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Discurso de posse

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
Antepassados! Rios! Luares!
Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
Ó paisagem etérea e doce,
Depois do Ventre que me trouxe,
A ti devo eu tudo que sou!

Assim canta o menino triste que se chamou Antônio Nobre, em um dos mais belos poemas do Só.

Quase o mesmo – não em beleza, claro, mas em ternura – diria eu de paisagens das Alagoas: principalmente das que se acham mais vivo ligadas à minha meninice. Quase o mesmo: às minhas paisagens faltam solares, eiras e moinhos. De luares, porém, estão elas alagadas: daqueles luares de outra nobriana que revestem de cal as moradas humildes:

Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...

Não lhes falta, também, a prata liquefeita e viajante dos rios – os rios do Porto Calvo da minha gente materna.

Contudo, mais viva que a presença de águas fluviais trago presa à memória a presença do mar: nascido à beira-rio, em Passo de Camaragibe, vivi na beira-mar de Porto de Pedras, terra de meu Pai, dos oito meses aos dez anos.

A contemplação do mar é incentivo e limitação. Estimula aventurosos, que mergulham nos mundos que para além dele se ocultam e fecham em beleza e mistério, até que, dando velas ao sonho, lá um belo dia se vêm, como no verso baudelairiano,

Berçant notre infini sur le fini des mers.

E, por outro lado, antepõe um dique à fantasia dos tímidos que mais se encaramujam no seu microcosmo circunstante, temerosos à perspectiva do ignorado.

A mim, o mar (“Oceano terrível, mar imenso”, amedrontava-me Gonçalves Dias, nas páginas do Quarto Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho), o mar me sugeria menos as terras longínquas, alongadas, os “outros mundos, do que o outro mundo” – céu. O céu era fronteira do oceano, por mais que, porta-voz dos geógrafos, me asseverasse o contrário a minha professora. Mais certa, para mim, a geografia de um colega de classe.

– “Pelo mar a gente vai ao céu, rapaz!” – assegurava ele. E contava do menino que um dia saíra a pescar, “e a jangada foi-se afastando, foi-se afastando da terra, que quando ele deu fé estava junto-junto do céu. Ai o pequeno fez um rombo no céu com a vara de pesca, mas não houve nada, não, graças a Deus, que São Pedro, habilidoso que só ele, remendou tudo bem remendado, com sabão”.

Fui, assim, de criança, timidamente contemplativo. Ajudava-me esse pendor e disposição de espírito a bocejante modorra da cidadezinha, o remorado ritmo de sua vida, e os coqueiros que a cingem “a dialogar com a imensidade”, como as palmeiras, suas irmãs, de um poema de Alberto de Oliveira. Lá das alturas da torre de sua copa, o pernalto, embora volta e meia desgrenhado pelo quase incessante vento mareiro, parece evadido ao bulício do mundo e entregue à ascese da meditação. E contagia-nos desse hábito e gosto, para cujo exercício o mar, ali próximo, também oferecia matéria farta e contínua.

E dentro do coração do menino o mistério ganhava corpo e asas. Corpo e asas dilatavam-se com as histórias de Trancoso, contadas por meu Pai e amigos meus, à noite (porque: “quem conta história de dia cria rabo de cotia”...), na calçada de casa, quando se calava a luz dos lampiões espaçados e capiongos, e o luar tomava conta de tudo, furtando o sono e prodigalizando sonhos que prescindiam de olhos fechados. Avultava, à brancura lunar, um mundo arrepiantemente escuro de mal-assombrados. Eram proezas da Caipora, do Lobisomem, do Fogo-Corredor, do João-Galafoice: e era o medo a nos arregalar os olhos e apertar-nos os corações.

O mistério crescia e, com ele, o desejo precoce de o decifrar. Ora, as operações mentais, por mais silenciosas, têm por substância a palavra: com palavras pensamos, e em palavras. Se aquele escultor do apólogo de Oscar Wilde só sabia pensar em bronze, era que no bronze se haviam transubstanciado as palavras, matéria-prima de suas concepções. A palavra, pois, não é tão só o veículo do pensamento, senão também a própria matéria dele. Desse prazer de interrogar o mistério e da ânsia de esclarecê-lo me há de ter vindo o interesse por um novo mundo – o mundo vocabular. Entrei a amar as palavras, ferramenta do ofício das idéias e porventura chave de enigmas. Daí viria a desabotoar, com o volver dos anos, o aprendiz de lexicografia, o interessado pelo exame dos textos, pela exegese poética, o estudante e curioso da língua.

Assim, Senhores Acadêmicos, antes de agradecer-vos a generosidade que aqui me trouxe, viajo ao arrepio do tempo, para revocar à tona dos dias de hoje, por contraste com a iluminação factícia desta sala, a luz natural de tantas noites de minha infância, e, mais contrastantemente, o escuro de tantas outras noites, tão gratas ao João-Galafoice, à Caipora, ao Lobisomem, e a companheiros de seu fabuloso universo. E, agradecendo-vos, quero estender a gratidão à minha terra, às suas paisagens sólidas e líquidas, aos seus habitantes míticos, e também aos reais; que a todos eles devo, senão tudo, como diz Antônio Nobre, ao menos muito do pouquíssimo que sou.

E, porque falo de mim, não julgueis que abuso do “odioso eu”: por mim falam as minhas Alagoas – elas, como todo o Nordeste, tão desqueridas e desassistidas; e fala por mim, ainda, num falar póstumo, o meu ilustre antecessor, nordestino velho de guerra, firme e forte, que soube a duras penas argamassar realidade e sonho para a fatura de uma grande obra: obra de auto-construção.

Um dia, aos dois anos de idade, Toninho fugiu de casa. Tonhinho: o menino Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, nascido no Recife em 1876, num dia histórico: 21 de abril.

É ele mesmo quem o conta, em sua História da Minha Vida, inédita, e por ele entregue a seu discípulo Dr. Benjamim Albagli, que amável me confiou o precioso original, onde se lê a declaração: “Para ser publicado depois da minha morte. Rio, 5 de maio de 1945.”

Fugiu, e pelos pais aflitos foi encontrado na vizinhança comendo, dançando e cantando.

Soube ele isto por sua mãe; que os sucessos da infância de Austregésilo, até os dez anos, carecem de nitidez.

Cantar e dançar: coisas muito de seu gosto, por então. Esperto como ele só, tinha facilidade no falar e decorou e cantava uns versinhos carnavalescos:

Cigarrinho de papel,
Fumo verde não fumega;
Quando vê moça bonita,
O meu coração se alegra.

E vai crescendo, com os sete irmãos, solto a correr e cabriolar no campo, de timão (camisola), trepando em árvores frutíferas, descobrindo ninhos de pássaros, “a pescar” – palavras suas – “em pântanos e alagadiços salgados no sítio de minha avó e tios, e nos quais íamos, irmãos e primos, pescar camarões, peixes, com os puçás e jererés, ou apanhar caranguejos quando de atá, isto é, atontados pelo luar magnífico na ameaça da maré enchente”; “a perseguir os passarinhos com os mundéus, os alçapões e o visgo de jaqueira”; a roubar cagasebitos e rolinhas.

De nada valiam “correadas ou peadas”: continuavam as fugas. Vezes, porém, o guri ficava agarrado às saias da mãe, ora cosendo vestidos de bonecas, ora a fazer croché ou renda. E, como a atormentasse muitas vezes com pedidos e choramingações:

– Vai-te daqui, peitica! Sai daqui, azucrim! – ela gritava. Vigiava as diabruras dos irmãos mais velhos, dava queixas contra eles, que em troca o apelidavam de “queixeiro” e mangavam da sua palidez:

Amarelo de Goiana,
Come sapo com banana!

Para cura de uns acessos de febre palustre ministrava-lhe a mãe talhadas de abacaxi: excelente remédio. “Quantas vezes eu fingia o acesso para devorar o saboroso fruto pernambucano! – ‘Mamãe a febre está começando, preciso comer abacaxi!’”

Delicioso elenco – delicioso ao paladar e a ouvidos nordestinos – o das frutas de sua preferência: jaca, banana, caju, trapiá, ubaia, pitomba, sapota e sapoti, tamarindo, jenipapo, guajiru (ou gajuru-roxo, donde a frase a mim tão familiar: “Uma morena gajuru”), maçaranduba, grumixama, oiticoró, oiti-dapraia, oiti-urubá, mamão, araçá, goiaba, melancia, melão-são-caetano, maminha-de-cachorro...”

O menino era “mungangueiro”, como tão nordestinamente lhe chamavam os irmãos mais velhos: dado a mungangas, vale dizer, a tiques e cacoetes. Cantava o “mês de maio”, em louvor de Maria. Freqüentava lapinhas, no dia de Reis. (Delas bem me lembro: ao queimar-se a lapinha, vozes femininas entoavam roufenhamente estes versos:

A nossa lapinha
Já está se queimando;
Companheiras, vamos
Nos arretirando...)

Gostava de pamonha e de canjica (a canjiquinha, aqui no Rio) e de pé-de- moleque. Dormiu em rede ou em cama-de-vento.

De viagem ao Ceará, com a família, aí pelos dez anos, ficaram-lhe inapagáveis os banhos em poços e açudes; a pega de rolinhas rabaçãs, ou avoantes; as atas (frutas-de-conde, ou, em Alagoas, pinhas), o caldo-de-cana, a rapadura, o leite tomado ao pé da vaca, o pirão de leite com carne-de-sol; sonos dormidos no amplo côncavo de redes caprichosamente bordadas; a festa do Imperador do Divino... Seis meses cheios, de lavar o peito.

De volta ao Recife, foram morar no Beco do Espinheiro, onde tiveram por vizinho a Tobias Barreto, que vivamente o impressionou. No volume Estátuas Harmoniosas, pinta-nos o grande sergipano – “um devorador de livros, verdadeira moenda intelectual” – ora a falar só, virgulando os monólogos com gestos expressivos, ora sentado numa esteira, no chão da sala de frente da casa, não “em mangas de camisa”, como no título do famoso discurso, porém nu da cintura para cima, cercado de livros, e ao lado o seu cachorro, Goethe. Por então principiam-lhe os estudos. Bom latinista, o pai, o velho Dr. Austregésilo Rodrigues Lima, lhe ensina o Latim antes do Português, pela clássica artinha do Padre Pereira, “A tardinha, à noite, a hora do serão, o Latim, o indefectível Latim..., pelo qual não tardou a interessar-se.

Só aos dezesseis anos ocorreu a primeira namorada. Antes, nenhuma fizera caso dele, o que no íntimo o rebelava e lhe acendia inveja aos mais velhos, de quem se vingava “com denúncias e pequenas queixas”. E a guria lhe viera de sétima ou oitava mão, pois dantes lhe namorara irmãos e primos.Ver e ouvir, aos onze anos, Joaquim Nabuco, que por esse tempo andou em propaganda abolicionista na terra natal, causou-lhe impressão forte e funda.

Preparava-se para os exames de Português e Aritmética, quando professor desta matéria disse particularmente ao velho Austregésilo que induzisse o menino a desistir de estudar: os dois irmãos e dois primos condiscípulos iriam longe; mas Toninho, esse “não daria para nada”. Ao ouvir do pai a triste comunicação, não se zangou: o mestre não sabia ensinar; e, abandonando as aulas, entrou a estudar sozinho, afincadamente, e no fim do ano, às caladas, inscreveu-se para exame. Aprovação plena – e outros, os “bons alunos”, reprovados.

Daí por diante, são-lhe bem claras as reminiscências: banhos no Beberibe, presepes e pastoris, festas passadas em Olinda, na bela praia “povoada de coqueirais, tufada de cajueiros pejados de frutos, a admirar os menestréis pechisbeques, os cantores melosos ou estrídulos nas dolências primitivas das modinhas ao violão”. E mais: procissões e novenas, e meses marianos, e festas de São João e de São Pedro, quando o enlouqueciam “as rodinhas, os buscapés, os estrídulos e gementes foguetes de rabo, as fogueiras, as cantilenas do tempo, semi-selvagens e semi-religiosas”. E banhos de mar – “banhos salgados”– e “pequenos passeios em jangadas, bordejantes na praia”, que ao mar alto ninguém se aventurava.

Nas noites de luar, “apagavam-se os lampiões, e com a tremulina luminosa de prata abundantíssima que se derramava pelo ambiente, fazíamos as serenatas”, “e cantávamos as modinhas plangentes, arrancadas às almas sofredoras dos menestréis da moda”.

Ia pelos quinze-dezesseis anos o menino, arraigadamente religioso, devoto ardente de Nossa Senhora dos Remédios, caem-lhe às mãos livros como Força e Matéria, de Büchner, e a História da Criação Natural, de Haeckel. Estava a mocidade sob o influxo das reformas de orientação filosófica trazidas por Tobias Barreto e Martins Júnior E: “O incêndio ardeu.” A crença da juventude, varreram-na as “labaredas do evolucionismo, do Materialismo e do Positivismo”.

“L’empreinte porém ficou” – acrescenta ele.

Depois, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Deus aparecia-lhe “vagamente como Senhor do mundo, em luz longínqua, como luar hiemal, como força harmoniosa do Universo, como o centro equilibrador da energia cósmica. Deus super omnia.”

Surgiu-lhe por essa altura o desejo de escrever. E eram versos (maus versos, reconhece), contos, ensaios de crítica e filosofia. Bilac, Coelho, Raimundo Correia, Eça de Queirós, Théophile Gaultier, Daudet, Bourget, Maupassant: eis alguns dos seus ídolos literários.

Dezesseis anos de idade: completo o curso de preparatórios. Nenhuma reprovação – e seria sempre assim. Queria estudar Medicina. Arrostando a obstinação do pai em mandá-lo para a Bahia, fez finca-pé: Rio de Janeiro. O tumulto da metrópole, os grandes homens que nela viviam fascinavam-no. E no aceso do debate, saiu-se com uma tirada enfaticamente simbólica: – Quero aprender a nadar no Oceano Atlântico, e não em açudes!

Riu-se o velho e cedeu. Curtiu o menino-e-moço, em viagem, enjôo do luar e saudades de sua mãe.

Aqui, foi habitar uma cela no Convento de Santo Antônio, onde apenas moravam, além dele, sete pessoas, entre as quais um alfaiate e um capitão reformado do Exército.

Os estudos enchiam-lhe o tempo, leniam-lhe o triste ermo das horas. Queimou as pestanas sobre os tratados de Física, de Química e de História Natural; “e um novo mundo cultural se me revelou”.

Entrou em comércio literário com alguns “novos”.

Nisto explode a revolta chefiada por Custódio José de Melo. Sobressalto contínuo para quantos residiam no Convento, exposto às descargas vindas dos navios. Suspendem-se as aulas. Foram-lhe estes os dias mais trágicos da mocidade. Enjaulado no mosteiro, quer tornar a Pernambuco. Neste ínterim vem o pai ao Rio e vai morar com ele.

Não tarda muito, o velho o chama ao Recife. Lá chegando, o filho encontra-o muito mal e o perde logo depois.

Ao seu propósito de volver à capital do país resiste rijo a família. Ele, porém, teima: e volta. Volta com “vinte mil-réis no bolso e um mundo incontido de sonhos e ambições, fustigado pela dor, pela saudade e pelo desespero”.

Queria vencer: “Vencer era verbo que me atormentava a existência.”

Vai de novo para o Santo Antônio, agora dirigido por um frade “de coração de pedra”, “cuja fé em Deus era uma indústria”, e que o sujeita a um mofino dia-a-dia de humilhações. Tinha de varrer sua cela, lavar e passar a ferro a sua roupa, carregar água para suas necessidades, preparar o seu almoço – “uma xícara de café com leite condensado, uma fatia de pão dormido e uma ou duas bananas”.

Começou a ensinar a colegas vadios, e em colégios; do que lhe vinha o estritamente necessário para a alimentação. Orçava esta por mil-réis diários; trezentos para o almoço, cem para a merenda, e para o jantar seiscentos réis. Andar de boné. Nem falar. Diversões? Nada.

Em tais aperturas, contudo não se furtava aos deveres de estudante, sempre “túmido de desejos para conquistar o título de doutor”.

A espaços, chegava-lhe da mãe, carregada de filhos e necesidades, algum dinheirinho “vasqueiro”, pronto devorado por coisas de urgência. Dentro da cela, buscava consolo nos livros adquiridos em vida do pai e na festa gratuita da paisagem que da janela descortinava a seus olhos, vivamente sensíveis a agrados e encantos da Natureza. “As aspirações, a fé, a confiança me anestesiavam as dores da vida.” Nada lhe vergava o ânimo. Nada temia, a não ser doença grave que o desviasse do rumo traçado. Dizia-lhe uma voz interior: “Vai, caminha, que lá chegarás.”

Era obrigado a recolher-se ao toque das ave-marias: a esta hora, por ordem do frade mau, fechava-se-lhe inexorável a porta. Se alguma vez o sem-número de afazeres lhe impossibilitava chegar pontualmente, vagueava as ruas, até que, exausto, ressubia a ladeira e dormia, sentado, ao portão. Certo dia – junho; frio de entanguir – o porteiro acintosamente o fechou, mal viu aproximar-se o estudante, posto ainda não houvessem dado as seis. Austregésilo bateu, bateu: em vão. E, ali, pela primeira vez o esmagou o desânimo. E, ao pé daquela casa de Deus, se quedou a ruminar as torturas que lhe infligia a maldade dos homens. E a noite se escoou, em gelada vigília de lágrimas e saudades dos seus.

No dia seguinte, um primo e companheiro de infância, vindo ao encontro da firme decisão de abandonar imediatamente o mosteiro, ofereceuse a compartir com ele o seu quartinho da Rua Dois de Dezembro. Embora a falta de dinheiro para o bonde o levasse a fazer a pé as viagens de ida e volta à Faculdade de Medicina, então na Rua de Santa Luzia, sentiu-se outro. Cinqüenta mil-réis de um emprego e alguns bicos de aulas asseguravam-lhe dois anos de estudos.

No fim do ano, viu-se ameaçado de interromper o curso: onde os quarenta mil-réis da matrícula? Valeu-lhe, porém, um velho amigo de seu pai.

Depois, as coisas correm-lhe mais fáceis: novos alunos, novas relações de amizade entre os colegas; “já me sentia em estrada segura para marchar na vida”.

Boas notas nos exames, e sobretudo uma distinção alcançada, deramlhe volta feliz à existência: foi convidado a participar da comissão médica de combate ao cólera-morbo no vale do Paraíba, em quinhentos mil-réis por mês e as despesas pagas. “Que achado!”

Ao fim, teve a sensação da riqueza: juntara quase quanto ganhara: três contos de réis! Aquisição de livros em sebos, reforma de guarda-roupa, freqüência de teatro – “teatrinhos ordinários” –, convívio literário e mundano: tudo ia de vento em popa.

Talvez me estendi no traçar a infância e o começo da puberdade do meu antecessor: os fatos expostos me parecem, em si mesmos, do maior interesse; tanto mais quanto é muito verdadeiro aquilo de que “o menino é o pai do homem”.

Agora, buscarei sintetizar-lhe ao máximo os sucessos posteriores da existência: a projeção crescente do seu nome irá escusando minúcias.

Em frente da sua mesa de estudo, ao principiar-lhe a vida acadêmica, escrevera Austregésilo – apaixonado de provérbios – Gutta cavat lapidem, norteador de sua vida, e que ao longo das obras suas teimoso se repete, ora na forma latina, ora na ampliada tradução portuguesa:

Água mole em pedra dura tanto dá até que fura.

E firme atravessou o curso, de cabo a rabo, “sem olhar percalços, nem apurar fadigas, aferrado aos deveres escolares”.

Duríssimo lhe foi o sexto ano. Professor do Colégio Kopke (cujo diretor inspirou a Alceu Amoroso Lima bela página evocativa), do Colégio Alfredo Gomes, e de turmas particulares; preparador do Pedagogium; interno da Colônia de Alienados, na Ilha do Governador; aluno assíduo, e, ainda por cima, às voltas com o preparo da tese de doutoramento, Estudo Clínico do Delírio, sua atividade entrava pela noite, restringindo-lhe a quatro ou cinco as horas de sono. Terminou esfalfado, “estazado”.

Vencer, a todo custo. A idéia do triunfo obcecava-o.

A brilhante defesa da tese – aprovada com distinção – constituiu-lhe a primeira alegria da adolescência. Formado! Que felicidade para a mãe!

Era em 1899, um ano depois da estréia nas Letras – com o livro Manchas.

“Desde então” – declara – “nasceu dentro de mim um outro homem, outro ser mais humano e menos sonhador. Abandonei a Literatura e engolfeime feio e forte no estudo sistemático da Patologia e da Terapêutica”.

Lia, a bom ler, os graves e gordos tratados, intervalando sistematicamente com dez a quinze minutos de repouso cada hora de estudo; organizava resumos; elaborava esquemas; e repetia, repetia, repetia. E uma idéia lhe repontou no espírito e se transfez em idéia fixa: ser bom profissional em sua carreira e professor de Clínica Médica da Faculdade onde estudava.“Nesta caminhada gastei dez anos.”

Duas preterições sofridas – quando se criara na Faculdade mais um lugar de assistente e ao vagar um desses lugares na Clínica de Miguel Couto – tinham-lhe doído fundo. Da primeira vez Francisco de Castro, seu mestre amado quase idolatricamente, “o divino Mestre”, como lhe chamavam os discípulos, nomeara outro para o cargo, a que a dedicação e talento de Austregésilo, os serviços por ele já prestados à Ciência – entre os quais a sua concepção acerca das ratafrenias em oposição à demência precoce de Kraepelin, os estudos sobre as polineurites escorbúticas e as síndromes pluriglandulares endocrínicas – lhe conferiam pleno direito; da segunda, a desilusão lhe veio de Miguel Couto, que formalmente prometera aproveitá-lo.Contudo, a não ser nas suas memórias, sempre se referiu aos dois sem laivo de queixa, e até com os mais ardentes, exaltados louvores.

Porém o golpe não o desenganou de todo da justiça humana. Po-la-ia à prova no concurso a que se submeteu em 1909. Para a fazenda do sogro mandou mulher e filhos (casara no próprio ano da formatura), e, sozinho em casa, por maior tranqüilidade, devorou livros e revistas, saindo unicamente para freqüentar hospitais e praticar em laboratórios. Seis meses a fio: 180 dias de exaustivo esforço e desgastantes emoções. E por mais um mês se arrastou o consurso, cujo resultado foi a sua classificação em segundo lugar, ficando-lhe à frente Miguel Pereira.

Uma compensação teve ele para o abatimento moral: a clientela, dantes minguada, pegou a crescer insolitamente, certo graças às suas boas provas, sobretudo as práticas, julgadas as melhores entre as de todos os concorrentes.

Não se passa um ano – outra vaga. E ei-lo outra vez inscrito. Agora, além dos habituais boatos, mexericos e pistolões, tinha contra si a hostilidade aberta de um dos membros da banca examinadora. Enfim: novamente, Austregésilo em segundo lugar; coube o primeiro a Aloísio de Castro. Novamente suas provas práticas foram, de todas, as melhores. “Quem algum dia me ler poderá saber do meu desespero!”

Não tardou porém que, sem mais concurso, a Congregação da Faculdade o indicasse lente substituto de Clínica Médica, Patologia Interna e Clínica Propedêutica.

Seis meses mais: abre-se uma vaga, e para preenchê-la Nilo Peçanha o nomeia catedrático efetivo, com aprovação plena da congregação. “Vivi as grandes horas de prazer intelectual.”

O sonho do pai, iniquamente preterido em dois concursos para a Faculdade de Direito do Recife, realizava-se agora, transferencialmente, no filho. Vasta clientela, aulas, pesquisas, publicações, acendiam-lhe contentamento, otimismo e entusiasmo, e “coragem, desprezo ao cansaço e ansiedade de progresso”.

Cria-se depois a Cadeira de Clínica Neurológica: e eis Austregésilo professor – e fundador – da nova disciplina. Afinal, a velha aspiração realiza-se em cheio. Mais do que professor, é Austregésilo o mestre. De seus alunos, muitos serão mais do que alunos: serão discípulos – e ninguém, no Brasil, os terá tido tão numerosos e tão eminentes.

Cresce-lhe a fama, dia-a-dia, na cátedra, na clínica, nas Letras médicas. Entra nesta Academia, depois de aceso pleito – “a mais renhida das minhas lutas”, declara.

Deputado federal por Pernambuco, indicado por todos os partidos. Exaltam-no e deprimem-no: é a glória, esse conjunto de mal-entendidos que se criam em torno de um nome, segundo Rilke. A Glória.

Senhoras e senhores: Quando Austregésilo abriu os olhos para a vida literária – ainda no Recife, onde colaborou num jornalzinho, O Neófito –, tínhamos uma república, a bem dizer, novinha, estalando, como o papel-moeda da inflação derramado pela insensatez do Encilhamento. Uma república ainda engatinhando, mal das pernas, frágil, prestes a sofrer os males da cura violenta da consolidação. Ao sebastianismo dos clássicos da Monarquia entremesclava- se a romântica insatisfação de numerosos republicanos, para quem não era aquela a “República dos seus sonhos”. E as duas correntes, com elas digladiando-se, o realismo dos mandantes do novo regime. Bem feitas as contas, uma luta entre clássicos e românticos. Mais: o sentido clássico de aspiração à ordem era, nos monarquistas, contrastado pelo sentimento de contemplativa saudade do passado imperial – romantismo nítido; e, quanto aos republicanos desiludidos, basta essa expressão para ter idéia de como tais apóstolos da realidade do presente se achavam tocados e iscados da eiva romântica: eram também saudosistas, à sua maneira; saudosistas – parodiando o célebre verso – do regime que poderia ter sido e que não foi. Assim, monarquistas saudosos e republicanos desenganados estavam em luta não apenas contra o poder, senão também contra si mesmo – contra bipolaridade sentimental.

Isto, na Política.

Na Literatura, esgotado o processo do Romantismo (de que no entanto subsistiam traços residuais, ainda hoje perdurantes), rebentara desde alguns anos a vaga do Realismo-naturalismo, na prosa, e do Parnasianismo, no verso (parnasianismo, por sinal, laivado de toques românticos, de derretimentos eróticos e que no rigidamente correto da forma procurava compensação à quase geral ausência da insensibilidade e objetividade exigidas pelos teoristas da escola); e já se faziam ouvir, por outro lado, os primeiros rumores do Simbolismo, movimento de raízes românticas. Esboçava-se o entrevero das correntes, do qual sairia vitoriosa a primeira, a ponto de um Félix Pacheco reescrever à parnasiana alguns poemas seus de tom simbolista, como assinala Andrade Muricy, e Alberto de Oliveira morrer parnasiano em 1937, quando já fazia dezesseis anos que desaparecera Alphonsus de Guimaraens, e já viera e se fora o neo-simbolismo, e encerrara-se, a rigor, o processo modernista.

No Rio, embora decerto estonteado em meio a esse entrechocar de rumos, Austregésilo atira-se com vontade às Letras, pelos dezessete anos, ao principiar o seu curso de Medicina, Contos, versos, ensaios.

E pouco depois se filia ao Simbolismo. Entra no grupo dos “novos”, ao qual pertencia o nosso querido Luís Edmundo, e que, além de publicar um decálogo bicolormente impresso em preto e vermelho, funda uma revista – Vera-Cruz – também impressa em duas cores, “com tipos antigos e símbolos arcaicos”.

São de tal fase os seus livros Manchas e Novas Manchas, contos e fantasias, rijamente surrados por Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e Valentim Magalhães, e Velho Tema, novela que republicou pela altura de 1925, remanipulada e crismada em História de Amor, como tornaria a publicar com alterações muitas, a começar pelos títulos, várias peças dos volumes anteriores, nos Perfis de Loucos, já em plena maturidade.

Entre as fantasias e contos, inçados de falhas e excessos peculiares à escola e à mal segura imaturidade – lembre-se, de passagem, haver o Simbolismo dado o melhor de si, em geral, na poesia, que não na prosa –, cumpre salientar ao menos um trabalho de relativo merecimento: “Ele! o Dr. Strauss”, estranho caso de um homem que prevê o dia e hora exata de sua morte, realizando-lhe o presságio.

Velho Tema (ou seja, História de Amor), autobiográfico, é a mais frágil de suas obras de ficção. O cediço trio amoroso: mulher, marido e amante – Sinanta, Silvano e Selênio – sem outra originalidade a não ser a do aliterante e sibilar. A destemperada paixão dos amantes frisa pela insensatez e loucura. Sinanta, mais velha que Selênio, é uma espécie de Carolina luxuriosa e capitosa daquele Machado moçamente desinquieto e ávido. Uma Carolina talvez mais branca do que a lusitana irmã do poeta Xavier de Novais: tamanha a insistência como que sua brancura domina as páginas da novela e a mente do jovem fauno caboclo, que se diria um alucinado, ao jeito de Cruz e Sousa, pelas “formas alvas, brancas, formas claras”. Quase se espera uma paráfrase ao verso mallarmeano inundado de azul. Je suis hanté! le blanc! le blanc! le blanc! le blanc!

Por que teria Austregésilo relançado, já cinqüentão, esse livro de sua juventude? Andaria nisto, quero crer, aquele “prazer das dores velhas” de que fala Machado de Assis. Não vos recordais? Depois de narrar a velha crise de seu amor adolescente, diz Bentinho, pela pena do mestre Dom Casmurro, que de espiritualizadas pelo tempo, as antigas dores diluíram no prazer.
 
Para não partir o fio comentário da ficção do meu antecessor, projetome, com um pulo de bota de sete léguas, a 1943, quando lhe apareceu um romance – Almas Desgraçadas – sob o pseudônimo de “Feitosa Lima”.

É livro de tendências filósoficas, onde em primeiro plano se agitam personagens ansiosos de viver a vida cada um a seu jeito e gosto, remando contra a maré. Um deles, Rodaque, vagabundo, em realidade não vive: é vivido. O outro, Cristiano, estigmatizado por uma desventura que lhe feriu as raízes da existência, quer fazer frente à vida, não foge ao trabalho, mas intenta construir um mundo ao capricho dos seus sonhos de crente na regeneração humana, e a realidade traga-lhe as generosas utopias. O romance interessa; e as principais figuras masculinas, e uma das femininas, Sílvia, estão caracterizadas a traços psicológicos em regra seguros e certeiros. A outra, porém, Consuelo, é o seu tanto evanescente e infixa, frouxamente tratada. Ressente-se a obra, também, de certa falha de ambientação. Assim como assim é, de longe, o trabalho mais aceitável do Austregésilo ficcionista.

Sucedem-se alguns sonetos, pequenos poemas, na maneira nefelibata. Depois, volvendo-se aferradamente para a Medicina, dá por encerrada a carreira literária. O que porém não impediu viesse ele a namorar a Academia, complemento à glória de professor e clínico. E, já se viu, obteve-lhe a mão. Dois volumes de Medicina, e um de discursos médicos, Palavras Acadêmicas, foram os títulos com que enfrentou a Gilberto Amado. Da eleição e posse veio-lhe a sensação “de haver conquistado a felicidade”.

Agora, dando cartas e jogando de mão na vida material, intensifica os estudos e lança-se aos trabalhos de vulgarização científica, “com tonalidades filosóficas e literárias”.

Não sendo propriamente Literatura, será essa, considerada do ângulo estético, a parte mais significativa de quanto escreveu.

Era Austregésilo trabalhado e dividido por uma dicotomia de tendências. Resquícios de velhos sonhos, reminiscências da freqüentação de rodas literárias, o desejo de canalizar para a Arte, num processo de sublimação, antigas mágoas com que o malferira o amor e a vida prática, impulsionavam-no às boas-letras; mas a lucidez do realista que nele também vivia (e mais largamente), a autocrítica a apontar-lhe decerto o escasso poder de fantasia, e a ânsia de vencer e, para tanto, buscar os mais seguros caminhos da vitória, guiavam-no para as coisas positivas, para as atividades em que mais influíssem o querer, a energia tenaz e pertinaz, o estudo a todo o pano – em suma, para a Ciência.

E a Literatura científica, a difusão de conhecimentos por maneira leve e simples, ofereceu-se-lhe como feliz compromisso entre as duas correntes antipódicas do seu eu. Assim realizaria na Ciência, parcial e vicariamente, subjacentes aspirações às Letras.

Dessa atividade paraliterária resultaram mais de vinte volumes; entre eles: Os Pequenos Males, Preceitos e Conceitos, O Mal da Vida, A Cura dos Nervosos, Educação da Alma, Pessimismo Risonho, As Forças Curativas do Espírito, Neuroses Sexuais, As Psiconeuroses, O Comportamento Sexual.

Diz o Visconde de Santo Tirso, com espírito, ser admirador daqueles escritores que, sem nenhuma idéia, alcançam encher trezentas páginas de um livro; os outros não lhe causam espanto: têm lá suas idéias, trasladam-nas ao papel; nada mais natural... E Euclides da Cunha, a propósito de um cronista oco, porém de certo brilho, confesssou a João Luso admirar tipos assim: “Acho-os inquestionavelmente superiores, com essa faculdade de tirar do nada alguma coisa, alguma coisa que se veja.” Ele, Euclides, era como certos pássaros que para desferirem vôo necessitavam de trepar a um arbusto. – “Ora” – rematou –, “o meu arbusto é o Fato.”

Austregésilo, quanto mais senhor do fato, e a ele mais adstrito quanto mais dominador do assunto, tanto melhor escreve. Daí o sairem-lhe falhas, pelo geral, as obras de fantasia; e daí, em regra, os seus malogros quando, na Ciência da fantasia se abeira, e se espraia e desmancha em comentários marginais ao tema, querendo fazer Literatura, como em Viagem Interior – talvez, da série de divulgação, o livro mais procuradamente literário. Esgarça-se, aqui, a precisão habitual; arredonda-se o estilo em imagens, símiles e alegorias vaporosas e convencionais, dilui-se e desvigora-se em marchas e contramarchas; avolumam-se os períodos, intumescem a compasso com o adelgaçar das idéias – assim até cerca da metade do livro.

Entretanto, em outros vários de seus volumes – e, deles, Comportamento Sexual – o autor, sem fugir ao tom prático e didático, preso aos fatos, dá o melhor de si mesmo.

Em todas essas obras ressalta o otimismo. A cada passo, no seu jeito pedagógico de repetir para fixar no cérebro e no espírito a noção transmitida (lembrai-vos do papel significativo da repetição em seu método de estudo), insiste em conselhos assim:

“Procuremos por todos os meios fazer da vida um bem.”

“A vida é boa; os homens a fazem má.”

E até:

“Procurai ser otimista. Se o temperamento não vos permitir, sede estóico.”

De Machado de Assis escreve o fino escritor que foi Tristão da Cunha: “Diretor de Contabilidade do Ministério, este céptico desalentado acreditava na Contabilidade.” Coisa semelhante diria eu de Austregésilo: aquele otimista, se propriamente da felicidade não descria, achava inútil fazer dela um problema. Para ele, o mal da vida (afirma-o no começo do livro de igual título) é a ânsia de ser feliz. E aduz, como provas, opiniões inúmeras de escritores, pensadores, filósofos, religiosos, além de exemplos da vida real. Noutra obra, equaciona por este modo a questão VIDA = DEVER; DEVER = PRAZER; PRAZER = FELICIDADE.

Insiste Austregésilo na tecla da utilidade do trabalho, do esforço:

“Não há esforço inútil na existência.”

Crê firme na ergoterapia. E chega a prescrever aos cansados, aos esgotados, três drogas, em doses pequenas, mas constantes (salvo em casos especiais):

“A primeira: trabalho; a segunda: trabalho; a terceira: trabalho.”

Prega o altruísmo:

“Cada indivíduo que possui um programa deve executá-lo pensando nos outros, porque então o êxito será habitualmente seguro.”

Não vai, contudo, a excessos: criticando o Positivismo, escreve, na Moral Biológica, um de seus últimos livros, que o altruísmo absoluto não passa de idealismo moral,

porque “todo ato humano é representado pela defesa biológica, que se transmuta em ação psicológica e moral”.

Aconselha a fugir da preocupação de sempre enganar o próximo:

“Podeis assim triunfar. Mas ao fim da jornada, o ludibriado sereis vós.”

Desde obras muito antigas, verbera a superstição da existência de raças superiores e defende a mestiçagem brasileira. Já em discurso aos doutorandos em 1916, proclama:

“Não há raças superiores, há as raças contingentes dos climas: e de uma maneira absoluta não podemos afirmar que o anglo-saxão seja realmente superior ao novilatino

americano; é questão de momento e maturidade.”

Nessa convicção se enraíza o seu humaníssimo anti-hitlerismo, com todos os efes e erres:

“A guerra cruenta, bárbara, impiedosa, contra os semitas, demonstra grau inconcebível de amoralidade.”

“Hitler é visionário altamente prejudicial à humanidade... O arianismo é sonho idealizado em falsas premissas. A seleção, o cultivo, a pureza do arianismo alemão não

passam de metamorfose na história das civilizações. Por falsa puridade desenrola-se o mais monstruoso feito da humanidade.”

Nacionalista, contudo não se desmanda em xenofobia,

“sentimento profundamente selvagem”.

Pragmatista, sustenta serem as questões práticas “as mais eficientes para qualquer curso preparatório de toda profissão”.

“Cumpre ao homem preparar-se para a vida real e não para a cultura sem visão pragmática.”

Propõe seja ministrada nos cursos oficiais a educação dos sentimentos, a “ortopedia sentimental ou moral”.

A preparação em meios estrangeiros, diferentes daquele em que o indivíduo terá de atuar, é por ele criticada: a este indivíduo faltará “a convibração com o seu meio”.

Combate reiteradamente aquilo a que chama o “americanismo intelectual”, ou seja, “o processo de importação ideativa”.

Nos Caracteres Humanos – onde se notam pegadas de La Bruyère – descreve, entre outros tipos, “os pomadistas e fanfarrões, os homens amáveis, os invejosos”. Nestes, vinga-se, indiretamente, de adversários seus; indiretamente – a única maneira por que se vingava esse descendente manso dos Feitosas do Ceará, truculentamente vingativos.

Em Estátuas Harmoniosas – estudos psicológicos e retratos de acadêmicos falecidos – sobressaem: o perfil de Pardal Mallet, o patrono da Cadeira que me coube a honra de ocupar; “Alguns Aspectos Psicológicos de Machado de Assis”; e a admirável página evocativa acerca de Tobias Barreto. É gênero, diga-se, em que o autor vai quase sempre bem, esse dos retratos e evocações, à parte a sua tendência para superestimar amigueiramente as figuras estudadas. Entre tais exageros se inclui o pendor para o abuso de “gênio”.

Ressaltaria, ainda, no volume Frustos, onde acaso se requinta a inclinação para os elogios hiperbólicos, a erudita conferência sobre a “Psicologia da Saudade”. Entre muitas outras coisas, mostra-se inteirado das hipóteses etimológicas acerca da palavra que a Valéry Larbaud sugeria “um céu nublado entre duas longínquas zonas luminosas”. Provavelmente não chegou a ler o estudo de João Ribeiro a esse respeito, nas Curiosidades Verbais, onde o grande polígrafo se refere à etimologia arábica, apontada e defendida pelo Prof. Ragy Basile. Nem se lembrou, versando a saudade na Literatura, do belo soneto de Da Costa e Silva, corrente, até não há muito – até à minha meninice, não demasiado remota, salvo traição da memória – em todos os álbuns e em todas as bocas sentimentais do Brasil. Toma Austregésilo o vocábulo, igualmente, no aspecto semântico, e dá-nos conta do que apurou em textos literários e filológicos pacientemente revolvidos. Recordo-me de conversas com Alfonso Reyes, no México, em que o Mestre me falava de autores antigos – sobretudo poetas – nos quais se depara soledad com acepção perfeitamente igual à de nossa saudade. No Dicionário de la Real Academia se encontra, entre as definições de soledad: “Pesar y melancolia que se sienten por la ausencia, muerte o pérdida de alguma persona o cosa. E – não esqueçamos – em português, soledade pode ser, ao menos bem aproximadamente, sinônimo de saudade. Vemo-lo nestes versos de João de Deus: “Despe o luto da tua soledade / E vem junto de mim, lírio esquecido / Do orvalho do Céu!” Já precisamente há setenta anos Caldas Aulete os citava em abono da primeira das duas significações dadas por ele a soledade: “solidão; estado de quem se acha só; a saudade que acompanha a pessoa que se acha solitária.”

Cabe, aqui, mencionar outras obras austregesilianas: Afeto e Inteligência, retratos, dos quais o primeiro é o de seu pai – “Bom, sábio e justo, bondade humana, sapiência sólida e justiça baseada na probidade”; O Homem Brasileiro; o breve e comovido estudo sobre Cruz e Souza e o Simbolismo no Brasil, onde, além de retratar o Poeta Negro, a quem pessoalmente conheceu, e outras muitas figuras ligadas ao movimento, evoca diversos fatos de interesse para o conhecimento de seus próprios começos na vida literária; e dos trabalhos estritamente científicos: Estudo Clínico do Delírio, tese de doutoramento; Clínica Médica, Clínica Neurológica, Clínica Patológica, Patologia Mental, Troubles nerveux et mentaux dans les maladies tropicales, L’analyse mentale en pratique médicale.

“A minha pena sofreu tanto como o meu coração, porque sempre se me feriu o amor-próprio por causa dela”: confissão melancólica do meu antecessor, em suas memórias.

E mais adiante:

“Nunca fui muito considerado como artista.”

De contínuas impiedosas agressões foi ele vítima, por parte de vários escritores nossos. Tornou-se moda tachá-lo de arcaizante, pesadão, bolorentamente soporífero. Em livro pilhérico, atribuiu-lhe Mendes Fradique a autoria do conceito – “A mentira é a negança da verdez”.Pois a boutade pegou. Pegou, conquanto o livro esteja cheio de piadas desse estilo, entre as quais a seguinte imitação do tom de Augusto dos Anjos (cito-a de memória):

Quisera entrar num necrotério; e um dia
Consegui penetrar num necrotério.
Fazia frio, e o frio que fazia
Amortalhava esse lugar funéreo.
Sobre a marmórea morgue o inchado abdômen,
Que a ascite transformara em túmido odre,
Na desagregação dos restos do homem,
Fedia, como fede um queijo podre!

Pegou a boutade. A ponto que, tantos anos volvidos, mais de uma pessoa a reeditou:

– Então você vai fazer o elogio de Austregésilo, o homem de “A mentira é a negança da verdez?” Tarefa difícil!

Eu mesmo, conhecendo-o, de menino, só de pequenos trechos, escolhidos a dedo e glosados por Antônio Torres, o mais desumano de seus opositores, tinha-o por um desses literatos médicos de estilo retortamente quinhentista, useiros e vezeiros em afetações e rebuscamentos, que vicejaram à larga no Brasil, e dos quais ainda se encontram lastimáveis supérstites.

Mas, ao principiar a lê-lo, caí das nuvens. Sem ser, fundamentalmente, um artista – nele, de ordinário, o lógico devorava o mágico –, todavia seu frasear é por via de regra simples e claro.

Tendo, como vimos, aprendido o latim em verdes anos, antes de sua própria língua, e havendo lido apaixonadamente os clássicos, dois traços, no entanto, governam-lhe a sintaxe: o predomínio sensibilíssimo da ordem direta sobre a inversa e o não menos sensível da coordenação sobre a subordinação. Por outro lado, usa fugir dos períodos sesquipedais.

Prega em suas obras a conveniência de escrever claro e simples, em períodos preferivelmente breves – e raro o exemplo contradiz a pregação. Não o sentimos preocupado em fazer praça a cada instante, do conhecimento de locução e giros sintáticos antiquados ou obsoletos.

Emprega, é certo, vocábulos arcaicos, ou em desuso: sol sofrença, personal (ao lado de pessoal), fortitude, parvo (no sentido de pequeno). Por exemplo. Pouquíssimas vezes embora, vale-se de construções mortas, como esta: “A moral não se exerce por espíritos rudes e ignorantes” – à maneira de Camões: “Por ele o mar remoto navegamos, / Que só dos feios focas se navega” (em vez de é navegado).

Podemos acusá-lo por tudo isso: já Fernão de Oliveira – e Rodrigues Lapa o recorda, na Estilística da Língua Portuguesa –, já Fernão de Oliveira, o primeiro gramático de nossa língua, dizia, nos idos de 1536, que “o arcaísmo dava vontade de rir”; ainda que alguns deles – acrescentarei –, quando bem encaixados, funcionem estilisticamente às mil maravilhas. Mas até num Machado de Assis – e mais era Machado de Assis – nem sempre eles caem bem no contexto. É o seu tanto forçado, por exemplo, aquele “garção” em vez de “rapaz” que se vê no Dom Casmurro: “Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz.”

Contudo, longe de ser desabaladamente arcaizante, Austregésilo escreve, em geral, na língua do seu tempo. E em palestra nesta Casa, no ano de 1936, não só afirma que “não nos podemos quedar congelados nos cânones dos puristas”,mas reconhece, até, que os neologismos“derivam da necessidade da frase, do pensamento; e por isto são necessários,e quando formados segundo a índole do idioma constituem riqueza vernácula e devem ser adotados”.

Mais:

“O justo neologismo é sinal de vitalidade idiomática.”

E criou, ele próprio, umas quantas centenas de neologias, em grande parte ainda indicionarizadas, e muitas figurantes – ao lado de outros vocábulos colhidos em páginas suas – no dicionário de Figueiredo, nas últimas edições do de Caldas Aulete, e na décima de Morais. Nem faltam às suas obras termos e construções familiares ou populares, tanto deles de uso corrente no Nordeste.

Incorre por vezes em lugares-comuns: é certo. Aliás, assim como se fala, hoje, de um “folclore nascente”, que dispensa a tradição, pode-se também falar do chavão nascente, da palavra ou frase que, sem dantes haver sido usada, já se apresenta de ponto em branco para conquistar o título de “lugarcomum”. Um exemplo: “Cai a tarde” não será, a rigor, lugar-comum, como não o é “Bom-dia” ou “Boa-noite”; enquanto aquilo do Barão de Parana- piacaba – “Era a hora mágica do tombar do dia” –, como ser, decerto, de emprego unicamente pessoal, é redondo atestado de mau gosto, de gosto do lugar comum – e o pior, o precioso (bem pouco freqüente em Austregésilo). E na poesia? Aqui, o chão, a chapa, o clichê, pode funcionar excelentemente. Se é imperdoável aquele “o caso é muito sério” que um tradutor do famoso soneto de Arvers meteu em sua versão, para ser fiel à rima em ère do texto e consonar com outros èrios, inclusive o de “cemitério”, impressiona grave e fundo o algo perfectamente serio que Antonio Machado põe a certa altura da En el entierro de un amigo. Os sepultureiros fazem cair ao fundo da sepultura, suspenso por grossas cordas, o caixão, que, batendo em terra, ressoa rijo. E glosa o poeta: Un golpe de ataúd en tierra es algo / perfectamente serio.

Referi-me ao limpo e singelo do estilo do meu antecessor. Perguntovos, senhoras e senhores: sentistes alguma dureza, algum arrevesamento, nos trechos numerosos que dele até aqui citei? E – crede – não os colhi de caso pensado.

A linha geral do estilo de Astregésilo – insisto – é fluentemente desafetada. Poderia ele afirmar, como Garrett, que não fazia “servir a idéia à frase, que é vício de ignorantes e impostores, os quais primeiro escolhem as palavras, depois buscam o pensamento – como pintor que fizera um retrato antes de ver o original”.

O homem que se levantava horas mortas para socorrer-se aos dicionários jogava seguro com as palavras: e, se por exceção pecava no emprego individual delas, ou no associá-las na comunhão sintática; se, ao doseá-las, lhe ocorria alguma vez espichar-se em perífrases ou perissologias, o certo é que de ordinário elas serviam muito bem aos seus propósitos.

Dizei-me se um mero enteado das Letras seria capaz de exprimir-se com a originalidade e graça deste período:

“Um piano da vizinhança era provocado por dedos nervosos a soluçar a alma dos clássicos.”

Atente-se, ainda, na propriedade, força e número deste passo, extraído aos Preceitos e Conceitos:

O silêncio é uma vez em perspectiva, como qualquer idéia constitui um ato nascente. Em torno dele gira um mundo infinito de pequenos sons, quase imperceptíveis como as diminutas linhas retas que formam a circunferência. Nas selvas tropicais, nas escaladas sertanejas, nas noites polares, nos rincões sombrios ou desolados da Terra, no oceano,na planície, ou na montanha, o silêncio soergue-se sempre como a perspectiva do som, que se acha distribuído de mil modos pela atmosfera:ventos que gemem, galhos que estalam, insetos que zumbem e ciciam,águas que fremitam [note-se a bela expressividade deste verbo, talvez criação de Austregésilo, e ainda ausente dos léxicos], flores que desabrocham,sementes que fecundam, pios agoureiros que se diluem, cantilenas esparsas das coisas na Natureza, porque há sempre a surdina emtorno dos fenômenos. Moléculas que se desagregam e se unem, a vida que se manifesta, o vegetal que se atrita, a noite que estremece, o nada que se corporifica perturbam em sons quase indistintos o suposto domínio tzaresco do silêncio.

 

E ou muito me engano, ou algo do melhor Machado existe aqui: “Era uma linda e estrondosa morena de olhos grandes, sensuais, conversada, bem feita de corpo, inteligente e palreira.”

Em momentos assim, o mágico subjugava o lógico.

Sábio, humanista da melhor estirpe, entre os seus largos conhecimentos se incluía o de numerosas línguas vivas estrangeiras – uma delas, o alemão – e o do latim e do grego. Além das matérias de natureza estritamente científica, sabia a sério literaturas antigas e modernas, e a cada passo, ao longo dos livros, o manifesta, sempre muito a propósito. E mais: Filosofia, História, Mitologia eram-lhe familiares. “Estudei como um escravo” – disse uma vez, quando a caminho da velhice: e não mentia.

Grande, extraordinário professor, os alunos queriam-lhe e o respeitavam. Bom, de uma bondade ativa; e quantos com ele privaram ressaltam-lhe no caráter a mais entranhada e férrea noção do dever. Desconhecia a inveja; não costumava guardar rancores. Faltava-lhe “bossa para negócios”. Sabia amar a vida, sem saudades do passado, nem inquietações com o futuro; e aos 66 anos de sua idade saíam-lhe da pena estas belas palavras:

“Amei a inteligência e amei o amor.”

“Eu e a vida estamos quites: nenhum deve ao outro alguma coisa. Posso morrer tranqüilo como quem procurou cumprir o dever. Profissional, na cátedra e na clínica, amando misticamente a Medicina como a grande fortuna da minha existência.”

Prova desse amor, senhoras e senhores, o nobre ato de contrição encerrado no discurso que proferiu, em sessão conjunta das sociedades e institutos sábios do Brasil, em agradecimento às homenagens recebidas por motivo da outorga do título de professor emérito da Faculdade Nacional de Medicina:

Sei que os meus 35 anos de professorado foram mal gastos.
Cometi grandes erros evolutivos; fiz parte do Congresso Nacional durante três legislaturas, sem vantagens reais para a Ciência, salvo o recurso para a construção do Pavilhão de Clínica Neurológica; perpetrei várias erronias, mas confesso-vos que sempre reconheci os meus falsos passos e nunca deixei de amar a Medicina.

E acrescenta, sempre modesto:

[...] tive fortes desejos de trabalhar, de fazer alguma coisa de novo, de assegurar o meu dever universitário; de conduzir os meus amigos íntimos,os meus filhos, os meus parentes da família neurológica, para neles incutir o entusiasmo pela cultura prática da neurologia.

A ele não se lhe pode aplicar o chavão de que vida foi maior do que a obra: a obra, nele, é prolongamento e complemento natural e harmonioso do homem; é, por assim dizer, o homem escrito.

Morreu alguns anos antes de morrer. Bem antes que a morte física lhe cerrasse os olhos, – a consciência, o espírito, já se achava morto e enterrado. Morreu sem saber, sem sentir. Não precisava desse favor do destino: longevo, carregava já muitas outras mortes na alma, sobretudo, por fim, a do filho querido, destinado a continuador de seu nome ilustre, e cuja perda terá contribuído para apressar-lhe a morte espiritual. Sim, dispensava esse favor do destino: aquele em cujas veias corria o sangue dos truculentos Feitosas de Inhamuns, no Ceará, e em quem a violência dos ímpetos se transmutara em energia para o culto da Ciência e a prática do bem, para o estoicismo, arrostaria a morte estoicamente sereno, como tantas e tantas vezes arrostara a vida.

19/12/1961