cuja obra tem sido vítima, ou da demolição sistemática dos adversários ou do louvor exagerado dos amigos.

Não conhecestes, suponho, pessoalmente, o autor dos Faróis. Ligado intimamente, porém, a alguns dos seus amigos dedicados, começastes a professar por ele um culto de que ainda hoje não vos arrependeis. A vossa admiração ardente e sem limites se espraiava em desordenados ditirambos que eram a moeda corrente nababescamente espalhada pelos vossos companheiros nas revistas em papel de linho, recheadas de caixas altas e de sinais esotéricos. Dei-me ao trabalho de colecionar as frases em que se manifestava a vossa admiração por Cruz e Sousa. Formam uma curiosa ladainha em estilo místico: Peregrino das Ânsias, Incomparável Eleito, Negro de Ouro, Arcanjo Rebelado, Glorioso Artista, Dor Personalizada, Ser Privilegiado, Magoado Eleito, Semideus. Tudo isso em caixa alta. Não vos bastavam as palavras conjugadas que, duas a duas, formam ordinariamente as litanias. A vossa admiração transbordante pedia mais, exigia três palavras, e, como no fim do antifonário litúrgico, os epítetos acabam se abrindo em ousados trípticos. Tedioso e Torturado Sonhador, Grandioso e Imaculado Cenobita, Formidável Dante Negro. A vossa admiração por Cruz e Sousa não decresceu.
Talvez mesmo tenha aumentado. Vede, porém, com que sobriedade nos falais hoje dele, chamando-lhe apenas, sem maiúsculas, gênio maravilhoso, esteta delicadíssimo, negro admirável e, como tríptico, esteta novo e estranho, qualificativos esses que o mais irredutível burguês lhe poderia conceder.
Não vos censurarei a admiração pelo malogrado poeta, pois que também a professo. Não lhe compreeendo, talvez, a prosa torturada, e por vezes vazia, em que as palavras se sucedem, quase sem nexo, ora traduzindo pensamentos elevados, ora se diluindo em verdadeiros trocadilhos e charadas. Só um admirador incondicional poderá classificar como obras-primas todos os seus escritos em prosa, onde, a par de reais belezas, se encontram trechos que deixam positiva impressão de mal-estar. Como poeta, porém, que admirável evocador de sons e de imagens, que formidável e ao mesmo tempo delicado criador de sonho. Parece-me ao lê-lo que as harmonias errantes da nossa língua, animadas por um sopro estranho, insuflam alma nas palavras, fazendo-as sentir e viver como se fossem seres reais, a fim de colaborarem na deliciosa música do ritmo. Não é aqui o lugar de apreciar a obra poética de Cruz e Sousa. Não resisto, porém, ao prazer de vos relembrar os seus ‘Violões que choram”, onde soluça, lânguida e sensual, a alma dos trópicos ao palor misterioso do luar, ao compasso plangente da surdina monótona dos violões:

Quando uma voz em trêmulos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para flor deserta,
Soturna e singular da lua cheia;

E sons noturnos, suspiradas mágoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias;
..........................................................
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
...........................................................

Não conheço, em língua portuguesa, poesia em que a impressão musical tenha uma representação tão completa, como nesses admiráveis versos. Alberto Nepomuceno, o nosso artista que tão bem sabe reproduzir nas suas rapsódias o ardente sensualismo da nossa natureza e do nosso povo, deveria compor uma música para os “Violões que choram”.

O entusiasmo, vosso e de vossos companheiros, pelo poeta, levou-vos a fundar a Rosa-Cruz, interessante revista que viveu dois anos, se não me engano. A história da Rosa-Cruz dará lugar um dia a curiosas investigações. Fundou-se poucos anos depois da morte de Cruz e Sousa, a cuja memória era quase que exclusivamente consagrada, pela iniciativa de Saturnino de Meireles, o poeta dos Astros mortos, morto ele por sua vez aos 25 anos. Meireles, que tinha um pequeno emprego, era o mais abonado do grupo e portanto quem tinha o maior encargo da revista. Os demais colaboradores, pouco mais de meia dúzia, concorriam com 50$ por mês para a publicação, que sempre dava déficit. 50$ mensais, tirados de ordenados de repórteres, ou de mesadas de estudantes, calcula-se bem que sacrifício.

Não creio que fosse muito numerosa a folha dos assinantes, nem que a venda avulsa desse resultado apreciável.. A Rosa-Cruz não publicava anúncios. Não se parecia nisso com as suas correligionárias em estética. Adolfo Retté conta com espírito como pôde arrancar de uma feita cem francos por um artigo literário servindo de reclame ao cacau van Houten. para a famosa La Vogue. Numa das efêmeras revistas que precederam a Rosa-Cruz, e em que colaborastes, eu vejo sonetos exaltando o leite Itatiaia e o vinho de Pelotas. Mas na Rosa-Cruz não era assim. Só se fazia arte, e arte simbolista. Cruz e Sousa era conservado como um deus tutelar da publicação. Dos consagrados, Luís Delfino era o único que lhes merecia consideração. Tudo mais nada valia: fósseis e desonestos, na vossa classificação de então.
Quando faltava matéria, transcreviam-se trechos de Nietzsche, Paul Adam, Mallarmé, reproduziam-se rimas dos poetas malditos. Ninguém podia entrar no Graal, mesmo para prestar um serviço, sem ser iniciado. De uma vez, corria perigo a publicação da revista. Faltavam cinqüenta mil réis, e o editor era implacável. Um amigo, sabendo das ânsias em que vivia o grupo, ofereceu-se generosamente para entrar com a quantia. Mas ele não fazia arte, e o dinheiro assim oferecido teria um caráter mercantil que repugnava aos cavaleiros do Graal. O dedicado mancebo submeteu-se à iniciação. Rodeado dos redatores da Rosa-Cruz, instalou-se nos fundos de um botequim da Rua da Assembléia. Auxiliado por todos, tentou fazer uma obra de arte. Duas horas depois tinha produzido um soneto. Assim, pôde adquirir o direito de completar a soma reclamada pelo editor. Estava salva a Rosa-Cruz.

Durante este período começou verdadeiramente a vossa obra poética, que tendes incessantemente polido e repolido, no anelo constante de conseguir a perfeição. Nas vossas várias recoltas os versos figuram sempre modificados à procura da forma definitiva. Na vossa estética é essencial o respeito à forma consagrada, e isto mesmo o acabais de confessar. Podeis vos apropriar da regra do poeta:

Sur des sujets nouveaux, faisons des vers antiques

Sois ainda um artista sincero. Traduzis com toda a verdade, com ingenuidade mesmo, os vossos estados de alma. O vosso espírito não se sentia à vontade no satanismo puramente literário dos vossos primeiros versos, quero crer que mais devidos à leitura de Baudelaire do que aos amores diabólicos a que se volviam os vossos ardores.

Quando, desprendido de tudo, novo arcanjo revel, cantais a Morte, insultais lindamente umas senhoras a quem infligis suplícios horríveis, e vos queixais da vida e da sorte, em frases de duvidoso estoicismo, a gente hesita em vos fazer crédito de tanta desilusão. É deste gênero o vosso belo soneto “Estranhas lágrimas”:

Lágrimas... Noutras épocas verti-as.
Não tinha o olhar enxuto como agora.
Alma, dizia então comigo, chora,
Que o pranto afoga e anula as agonias.

Ah! quantas vezes, pelas faces frias,
Por mal do meu amor, que se ia embora,
Gota a gota rolando, elas, outrora,
Marcaram noites e marcaram dias!

Vinham do oceano d’alma imenso e fundo
Ondas de angústia em suspiroso arranco,
Numa desesperança acerba e louca.

Nos olhos hoje as lágrimas estanco:
Rolam, porém, sem que as descubra o mundo,
Sob a forma de risos, pela boca.

No vosso ser equilibrado palpita o anseio de amores calmos e castos.
Essa vida de dissipação não vos convém. Sonhais venturas ignotas que vos parecem longínquas, vogando esperançoso

Na áurea trirreme real das vossas esperanças

sobre que brilha o luar de amor tantas vezes cantado em vossos versos até que sobre vós resplende enfim

o plenilúnio do carinho eterno.

Então, feliz, tranqüilo, abjurais os amores profanos, e no soneto “Orfeu” cativo assim dizeis à vossa esposa, já livre das pérfidas ondinas que tanto vos atormentaram:

Mas, desde que chegaste, o pobre nauta
Que um dia às lindas plagas arribara,
Mísera sombra errática de Orfeu,

Jogou no glauco abismo a doce frauta,
E sem lembrar as pérfidas que amara,
Abençoa os grilhões deste himeneu.

É a arte, pura e serena, que vos permite sonhar à vontade suspendendo os vossos sofrimentos antigos, transformados em belos versos, na panóplia azul em que enastrais os vossos poemas. A felicidade da família não esterilizou o vosso espírito de poeta, nem embotou a vossa força de trabalho.
Na direção do Gabinete de Identificação fostes o propagandista da dactiloscopia, que conseguistes fazer triunfar nos conselhos do Governo e nos Congressos Internacionais e é hoje adotada como sistema oficial, com resultados excelentes, graças aos vossos esforços.

No Jornal do Commercio o vosso papel tem sido o que já vimos. Em vós o jornalista não matou o poeta. Acabais de expor com formosura o que se pode chamar a poesia do jornalismo. Apanhar num ápice a centelha produzida pelo acontecimento que passa, transformá-la em clarão, projetar as suas luzes sobre todos os horizontes escuros, penetrar o mistério das coisas que nos cercam, converter tudo isso em ondas constantes de sentimentos que alimentam as multidões, a quem se domina pelo mágico prestígio da palavra escrita. Que bela tarefa para um poeta, quando como vós pensa que ainda se pode entrar no jornalismo pela porta aberta do sonho e do ideal.

De consagração em consagração chegastes à política. Vieram oferecer-vos uma cadeira de deputado pela vossa terra natal. O que tem sido a vossa vida parlamentar, dizem-no os Anais do Congresso. Sem vos envolverdes nas malhas da política, mais do que vos determinam estritamente os vossos deveres de lealdade partidária, tendes sempre discutido, exaustivamente, as questões financeiras, administrativas e pedagógicas. Tendes sido um deputado útil e, apesar de novo no Congresso, a vossa palavra é solicitada com instância e ouvida com acatamento. No belo discurso que acabais de pronunciar, como que vos desculpais de vossa entrada na política, e pareceis dar a entender que é vossa intenção vos afastardes dela. Só vejo motivos para que continueis a prestar ao país os brilhantes serviços que iniciastes. Basta que vos mantenhais no ponto de vista em que vos colocastes quando em um discurso na Câmara dissestes onde estáveis e onde queríeis ficar: “com a República liberal e da ordem, única capaz de assegurar ao país o grau de prosperidade a que ele tem o direito de aspirar”.
Sem esquecerdes que sois um artista e um paladino do ideal, continuai a trabalhar desassombradamente pelas coisas públicas. A vossa concepção de arte vos manterá bem superior a mesquinhas combinações de politicagem, que podereis atravessar sem vos contaminardes.

Na crise de caráter e de inteligência por que passa a nossa política, são necessários homens do vosso valor intelectual e moral, para que se não nos desvaneça de todo a esperança de regeneração.
E para repousardes da canseira do jornal e das lutas políticas, freqüentai esta casa que hoje vos abre as portas. Neste sereno recanto, longe do bulício da cidade e das misérias humanas, encontrareis a paz de espírito que só pode ser dada pelo recalcar do solo sagrado, a que vos acabastes de referir relembrando a lenda de Anteu.

Tratando de coisas do espírito, lendo e ouvindo versos, colaborando num dicionário cujo encanto é ser interminável, passareis algumas horas de vida contemplativa, bálsamo necessário para as feridas das batalhas que lá fora se travam. Encontrareis confrades do Congresso e da Imprensa, e neste meio em que ninguém vive exclusivamente das letras, achareis também representadas a magistratura, a medicina, a engenharia, o funcionalismo, a advocacia, a diplomacia, o comércio, o magistério, o exército e a armada.

O vosso faro profissional vos terá revelado que um dos nossos magnos poetas conta, entre os seus pecados de mocidade, um diploma de farmacêutico. E toda essa gente suspende um momento a sua vida intensa para se saturar aqui de uma atmosfera de arte o de cordura.

Sucedeis a um poderoso espírito que tinha convosco muitas afinidades. Funcionário público cheio de graves responsabilidades, o nosso querido Araripe Júnior nunca se esqueceu de que era um intelectual. Espírito liberal e aberto, dominava-o uma ardente simpatia por tudo o que era novo, pessoas e idéias. A sua crítica, cheia de bondade e de carinho, adivinhava os talentos que despontavam e os apresentava ao público, acobertados com a sua autoridade. Foi dos primeiros a descobrir o valor de Cruz e Sousa. Com relação a vós próprio, teve, logo às vossas primeiras produções, a perfeita intuição do artista que um próximo futuro devia revelar. Atraído pelo sonho, teve Araripe a noção exata do simbolismo, que veio num momento preciso em que a Humanidade culta parecia submergir por falta de ideal.

Em todas as suas preocupações domina a idéia de subordinar os fatos aos princípios e procurar a razão secreta das coisas. Tive a ventura de trabalhar a seu lado, durante anos seguidos, no Ministério do Império, depois do Interior, com intelectuais como Franklin Távora, Medeiros e Albuquerque e outros, que faziam da Secretaria do Estado um pequeno cenáculo literário. Que gratas recordações guardo daquelas conversas, onde a literatura nos fazia repousar da burocracia! Ao ser proclamada a República, Araripe Júnior julgou-se no dever de acompanhar intelectualmente a evolução política do país. E enquanto o Congresso discutia o projeto de Constituição, ele lia Bryce, que era então a mais fresca novidade, para interpretar o sentido das novas instituições. À elevação das suas vistas e à profundidade dos seus conceitos somente se igualava a bondade com que acolhia os moços e procurava interessá-los pelas suas cogitações sociais.

Acentuastes bem a tendência de Araripe para o mistério, para sondar o incognoscível. Era realmente esta a sua grande preocupação intelectual, como é a de todos os espíritos abertos, que se detêm um pouco à margem da rotina da vida e mergulham o olhar pelos atalhos, tão impenetráveis quanto sedutores, que nos conduzem fora do caminho trilhado. Todas as conclusões da ciência nos chegam hoje a revelar apenas a existência de fenômenos, isto é, relações entre a nossa vida subjetiva e a imensidade desconhecida que nos envolve. Os dados experimentais nos demonstram a inconsistência das nossas sensações, impotentes para reproduzirem todas as infinitas formas de manifestações das torças do mundo. Por outro lado, as nossas expressões plásticas ou sonoras são insuficientes para traduzir o delírio de sentimentos e idéias que nos borbulham no espírito. Toda a correlação entre as forças conscientes de nossa alma e a esmagadora inconsciência das coisas reduz-se a uma longínqua e fugidia aproximação.

Não podendo traduzir exatamente o que é a natureza e a vida, nem ao menos exprimir em fórmulas exatas o que nós pensamos delas, vivemos a povoar o mundo de entes imaginários, que nos enchem de delícia e de terror, E, engolfados em símbolos, investimos através deles para o desconhecido, realizando eternos périplos, comparáveis ao do cartaginês Hannon, que tão sabiamente estudastes, e que antecedeu de tantos séculos o novo périplo com que a raça celtibérica, realizando o angustioso ideal dos atavos arianos, preencheu a sua missão histórica com a cavalaria do Oceano.
Destas peregrinações pelo desconhecido trazem os pensadores como Araripe, os poetas como vós, pedaços de azul, frutos dourados e brilhantes, quimeras entrevistas, aspectos cambiantes e luminosos de ilusões, doces mentiras com que se mitiga a trivialidade da vida, e que confortam o espírito dos que bravamente se animam a encarar assim o mundo.

Estabelece-se então, graças ao poder sugestivo da arte, uma comunhão absoluta entre o eu e o não eu. O mundo externo povoa-se de seres animados, a natureza palpita em nós num panteísmo irrevelado, ondas de harmonia nos entram pelos sentidos sem que se possa nitidamente distinguir a natureza das sensações, e uma auréola irisada e brilhante transforma tudo que nos cerca numa confusão deliciosa de sons, de perfumes, de cores, que se combinam e se desfazem no evolver mágico de um belo sonho. É o estado de espírito que Baudelaire traduziu no seu soneto imortal das correspondências:

La nature est un temple ou de vivants piliers
Laissent parfois sortir des confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Procurando explicar cientificamente este estado de alma por uma associação entre sensações de ordem diferente, dão-lhe os médicos os nomes de sinestesias, hipercromatopsias, pseudocromestesias, fonismos, fotismos e outras denominações mais ou menos arrevesadas e pedantescas.
Os estetas do simbolismo procuram por sua vez basear nisto teorias de arte, cm que se disciplina o imprevisto. É o famoso soneto das vogais de Rimbaud, as notações de Mallarmé, as teorias de René Ghil no Tratado do Verbo. Tal estética tem a pretensão de enfeixar em fórmulas precisas a correlação misteriosa entre o sonho poético e a harmonia cambiante do mundo objetivo. Nada consegue, porém. As teorias sistemáticas do simbolismo caíram no mesmo descrédito que as normas com que os parnasianos quiseram imobilizar a poesia num áureo leito de Procusto, ou os decretos retumbantes com que os românticos quiseram disciplinar a sua indisciplina, ou os cânones sagrados com que os clássicos pretenderam acorrentar a inspiração à cópia dos divinos modelos da Hélade. Desde o momento em que se queira enfeixar o sonho numa fórmula precisa, ele se esvai docemente, e ficam vazias e secas as regras em que se tentou prender tudo o que o espírito tem de mais nobremente inatingível. Desde Boileau que as artes poéticas, correspondendo um momento a uma tendência passageira, convertem-se com o tempo em fastidioso amontoado de fórmulas inúteis.

Felizes os artistas que, como vós, se libertaram das peias das escolas, e mantêm constantemente o sonho que tudo penetra e anima, transformando a vida numa fonte eterna de inspirações. Olhado de tão alto, o mundo se afigura um infinito oceano de sensações, sonoro e luminoso, cujas ondas se sucedem perenemente, sem se parecerem, numa cintilação radiosa de força e de beleza.