Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Ataulfo de Paiva > Ataulfo de Paiva

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Medeiros e Albuquerque

RESPOSTA DO SR. MEDEIROS E ALBUQUERQUE

MEU ilustre Confrade:

Quando Academia tanto insiste para que se realizem com solenidade as recepções dos seus novos membros, não é apenas para reunir nos seus salões a fina flor da sociedade brasileira. Por si só, isso já não seria pouco. Mas o que nós visamos é ainda mais alto, ainda mais nobre: o desejo de prestarmos, pela boca do novo acadêmico, a homenagem que merece o companheiro, de que ele vem ocupar o lugar.

Essa homenagem, vós a acabais de prestar de modo brilhante.
Não me consta que a obra de Artur Orlando tenha jamais sido apre¬cia¬da, no seu conjunto e em cada uma de suas partes, com tão larga compreensão do seu valor como vós acabais de fazê-lo.
Quem, entretanto, não a conhecer – dificilmente avaliará quanto a tarefa era árdua, porque, como bem o demonstrastes, Artur Orlando foi um espírito imensamente curioso, que tocou em variadíssimos assuntos. Não era, portanto, fácil acompanhá-lo através das suas produções.

Mas se é devida justiça a quem tão justo se mostrou com o antecessor desaparecido, é preciso não esquecer que, na vossa evocação do escritor pernambucano, houve também uma parte de malícia.
E diante dela convém lembrar que quem com ferro fere, com ferro será ferido. Para vingar o meu saudoso confrade, eu retribuirei elogio com elogio, malícia com malícia.

Artur Orlando foi da geração que contribuiu para divulgar entre nós os ensinamentos da teoria da evolução. Os que assim fizeram sua educação intelectual chegam a um curioso estado de espírito: diante de cada fenômeno, de cada problema, o que primeiro lhes ocorre é ir procurar-lhe a origem, para segui-la passo a passo acompanhando-lhe a evolução até os nossos dias.

Ora, da cerimônia em que nos achamos hoje empenhados a origem é conhecida: é um rito de iniciação. Equivale a um batismo, equivale às sole¬nidades com que na Maçonaria se recebem os novos adeptos, equivale tam¬bém a esses pequenos suplícios pelos quais nos colégios se fazem passar os calouros. Em todos esses casos há uma verdadeira amizade pelos que desejam fazer parte da comunidade; mas, não obstante isso, quase sempre se lhes infligem à entrada algumas pequenas maldades.

Serei, para receber-vos, um veterano afetuoso; mas apesar de tudo não esquecerei que seria um mau precedente permitir a um novo membro da nossa maçonaria literária a entrada sem que pagasse o tributo da iniciação.

Vossa eleição para a Academia foi das mais discutidas. Das mais discu¬tidas fora daqui. Ao passo que entre nós se chegava facilmente à unanimidade e que nenhum outro candidato se apresentava para disputar-vos o lugar, a discussão de vossos títulos continuava, fora deste recinto, com vivacidade e aspereza.

Por quê? Porque fizestes uma reputação de dandismo. Fostes um dos precursores da elegância masculina em nossa sociedade. E os precursores nunca são bem recebidos.
Hoje já se admite perfeitamente que a elegância e o apuro das roupas não são, de modo algum, incompatíveis com o mais alto exercício da inteligência.

A história conhece o nome de vários escritores célebres que nunca esqueceram o esmero de trajar. Esse foi o caso de Byron, esse foi o caso de Barbey d’Aurevilly e o de muitos outros.
No livro recente de Alfredo Pujol ele transcreve de uma obra de Bu¬lhão Pato um trecho em que esse conta visita feita por Garrett a Alexandre Herculano. Garrett, que ia passar apenas dias hospedado por Herculano, mandou adiante a sua bagagem e o estojo de toilette. “Esta peça, diz o trecho citado de Bulhão Pato, podia parecer uma caixa de instrumentos cirúrgicos e juntamente uma botica portátil, tal a quantidade de ferros cortantes em forma de canivetes, escalpelos e bisturis; as tesouras de todas as dimensões, as pinças, as esponjas de todos os tamanhos, e a enorme quantidade de frascos, que encerravam finíssimas essências, combinadas pelos mais imaginosos e mais famosos perfumistas de Londres e Paris.” Alexandre Herculano, vendo aberto aquele arsenal, voltou-se para Bulhão Pato: “Ora veja o meu amigo de quantas coisas pode precisar um homem neste mundo!”

A exclamação era nitidamente zombeteira. E se Herculano houvesse feito o inventário do resto da bagagem de Garrett, teria nela decerto encon¬tra¬do coisas ainda mais curiosas.
Nesse tempo, os trajos de cerimônias comportavam quase sempre para os homens o uso do que se chamava o “calção e meia”. Os calções iam apenas até abaixo do joelho, apertados aí por uma fivela; daí até os sapatos rasos, o que havia eram longas meias. A barriga da perna ficava, portanto, com a forma bem visível. Dizia-se de Garrett que, não tendo uma plástica impecável, usava barrigas de pernas postiças.

O caso faz sorrir. Mas todo aquele arsenal de pinças, tesouras e per¬fumes e todos os enchimentos de algodão para pernas mal feitas não impe¬diram Garrett de ser um dos maiores escritores da língua portuguesa, um chefe de escola literária ativo e brilhantíssimo e até um homem político de idéias adiantadas.

Vão longe os tempos em que São Jerônimo considerava as roupas sórdidas indício de pureza de espírito: Sordidæ vestes candidæ mentis indicia sunt.
O nosso povo e aquele de que descendemos nunca foram, entretanto, muito dados a apuros de vestuário e de cortesia. Há disso em nossa língua um depoimento interessante na acepção do adjetivo “francês”. Francês, diz o di¬cionário, pode também significar “hipócrita, falso”. Essa acepção, vós o sabeis, não entrou para a língua porque se tenha notado nos filhos da França, como características habituais, tão baixas qualidades. Ela veio simplesmente porque foram sempre os franceses os mais polidos, os mais corteses, os mais esmerados no trato social. Isso os fazia suspeitos à rude gente, que da civili¬dade via apenas a parte de natural fingimento, que todos somos muitas vezes obrigados a manifestar, embora freqüentemente com os mais nobres intuitos, – os intuitos de vencer as nossas injustas antipatias e de fazer passar as conve¬niências dos outros em detrimento das nossas comodidades.

De tal forma, esse termo de aparência injuriosa é, em última análise, um elogio. Mas ele prova que as nossas tradições não são muito afeitas ao culto da galantaria no trajar e no tratar.
Há também uma certa simpatia na nossa língua quando se exalta quem é um “casca-grossa”. Deixa-se um pouco entender que por baixo das cascas grossas é mais natural encontrar a probidade, a seriedade, as virtudes boas e sólidas.

Nada de grandes elegâncias. Nada de vestuários muito finos.
Ora, do ponto de vista da indumentária vós fazeis o mais absoluto contraste com o vosso antecessor. Ele era integralmente um filósofo, nas várias acepções que a esse vocábulo empresta o dicionário: amigo da sabedoria e indiferente às convenções do mundo. Seu estojo de toilette devia segura¬mente ser muito menor que o de Garrett. Vendo-o, talvez Herculano pudesse exclamar: “Ora veja o meu amigo, como um homem se pode contentar com pouca coisa neste mundo!”
Mas desse alto espírito, que sempre se mostrou de uma curiosidade imensa, ao mesmo tempo que desdenhava as elegâncias do trajar, vós descobristes um aspecto curioso e insuspeitado: a sua preocupação feminina.

Vede, porém, como os maliciosos muitas vezes se deixam trair. Nós todos tínhamos lido esses mesmos livros que vós percorrestes. Por que nos escapara o que vos pareceu tão evidente?
É que nenhuma cena é a mesma para espíritos diversos. Cada um, nos espetáculos que vê, nota de preferência o que mais o preocupa. Por isso, se fizestes, de fato, a demonstração bem evidente de que Artur Orlando tinha, sob a aparência do seu alheamento a essas coisas, a obsessão do que Goethe chamou o “eterno feminino” – mostrastes, na sutileza com que descobristes esse odor di femina, como e quanto vosso olfato está educado para sentir-lhe mesmo os mais leves rastos...
Os maliciosos, os que conhecem bem o valor de certos pecados, vigiam cuidadosamente as suas expressões e nada deixam transparecer dos desígnios que buscam ocultar, mas que satisfazem largamente. São os que não os satisfazem e os recalcam sistematicamente, os que mais revelam esses desejos sopitados. Eles ficam atirados para as masmorras do Inconsciente. Desde, porém, que a consciência se distrai, fazem como os prisioneiros que procuram, às ocultas, se comunicar com os transeuntes que passam.

E se isso é assim para todos os sentimentos recalcados, mais fortemente o é para o domínio do amor, sob as suas variadíssimas formas.
Não faltaram críticos para observar como se traiu esse sentimento no nosso grande e puríssimo Machado de Assis.

Sua vida foi sempre um modelo de correção e de pureza. No entanto, vós sabeis como ele revelou em cem passagens diversas o seu atrativo pelo eterno feminino, descrevendo os braços das mulheres.
Os braços... Ele nunca foi muito mais longe. Mas os braços bastam e sobram. Cuvier gabava-se de, por um simples osso, ser capaz de reconstruir mesmo o esqueleto de animais desaparecidos. Musset dizia que pelo pé se adivinha a perna: “et quand on voit le pied la jambe se devine”. Em que adivinhações pensava Machado de Assis, demorando-se tão longamente, tão voluptuosamente a descrever os braços de suas heroínas? O certo é que nunca ele os esqueceu na enumeração das belezas de todas as que criou.

As linhas do papel em que nós escrevemos são às vezes como grades de prisão. Através dessa grade, certos instintos que nós queremos prender e esconder metem a cabeça e gritam cá para fora que estão encarcerados... Os mais acomodados espiam apenas melancolicamente. E os críticos maliciosos os enxergam e apontam...
Esse Artur Orlando que nos revelastes era, no ponto que a vossa malícia descobriu, o continuador da psicologia dos santos eremitas, cuja solidão castíssima se povoava de alucinações lúbricas como as de Santo Antão.

Pondo em relevo um aspecto tão insuspeitado da obra do vosso antecessor, é bem possível procurareis fazer crer que, se o contraste era grande entre a vossa elegância habitual e o seu desprendimento de todas as munda¬ni¬dades, ao menos havia uma preocupação em que os dois espíritos se aproxi¬mavam. Mas é absolutamente uma ilusão. Aquela preocupação aparece de vez em quando nos escritos de Artur Orlando como uma inadvertência de seu espírito, que voltado constantemente para outros assuntos, nem sempre conseguiu impedir que o mais profundo dos instintos humanos escondesse a sua existência.

Aquela preocupação não aparece jamais nos vossos escritos exatamente pelo motivo contrário ao que traiu Artur Orlando.
Quem quer que seja, daqui a muitos, muitos anos, o vosso sucessor – eu o quero deixar prevenido de que não se fie nas aparências. O que menos se preocupou com o “eterno feminino”, foi o que mais falou dele. O que mais com ele se preocupou – foi o que nada deixou escrito a tal respeito.
Mas esse sucessor remoto, cujo trabalho eu queria deixar aqui encaminhado, precisa dizer aos que então o ouvirem que vosso renome de elegância não parava no vestuário.
A elegância consiste em fazer todos os movimentos, ainda os mais penosos, com facilidade e graça, como se nada custassem. Não mostrar nem mesmo a preocupação de ocultar o esforço – porque isso já seria revelar a sua existência.

Vós transportastes essa norma de vida dos gestos mundanos para todos os demais domínios da vossa atividade. Graves missões vos têm sido impostas, mais graves ainda vós as tendes ido espontaneamente procurar. A todas, tendes, porém dado execução, como se fossem simples distrações, fáceis de empreender e levar a termo.
Nem sempre o grande público faz justiça aos que procedem assim.

Às vezes, nos circos, falsos atletas se exibem. Tomam halteres enormes, que aparecem ter um peso colossal, e para levantá-los contorcem-se, estufam visivelmente os músculos, mostram nas contrações da fisionomia que estão desenvolvendo um esforço digno de Hércules. E, no entanto, as grossas esferas desses halteres que parecem de ferro, são de pau ou de borracha.
O público se deixa iludir por todas essas demonstrações aparentes de força.
Há muito quem imite os falsos atletas. São, sobretudo, esses homens de letras que, com grandes intervalos, produzem umas coisinhas chochinhas, sem valor algum, mas a que muitos ligam grande importância, porque foram anunciadas com larga antecedência e porque os seus autores levaram tanto tempo a executá-las que eles são os primeiros a atribuir-lhes um mérito enorme. E o público diz também que, se tais obras pediram tanto esforço, elas devem realmente ser sublimes.

Vós sois da escola oposta. Sois da escola dos que procuram fazer grandes coisas, como se nada custassem – simplesmente – elegantemente. E os que não sabem apreciar o verdadeiro valor raciocinam, dizendo que, se elas foram feitas com tanta facilidade aparente, é porque, decerto, custaram pouco.

Quando pretor, tivestes ocasião de funcionar em um caso tristemente célebre. Pouco importa lembrá-lo, senão em um ponto. A lei faculta aos juízes dirigirem desde o princípio as investigações policiais. Deste modo, tudo se pode fazer com rapidez e unidade de vistas.
Nunca os juízes se aproveitam desse direito. Parece-lhes mais cômodo deixar que a polícia faça a primeira parte do processo, para que depois a revejam.
Vós usastes da autorização da lei, apressastes o processo, e em menos de dois meses ele estava julgado.

Pequeno fato; mas significativo.
Esse fato teve, aliás, uma grande repercussão na vossa vida. Era uma questão que não vale a pena recordar, mas na qual estavam envolvidas muitas crianças de um asilo que, por força mesmo do processo, ficavam, do dia para a noite, sem teto, sem abrigo.
Isso vos mostrou como a justiça – sobretudo a justiça criminal – é pouca coisa. Isso vos mostrou como ela é incompleta e iníqua.

Punir – é uma necessidade; mas uma necessidade abominável. Quase sempre as punições mais justas são, por certos lados, profundamente injustas. Não raro elas repercutem sobre terceiras pessoas absolutamente inocentes, e, enquanto o criminoso, privado embora da liberdade, tem ao menos alimento e abrigo, a mulher e os filhos pequenos são forçados a mendigar, – forçados, às vezes, a contingências mais tristes ainda...

Punir, sim; mas quando não for possível prevenir.
Desde que sentistes o que há de angustioso neste problema, vós vos dedicastes às questões de assistência.
Eu dou testemunho dos esforços incansáveis que fizestes para resolver ou ao menos para encaminhar a resolução delas.
A luta com a inércia administrativa é uma coisa tremenda. Não se encontra em parte alguma combate violento. Ao contrário. Mãos se estendem, cordiais, rostos se expandem risonhos; mas tudo fica na mesma. Há, decerto, nos domínios da burocracia, uma variedade de gás asfixiante, que ainda não foi empregado na guerra. E eu penso que, se no maior acesso de uma batalha um aeroplano deixasse cair sobre os exércitos em luta todos os papéis de uma Secretaria de Estado, os combatentes se separariam, prometendo que voltariam no dia imediato; voltariam mais tarde, voltariam depois... Porque a característica essencial da atmosfera burocrática é o adiamento indefinido mesmo das coisas mais urgentes. Tudo se retarda, tudo se procrastina.

Mas a vossa carreira não foi só feita com esse combate em prol dos institutos de assistência. Isso, aliás, já não seria pouco.
Todos sabem como é amplo entre nós o direito que se arrogam os litigantes vencidos de atacar os juízes que sentenciaram contra eles. Esse direito vai tão longe, que até os pareceres de comissões de Congresso usam dele. Usam dele os governos dos Estados, quando se vêem constrangidos a cumprir sentenças que os obrigam a certos pagamentos.
Demais, a primeira acusação que se faz ente nós a todos aqueles com quem não se está de inteiro acordo é a da desonestidade. Nisso se vai tão lon¬ge que quando a Academia publicar o seu dicionário espero que ela definirá assim a palavra ladrão: “Ladrão – termo corrente na imprensa brasileira que indica a pessoa com a qual se tem qualquer desacordo, por mínimo que seja, embora a probidade dela seja indiscutível.”

Ora, vós fostes juiz da Câmara Comercial de um tribunal, quando nele se estavam liquidando as loucuras de uma época de Bolsa. E, no entanto, caso assombroso, ninguém vos acusou!
Diz-se, às vezes, das pessoas excessivamente delgadas que são capazes de passar a seco entre as gotas da água da chuva. Foi essa proeza inverossímil que vós fizestes naquela época em que choviam os baldões mais impiedosos sobre toda a magistratura.
Subistes de pretor a juiz de direito, de juiz de direito a desembargador, sempre cercado de honras excepcionais.

Um dia, na Europa, anuncia-se um Congresso de Direito Internacional.
Pereceu-vos que seria útil levar-lhe uma comunicação, que honrasse nosso país. A comunicação teve um sucesso tão brilhante que vos nomearam vice-presidente desse Congresso. Houve, porém, um espanto quando, eleito, assomastes à mesa daquela soleníssima reunião, porque se esperava um velho, uma figura coberta de venerandas cãs...
Quando aqui chegastes, o Instituto dos Advogados vos agradeceu solenemente o serviço prestado. E quem estava à frente desse Instituto, por tantos títulos ilustres, não era precisamente um homem afeito a fórmulas de amabilidades e lisonja; era Bulhões Carvalho. A manifestação tinha, portanto, muito de excepcional.

Manifestação excepcional foi também a que vos fizeram vossos pares elegendo-vos, por unanimidade, presidente da Corte de Apelação. A regra era a antiguidade, regra até então invariavelmente seguida. No entanto, momento veio em que vossos pares, os que vos conhecem de mais perto, quebraram essa regra em vosso favor e quem proclamou a justiça dessa exceção foi exatamente o decano do vosso tribunal, também ele uma dessas figuras austeras capazes de honrar qualquer magistratura: o desembargador Tavares Bastos.

Tratava-se de executar uma nova reforma judiciária. Todos sabem como são sempre difíceis esses períodos de transição, em que se pede ao mes¬mo tempo um conhecimento perfeito das praxes antigas e um conhecimento não menos perfeito das inovações. É necessário modificar tudo o que a lei modificou, mas sem ir além, sem ficar aquém. Pede-se ciência e tato, memória do passado e capacidade de adaptação às normas do futuro.

Foi tudo isso que a mais alta magistratura do Distrito Federal reco¬nheceu em vós.
Em certa ocasião aqui se instituiu uma conferência internacional de jurisconsultos. Publicastes, quando ela se abriu, um trabalho notável, fixando-lhe o programa, apontando-lhe os ideais a realizar.
Quando o mais ardente dos membros estrangeiros que nela tomaram parte, jurisconsulto notabilíssimo, quis responder às objeções opostas às suas doutrinas, transpôs o recinto da conferência e foi a vós que se dirigiu, pare¬cen¬do-lhe que ninguém melhor expusera os intuitos daquela reunião.
Assim, se o Estrangeiro é realmente a Posteridade em vida, vós tivestes várias vezes a consagração do Estrangeiro, dentro e fora de vossa pátria.

Podeis disso ter um orgulho muito legítimo.
Quando manifestastes o desejo de ser um dos nossos, houve quem, reconhecendo embora todos os vossos serviços, perguntasse apenas: “Mas, afinal, ele é escritor?”
Foi então que vos resolvestes a reunir em volume vossos trabalhos. E viu-se, quando esse volume apareceu, que, com a vossa habitual simplicidade e elegância, tínheis publicado muito mais do que era preciso para vos sagrar como homem de letras. Tínheis publicado tudo isso sem chamar para o caso a atenção do público.

Cada assunto tem a sua forma de expressão. Os assuntos austeros, de que sempre vos ocupastes, pediam clareza, singeleza, vigor de argumentação. Tudo isso há na forma adequada que destes aos vossos excelentes escritos. E desde que eles apareceram, ninguém mais entre nós tem o direito de tratar dos assuntos de que tratastes sem estudar o que dissestes.
Eu não sei se vós tendes muitos inimigos. Deveis ter. É uma honra que mereceis. Um homem sem inimigos é, segundo a velha comparação árabe, como uma árvore sem frutos, a que ninguém, por isso mesmo, atira pedras.

É preciso ter amigos. É preciso saber mostrar a capacidade de repartir com outros dores e alegrias. Mas é também preciso ter inimigos. Eles nos estimulam e, quando são de certa ordem, eles nos enchem de orgulho. Faz tanto prazer mostrar os bons amigos como os inimigos rancorosos.
Mas se os vossos têm um pouco de boa-fé, eles devem, afinal de contas, reconhecer que é preciso ter um certo mérito, muito acima do comum, para receber as homenagens que recebestes no estrangeiro e as que recebestes entre nós de vossos pares.

Ser um juiz inatacável e inatacadamente honesto, ser um juiz ao mesmo tempo severo na aplicação da lei e votado carinhosamente às questões de beneficência – o homem que sabe punir, mas que sabe, melhor ainda, proteger, e amparar os fracos – ser um talento e ser um caráter... Tudo isso se pode dizer de vós.
De como é grande a onda de estima que vos cerca tivestes a prova brilhante em um episódio ocorrido não há muitos anos nesta cidade. E porque a evocação dele envolve a lembrança da pessoa a quem mais adorastes, essa evocação vos será, decerto, grata.
Os floricultores desta cidade, quando se espera alguma grande festa ou algum luto, se preparam para fornecer o que os seus clientes possam precisar.

Mas certo dia morreu nesta cidade uma velhinha. Era uma velhinha co¬nhecida de poucos, que vivia uma vida retirada e simples, uma velhinha, para tudo dizer em duas palavras, sem importância.
O comércio de flores da capital de uma terra onde as flores são tão abundantes, não achou que o caso pudesse interessá-lo grandemente.

Mas da morta desse dia vós dizíeis, repetindo o verso suavíssimo de Gonçalves Crespo:

és tu, doce velhinha, ó minha mãe.

E como mesmo os que não a conheciam vos conheciam e prezavam, – como eles se sentiam devedores a ela de vos ter formado o coração, – como todos sabiam o carinho e veneração de que a vivíeis cercando, não houve quem não lhe quisesse enviar ao menos algumas flores. E ainda se estava às primeiras horas do dia e o comércio de flores, tomado de surpresa, suspendia inteiramente as suas operações. Os estabelecimentos de floricultura, fatigados de se desculparem com os clientes retardatários, cortavam as comunicações telefônicas, por inúteis, diante do vazio que neles havia.

Na sua estranheza, este episódio, tão simples, me parece eloqüente e comovedor. Ver em uma cidade, tão grande, tão cheia de flores, – que as flores pareceram insuficientes para render uma homenagem – que vos era em grande parte feita, provava bem como era grande a estima que vos cercava.

Que vos cercava – e que vos cerca ainda, porque foi de vos dar boas-vindas de admiração e de afeição que os vossos confrades me delegaram a incumbência.