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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ARTUR ORLANDO

Eros, lê-se no Banquete, de Platão, fundador da Academia grega, é um poeta tão sábio que de nós todos faz poetas. Cada um de nós, uma vez tocado pelo deus, se torna poeta por mais estranho que tenha sido ao comércio das Musas.

O patrono da cadeira que me destes a honra de ocupar, Luís José Junqueira Freire, foi poeta tão inspirado e monge tão amoroso, que um profano, ao ler as Inspirações do Claustro, sente desejos de tomar a lira de Apolo e buscar um mosteiro bem deserto e solitário, não para entregar o espírito à meditação e o corpo à penitência, mas para entoar hinos de louvor a Orfeu, cuja cabeça, decepada e atirada ao Ebro pelas bacantes invejosas do seu eterno amor a Eurídice, não cessava de repetir por entre as ondas revoltas o nome querido.

O amor que no mundo psíquico é como no mundo físico o éter, que apesar da descontinuidade dos seres não cessa de manter o Universo na mais estreita solidariedade; o amor, força mágica que prende, subjuga e alucina, torna a economia da natureza pródiga, fantasticamente pródiga; semeando flores e frutos por toda parte, ornando de atrativos e esplendores o ninho dos pássaros e a câmara dos noivos; o amor que inspirou Miguel Ângelo, Corrégio, Rafael, iluminou a cabeça de Moisés no Sinai, do Dante no Inferno, de Milton, no Paraíso, com Dido criou a Eneida, com Catarina, os Lusíadas, com Leonardo da Vinci o retrato de Mona Lisa, ainda hoje admirado como encarnação da beleza e graça feminina, da glória de Francesco del Giocondo passando à imortalidade envolto na beleza da mulher, e atestado da ventura de um artista genial, que levou quatro anos cheios de músicas e cânticos, a desenhar um sorriso de mulher que se não sabe bem a quem é dirigido, se ao pintor, se ao marido: o amor que atirou o indomável Hércules aos pés de Onfália, absolveu Madalena, a pecadora, aos olhos do Cristo, e transformou o corpo de mármore de Galatéia em carne rósea e perfumada, para apaixonar Pigmalião de um bloco de pedra, – o amor foi eixo, sobre o qual girou a vida inteira de Junqueira Freire, o pólo magnético de sua febril atividade, a fonte fecunda de sua sublime inspiração.

Aos 17 anos de idade, quando ainda não se chamava Frei Luís de Santa Escolástica, o enamorado poeta murmurava baixinho aos ouvidos de sua superadorada Sofia:

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas,
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.
Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta
Murmurada em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz – nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.

Fala-me só coo revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto,
Somente pros meus beijos.

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas,
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.

Quis, porém, o destina que viesse pertencer a outrem aquela que era o seu ideal triunfante, aquela que lhe havia de dar fama, glória, imortalidade.

O amor tem as suas razões, que a lógica não compreende, como o destino tem as suas ironias, que a razão não explica.

Entre um e outro caminho qual o rumo a seguir?
Banir do espírito a imagem aureolada da Circe, por cuja magia o canto das aves tinha mais doçura, a luz das estrelas mais brilho, a alma das flores mais perfume?
Impossível, pensando na ideal criatura, que era como uma hosana, uma aleluia, uma ação de graças entre a Terra e o Céu.
Suicidar-se?

“Era boa ocasião para morrer, escreve Junqueira Freire, em sua autobiografia. O padre não me acompanharia o enterro, nem a Igreja me abriria o chão... Em recompensa disso eu teria uma oração fervorosa de minha mãe, que sonharia comigo no meio da noite; e acordaria minha irmã inocente para rezar com ela. Talvez às mesmas horas uma outra mulher se alevantasse do tálamo, erguendo-se devagar para não acordar alguém, e rezasse também por mim. Seria ainda crime a sua oração? Seria o seu fervor um sacrilégio? Seria o seu pranto um adultério?”

Não é o lugar próprio, nem a ocasião oportuna, para resolver tão intrincado e melindroso problema de alta metafísica do amor, e ainda menos para discutir se o homem tem ou não o direito de, por suas próprias mãos, quebrar o laço de solidariedade, que mantém com a vida universal.
Lembrarei tão-somente que Homero, cego, não reconhecendo nas formosos jardins da Grécia as rosas senão pelos espinhos, e Milton, também cego, não distinguindo na família a mulher e a filha senão pela voz, jamais pensaram em suicidar-se, e respeitaram sempre os direitos da morte, que fez sua entrada nos domínios da vida apoteoticamente, aclamada pela própria vida.

Reagindo contra o suicídio como o sol reage contra a treva, lembrou-se Junqueira Freire desses monges da Idade Média, que simultaneamente recitavam os salmos da Bíblia e cantavam as belezas da natureza; desses anacoretas que viam o reino de Deus menos na contemplação do que na piedade; desses eremitas, que não se desligavam do mundo, de suas afeições e de seus interesses, senão para trabalharem mais eficazmente pela sociedade; desses cenobitas que convertiam almas as mesmo tempo que lavravam campos, praticavam a caça e a pesca, teciam panos, tapetes e sedas, quando se não faziam pintores, escultores, cinzeladores; desses missionários, que buscavam as regiões inacessíveis, afrontando perigo, torturas e martírios, para levarem aos desprezados da fortuna, aos enjeitados da sorte o conforto da esperança ou a consolação da graça divina.

“É uma história nova, diz Littré, aquela em que os exércitos são monges, os heróis santos, as fortalezas conventos, as vitórias conversões.”
Encantado por tão resplandecente evocação histórica, Jun¬queira Freire deixou a casa paterna na manhã de 9 de fevereiro de 1851, e foi internar-se no mosteiro de São Bento, acreditando ser um convento.

Sou cristão outra vez, sou teu. Venceste!
Quero arrojar-me a dédalos de trevas,
A dédalos de luz. Precisam homens
Desses mistérios, que a razão fascinam.
Ainda que depois se cerre em noite,
A face de um crepúsculo me agrada.
Templo, abismo de Deus, abre-me o seio!

Contavam os antigos monges de Saint-Savin que um dos seus confrades, ouvindo cantar um pássaro, sentiu que sua alma se desprendia de seu peito para se ir confundir com o canto do pássaro e se evolar em ondas de harmonia para o céu. Também Junqueira Freire esperava encontrar na vida monacal uma ascensão para o eterno, mas a desilusão não se fez esperar:

Eu também antevi dias dourados
Nesse dia fatal;
Eu também, como tu, sonhei contente
Uma ventura igual.

Iludimo-nos todos! – Concebemos
Um paraíso eterno:
E quando nele sôfrego tocamos,
Achamos um inferno

Por quê?
No momento em que Junqueira Freire tomou o hábito de frade, estava desempenhado o papel finalístico, finda a missão messiânica das ordens religiosas no Brasil.

“Infelizes degradados, exclama Frei Francisco de S. Carlos, que ficastes chorando nas praias de Santa Cruz quando Cabral seguiu sua derrota para as Índias, adoçai um pouco de vossa mágoa. Sabei que aqueles bárbaros, a cuja voracidade ficáveis expostos, estão civilizados, que aquelas matas melancólicas, que tiranizavam vossos olhos, já se transformaram em campanhas risonhas, em searas frutíferas, em sementeiras floridas; que do seio daqueles ermos emaranhados, que denegriam os vossos corações, têm nascido vilas e cidades florescentes.”

Com a catequese, conversão e evangelização dos índios, conseguiram Anchieta e seus companheiros civilizar um país de selvagens por meio do tão simples quão grandioso plano de autocolonização depois de malogrado o sistema que a metrópole havia adotado.

Começaram aprendendo o tupi, em que se fizeram gramáticos, e, senhores da língua indígena, se embrenharam nas matas, não como caçadores perseguindo a caça, mas como mensageiros da paz, arriscando muitas vezes a vida para salvarem as vítimas votadas aos horripilantes banquetes da antropofagia; subiram o cabeço dos montes, donde dominaram o planalto; abriram caminho para os sertões por entre as lianas e os cipós emaranhados; cobriram os campos de pastos e gados, de cereais, e, em poucas palavras, transformaram um Brasil selvagem, povoado de animais bravios e de feras humanas, em um Brasil civilizado, venturoso, senhor do seu próprio destino.

Depois dos assinalados serviços que ao lado da Companhia de Jesus prestaram também as outras ordens religiosas, os beneditinos, os carmelitas e os franciscanos, quer nas ciências, quer nas letras, quer nas artes, que restava então a um monge senão rogar muito por aqueles que não podem ou não sabem suplicar?

Entretanto, por mais que Montalembert tenha procurado convencer que o equilíbrio entre o céu e a terra está na súplica, é com ironia que Junqueira Freire se refere à prece:
“Feliz quem tem somente o pensamento da devota. Descansa a vida nas mãos do vigário, e adormece apalpando seu rosário.”

Convencido de que havia passado o tempo das clausuras, de que os mosteiros baixos, pesados, sombrios, já não representavam senão evocações simbólicas de outras eras, sendo substituídos pelas catedrais, cuja arquitetura em estilo gótico, com suas flechas lançadas para o céu e os seus arcos quebrados em forma de mãos postas para a prece, bem está indicando serem elas os verdadeiros templos da súplica, Junqueira Freire requereu sua secularização, e a 3 de novembro de 1854 voltava para a companhia de sua mãe e de sua irmã na pitoresca povoação da Barra, onde concluiu seu imortal poema de amor – As Inspirações do Claustro, obra-prima que o sagrará o mais livre pensador de nossos poetas-monges, e o mais amoroso místico de nossos poetas-céticos.

Deserta, ó gênio do covil imundo,
Onde o leão dos vícios se alaparda.
Ah! esta cela, onde a indolência dorme,
Não pode, não, ser tua!
...............................................................
Um vate, um vate coligou-te aos selos,
Tu deste-lhe o perfume de teus lábios.
O nó do abraço te estreitou seu corpo,
O mais foi um poema.

Platão, o mais filósofo dos poetas e o mais poeta dos filósofos, quando resolveu fundar a sua Academia a fim de continuar a obra de Sócrates convidou a mocidade doirada de Atenas para um festim em sua casa, onde, afirmam os cronistas da época, costumavam reunir-se as Musas e as Graças, acompanhadas de Eros.

O festim custou uma fortuna, dançou-se e cantou-se a noite inteira, e, quando chegou a ocasião de agradecer aos convivas, disse o anfitrião: “Este festim é o último que vos dou. Resigno os prazeres da vida para me consagrar à filosofia de Sócrates. Abandonarei mesmo a poesia, não farei mais versos e vou queimar os que possuo.” Tomou um archote e, caminhando para e interior da casa, lançou fogo ao arquivo, pronunciando estas palavras: “Vulcano, vem; Platão precisa de ti.”

De modo bem diverso se fundou a Academia Brasileira de Letras: poetas, críticos e pensadores se reuniram e formaram um núcleo, que servisse de órgão ao desenvolvimento da Psique nacional.
Assim se explica a fisionomia especial desta associação, onde maior é o número dos poetas que o dos críticos, e maior o número dos críticos que o dos pensadores.

Também em Alexandria, onde ser homem de letras constituía uma profissão oficial, e a literatura tornava-se uma instituição do Estado, a Academia era um atelier intelectual, em que fraternizavam os mais belos espíritos do tempo, críticos, eruditos, sábios e, sobretudo, poetas, muitos poetas, como dá claramente a entender o nome que tinha, de Museu, “Palácio das Musas”, no qual, além de jardins zoológicos, havia laboratórios e observatórios, salões de recepção e conversação, e uma famosa biblioteca de setecentos mil manuscritos, freqüentada por Lícofron, o inventor do anagrama, e pelo iniciador do madrigal, Calímaco, que fulminou estrofes cheias de indignação contra os ferreiros por terem forjado a tesoura com que a rainha Berenice teve de cortar sua encantadora cabeleira.

É que a poesia é a mais elevada expressão da solidariedade humana.
No poeta, o que vale dizer no artista, pois todo artista é um poeta, a vida social atinge a seu máximo de intensidade e expansão.

Depois, vem a crítica, instrumento de que se serve o homem para colocar socialmente os valores intelectuais, os produtos da vida espiritual de um povo.
O crítico não tem que fazer filosofia, nem história, nem descrição pitoresca da vida íntima dos escritores; mas acumular dados e documentos para mostrar o que uma descoberta científica, uma concepção religiosa, uma criação artística, tem de socialmente útil, fecundo, sugestivo.

Finalmente, é a ciência, cujo papel não se pode dizer que seja “reduzir o ideal conquistando a verdade sobre o desconhecido”.
Não é à custa do ignoto que se alimenta o ideal; pelo contrário, este pode ser comparado a uma esfera luminosa cujos raios aumentam com o brilho do foco.

Em todos os tempos tem havido sábios e poetas; os primeiros são naturezas calmas, serenas, a quem pouco importam as tristezas e as alegrias do mundo, por viverem convencidos de que não está no poder de ninguém que as coisas sejam de outro modo; os segundos são naturezas afetivas, vibrantes, sempre em luta com o determinismo das leis naturais e em busca de um ideal pretendido e aspirado.
Aqueles brilham como estrelas nos horizontes do pensamento, estes guiam como bússolas no mar revolto das paixões.

O Conselheiro Franklin Américo de Meneses Dória, Barão de Loreto, sócio fundador da Academia Brasileira de Letras, foi uma destas naturezas privilegiadas, que têm a suprema ventura de conglobar em seu espírito o saber positivo de um Aristóteles e a inspiração poética de um Platão.
Digo suprema ventura, porque a poesia não é senão a fonte de Castália, em que a ciência refloresce, e a ciência deve terminar pela poesia como a planta termina pela flor.

É bem sabida a reputação de que goza a individualidade do Barão de Loreto na história da literatura brasileira, além do lugar à parte que ocupa no coração de todos os membros desta Academia, para que eu tenha necessidade de ocupar-me de semelhante assunto.
Sobre a sua brilhante carreira política, forense e professoral existem trabalhos definitivos, aos quais seria fazer injúria juntar qualquer traço, fosse o de um Apeles, em relação ao espírito superior, que desde os primeiros passos na vida soube impor-se à admiração e estima de seus pares e conquistar as simpatias e sufrágios de seus concidadãos.

Não adiantaríamos uma linha, se afirmássemos que no Direito não foi um simples jurista, mas um justo, com um alevantado ideal de justiça, espécie de sonho divino a que se votou com toda a poesia de sua alma; que na cátedra sua concepção do ensino foi mui diversa da do magister dixit, pensando o eminente professor que em matéria de instrução muitas vezes vale mais a interrogação do que a resposta, pois aquela provoca o pensamento, excita a reflexão, abre novos horizontes, enquanto esta fecha o círculo das investigações, corta o vôo do espírito para as regiões a descobrir, mata a curiosidade científica, alma do ensino; que na política desempenhou cargos importantíssimos, por três vezes foi nomeado presidente de Província, eleito deputado geral em várias legislaturas, e, chamado aos conselhos da Coroa, se revelou um consumado estadista.

Todos sabem que em política o Barão de Loreto foi um corajoso:
“Ser corajoso, escreve Júlio Delvaille, é afirmar a superioridade de uma ordem ideal sobre uma ordem material, é desprezar o fato que se impõe à experiência sensível, e lhe preferir o possível, que se julga melhor; é colocar-se acima das realidades do meio e agir como se o meio não existisse. O soldado que vai ao encontro das balas inimigas é corajoso, porque reconhece a superioridade da idéia de pátria, idéia toda moral vis-à-vis dos males reais, que ele corre na peleja. Mas se faria mal em pensar que não há senão coragem física. Também se é corajoso, quando se luta por uma idéia, uma verdade, um direito, contra a oposição toda animal das paixões da multidão, e se prefere a afirmação do que deve ser ao prazer imediato da tranqüilidade, à satisfação do momento.”

Sem ser um revoltado contra a sociedade, o Barão de Loreto, em sua vida de homem público, afirmou sempre esta bravura moral que faz do indivíduo sua própria lei, e, sem constituir-se um corte¬são do povo, soube adorá-lo e lhe profetizar a vitória definitiva.

O povo é como o oceano
Se erguendo livre do chão.
Majestoso e soberano
Como a cruz da Redenção:
É um gigante esforçado
A grandes coisas fadado,
Com direito a todo o bem:
É dos séculos o vulto,
Que mais nos merece culto,
Que irá dos sec’los além.
........................................
Como a mãe espera o filho
Que pra longe se ausentou;
Como o vale espera o brilho
Da lua que o prateou;
Como o justo espera a morte,
O nauta as brisas do norte,
Para a viagem seguir;
Assim o povo humilhado
Espera longínquo brado,
Espera a luz do porvir.

Então, quando o proletário
Olhar pro céu e sorrir,
E o esfarrapado sudário,
Ao chão lançando, cuspir;
Quando a estátua preciosa
A pedra misteriosa
Para sempre derribar,
Silêncio! – triunfa o povo!
Abriu-se-lhe um mundo novo,
Ninguém se deve queixar.

Ferido algumas vezes pelas paixões e ódios partidários, sendo uma ocasião anulado o seu diploma de deputado geral, e outra despojado de sua cadeira de professor, a adversidade não lhe fez senão apurar ainda mais o civismo.
Mais do que jurista, crítico, estadista, o Barão de Loreto foi poeta inspirado, com as cordas da lira bem afinadas para fazer vibrar a natureza inteira.
Recitarei apenas as estâncias finais do “Sol nascente”:

Quão belo é o sol nascente! Ele afugenta
Do ar a cerração grossa e cinzenta,
D’alma a tristeza e os pensamentos vis;
Aos homens todos ao labor convida;
E dá força, e vigor, e alento, e vida
Ao que é desgraçado, ao que é feliz.
Ao mendigo, que fina-se, consola
Com a promessa de abundante esmola,
Ou de algum protetor bom, liberal;
Ao pobre manda um raio de ventura;
Ao órfão, desvalida criatura,
Faz sonhar doce afago maternal.

Ele diz ao que é forte: Haja celmência!
Ao fraco: – Mais um dia, paciência!
Aquele que lamenta-se: – Esperai!
Aos tristes ele diz: – Sede contentes!
Ao meu influxo borbulhai, sementes!
Preciosas idéias, borbulhai!

Ele diz ao poeta: – Alevantai-vos!
Dos grandes pensamentos inspirai-vos!
Ide, correi, correi as multidões!
A fé levai-lhes no queimar dos hinos,
Como outrora os apóstolos divinos
Levaram graça e luz a mil nações.

Aos lábios todos ele diz: – Sorri-vos!
A toda flor e coração: – Abri-vos!
Lançai perfumes, transbordei de amor!
Para tudo o que nasce e vive e sente
É belo, sempre belo o sol nascente,
Reverberando aos pés do Criador!

Bem se vê que não é inferior à bela peça, publicada por Sully-Prudhomme como manifesto da poesia científica:

Em régio tédio imerso, o grande Sol fecundo
Arde no ermo dos céus. À constante influência
Dos raios que ele expede e recolhe, o profundo
Coro dos astros rola em remota cadência.

Alto nem baixo está, mas no abismo suspenso;
De foco algum recebe o fogo que irradia;
Sem descer nem subir o seu olhar imenso
Derrama sobre o mundo a força e a alegria.

Rutilante, e de tanto esplendor invisível,
As searas produz, que as raças alimenta;
Mas não deixa habitar seu orbe inacessível
Dos famintos mortais a horda turbulenta.

Dos negros globos, que de púrpura vestindo,
Em silêncio ele guia aos páramos azuis,
A Terra submissa, enquanto o vai seguindo,
Curva o seio amoroso às carícias da luz.

Em seu eixo girando, ela ao Sol oferece
Seu corpo e sua face, onde pulula a vida;
Passam mares, vergéis; cada qual que aparece,
Toma um banho de luz, caminhando em seguida.

Mas os homens também, sobre a terra dispersos,
Presos ao chão natal somem-se ou aparecem;
Quando uns pela manhã surgem do sono emersos,
Entre as sombras da noite os outros adormecem.

Ah! os filhos de Hélade, os olhos entreabrindo,
Ao ver surgir radiante Apolo no oriente,
Com seus corcéis de fogo o carro conduzindo,
Salve! exclamavam, salve! ó Deus onipotente.

Hoje gritamos nós: salve! Infinito ingente,
Todo que a um tempo é padre, altar e divindade!
Força oculta que prende a cada um ente outro ente,
Ao Sol ligando a Terra e à Terra a Humanidade.

Para nós já rasgou-se o véu maravilhoso,
Que do mundo real só mostrava a aparência,
As esperanças vãs de eterno e puro gozo
Estão-se esboroando aos golpes da ciência.

Sem colunas de apoio, o céu, mais firme agora,
Despe o velho burel da mentira, e descobre
A impotência da fé, com que se impunha outrora:
E uma beleza nova o mundo inteiro cobre. 

Mas a poesia, em que pese a Sully-Prudhomme, não tem que ser científica, nem realista, nem satânica, nem simbólica, nem impressionista, nem parnasiana; basta que seja social no sentido não somente de ser um produto da sociedade no seio da qual nasce, mas ainda no de constituir uma sublimação da sociedade, uma criação de futuro, que vai além do meio atual.

Social é a poesia como social é a prosa, social o estilo, social a crítica, social a religião, sociais as artes, sociais as ciências, social a Física estudando as relações intermoleculares, social a Química pesquisando as relações interatômicas, social a Biologia investigando as relações intercelulares, social o éter, social a consciência, social o universo, social o próprio movimento.
 
Social é o éter, porque, diferenciando-se em partículas atômicas, nem por isso essas deixam de fazer parte do todo, ao mesmo tempo uno e múltiplo, elástico e concentrado, difuso e condensado, justamente come se dá no mundo moral, em que a unidade se manifesta conjuntamente com a multiplicidade.
Social é a consciência, porque desde muito se reconheceu que ela “se abaixa ou se eleva, se retrai ou se alarga, se relaxa ou se fortifica, com o meio social”.

É o que ensinam os psicólogos modernos. Durkheim faz ver que o grande serviço que os filósofos espiritualistas prestaram à ciência, foi combateram todas as doutrinas, que reduzem a vida psíquica a não ser senão uma eflorescência da vida física E, sem cair no espiritualismo, acrescenta que “todos os fatos, de que se não pode achar a explicação na constituição dos tecidos, tornam-se propriedades do meio social”.

“Os psicólogos, observa Draghicesco, não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e adaptação ao meio social. A consciência para eles é indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a origem da consciência, se não o seu desenvolvimento, não pode mais ser atribuída a influências causadas pelo meio físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico é, por assim dizer, constante, in¬variável.
Por outro lado, estabelecemos também que a constituição¬ orgânica do homem é precisamente o resultado da adaptação a esse meio. A adaptação, uma vez feita e escolhida em hábitos para sempre invariáveis, não poderia mais ser questão de novas adaptações, este meio não mudando mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade da natureza e no homem adaptada. Se, porém, ainda se constatam adaptações, mudanças estas não podem vir senão do meio social; sim, estabelecemos que é ele que, por sua variabilidade e pela luta pela vida, impõe a adaptação. De hoje por diante não será mais possível procurar explicação para a consciência senão nas adaptações às condições sociais. A consciência não pode ser senão o produto do meio social, exclusivamente.”

Social é o universo, que não significa outra coisa senão um todo coordenado, em que se resumem todos os seres, e o laço que une todos os seres e um só todo é essencialmente social.
Não seria difícil mostrar quanto os insetos, os pássaros e os jardineiros colaboraram no desenvolvimento da beleza das flores, da elegância de suas formas, do brilho de suas cores e da suavidade de seus perfumes, e quanto por sua vez as flores concorreram para se desenvolverem nos homens e nos animais o senso e o gosto das for¬mas, das cores e dos perfumes.

Social é o movimento, porque a observação mais superficial mostra que o movimento não é senão uma mudança das posições relativas das coisas no espaço.
Social é a poesia como linguagem divina de uma pátria ideal, cujo povo não vê, adivinha; não sente, pressente; não deseja, aspira; e não se corresponde senão por meio da beleza e da harmonia, da imagem e do ritmo.

E pronunciamos as palavras – imagem e ritmo, palavras mágicas, que depois da genial descoberta de Goldschmidt, para quem existe relação entre as leis da harmonia e as da cristalização, estão anunciando a aurora de uma nova filosofia e uma revolução nos domínios da Ética e da Estética ainda mais profunda do que a que se operou no seio das ciências físico-químicas após as investigações de William Crooks sobre o estado pré-atômico da matéria, a descoberta da energia introatômica e a demonstração de que a radioatividade não pertence somente a certos corpos, mas constitui uma propriedade geral da matéria, achados em face dos quais não se pode mais pretender que o princípio regulador da solidariedade universal, no qual se resolvem todas as leis do mundo orgânico e inorgânico, seja a gravitação, e sim a sociedade com sua dupla face de unidade e multiplicidade, primordial manifestação da energia suprema do Universo, e, portanto, comum a todos os átomos, moléculas, células, animais.

Essa substância misteriosa que, apesar de imponderável, intangível, invisível, ocupa todos os pontos do espaço e enche todos os momentos do tempo, e sem a qual não haveria calor nem luz, nem eletricidade, nem vida, nem movimento, nem pensamento, já não é mais uma hipótese, que se deva admitir sem mesmo compreender; pelo contrário, é uma realidade, cuja existência se acha provada pelos princípios fundamentais da mais positiva das ciências – a Matemática.

Sim, enquanto a Aritmética não se ocupa senão do descontínuo, das partes separadas que ela exprime por números, de maneira que para ela a linha é uma série de pontos, a superfície uma soma de linhas, o infinito uma incessante divisibilidade, a Geometria, pelo contrário, faz da continuidade sua base fundamental, da grandeza seu ponto, do círculo sem solução de continuidade, sem começo nem fim, sua principal figura.

Por ai se vê que a Matemática nos dá a noção de antinomias, que não se contradizem, antes se correspondem, e exprimem relações de reciprocidade.
De que se ocupa o cálculo infinitesimal senão da passagem do descontínuo ao contínuo?
Enquanto a Aritmética e a Álgebra “consideram o número como imutável”, a análise e a teoria das funções o têm “como variável, móvel, por assim dizer, fluido”.

“A antítese entre o conhecido e o desconhecido, ensina Hermann Keyserling, é substituída pela antítese entre o constante e o variável. Em lugar da divisibilidade infinita que a Aritmética supõe, a análise postula a infinita mutabilidade, que engendra mutabilidades sempre novas para criar pontos de junção entre as partes discretas, para encher o descontínuo. Desta maneira é possível representar um contínuo (geométrico) por uma série infinita de números que numa aproximação infinita reproduz a mesma coisa que aquele.”

A antinomia entre a continuidade e descontinuidade em seu verdadeiro sentido não significa outra coisa senão dois aspectos de um mesmo fenômeno, que se relacionam e formam uma unidade sintética.
Se no mundo cósmico o éter é a grandeza, imaginária ou não, que confunde o descontínuo da matéria com o contínuo da força, e portanto, constitui o princípio e o fim de todas as coisas, no mundo moral a poesia se pode dizer o primum movens, o substratum da solidariedade humana sobre a terra.

Nem fiquem tristes aqueles que não fazem versos, porque há uma poesia da ciência que é a Filosofia, como há uma poesia da crítica que é o humour, além de que a prosa moderna se torna cada vez mais poética.

O pensador hodierno pode não pensar por metros e rimas, mas há de escrever poeticamente para merecer o nome de escritor.
Aqui não receio ser acusado de achar-me em contradição com o que escrevi, há anos, relativamente ao verso.

Afirmei, e não vacilo em reproduzir integralmente, que seria fácil mostrar na antiguidade grega a ciência identificada com o verso nas Obras e Dias, de Hesíodo, e no poema sobre a esfera celeste de Aratus, que metrificou o Tratado de Astronomia, de Eudóxio.
Na mitologia grega, esse incomparável monumento de saber e arte, a primeira condição para ser poeta é ter memória. Daí a primeira musa chamar-se “Mnemê”. Mas, não bastando ter memória, sendo necessário pensar, surgiu a segunda musa com o nome de “Meletê”, meditação. O poeta tinha de ser ao mesmo tempo cantor e pensador.

Chegando, porém, a uma certa idade, nota Sainte-Beuve, a ciência escapa ao poeta; o estilo dos Laplace, dos Cuvier, dos Hum¬boldt é o Único que convêm à exposição de um judicioso sistema.
Banido do domínio da ciência, o verso também o foi do terreno da Filosofia, da História e da Política.
Relativamente à Filosofia, enquanto todas as antigas cosmogonias e teogonias foram escritas em verso, os modernos sistemas filosóficos são arquitetados em prosa.

Na Política, antes de Demóstenes fulminar seus adversários em prosa, já Arquilóquio, o inventor do iambo, forçava seus adversários ao suicídio com suas sátiras.
Menipo serviu de transição entre a política feita em prosa e a feita em verso. As Menipéias, metade em prosa, metade em verso, são o sinal exterior desta transição.

Houve uma época, em que Atenas fez política em verso e em que mais da uma vez os abusos do coro foram postos em discussão. O poder público teve necessidade de promulgar leis restritivas contra os excessos da liberdade do verso, como os governos atuais as publicam contra os abusos da liberdade de imprensa.

Nas tragédias e comédias gregas o coro representava o mesmo papei que a imprensa moderna: era um órgão social, que tinha por função a censura do fanatismo, da superstição, dos maus costumes e, sobretudo, dos abusos do poder público.
A prosa na Política, como em todas as produções do espírito humano, marca um grande adiantamento na evolução dos conhecimentos.
Com Péricles, o mais legítimo representante da civilização helênica, começa uma Grécia nova, a Grécia da prosa, em que a Filosofia, a História, a Política e a Ciência sacodem o jugo do verso, e alteiam o vôo com as asas da eloqüência.

Para provar que a prosa foi cada vez mais substituindo o verso em todas as manifestações do espírito, basta lembrar que na época em que dominava o gosto das pastorais, então escritas em verso, Sannazar publicou a Arcádia, mistura de prosa e verso, que foi muito aplaudida, e obteve um grande sucesso, que o levou a escrever Dafnis e Cloé, toda em prosa.
Não confundamos, porém, a poesia com o verso para concluir com Schérer que “o poeta é um resto da humanidade primitiva”.

A descoberta do papiro matou, com efeito, o verso, e operou uma grande revolução social, dando origem à prosa, que veio a preponderar com a invenção da imprensa, que tornou fácil e pronta a transmissão do pensamento, cuja conservação era, nos tempos antigos, confiada ao ritmo, o amigo da memória, no dizer de George Perrot; mas a poesia continuou a subsistir como a mais espontânea, seivosa e pujante criação da vida psíquica.
Quaisquer que sejam as diversidades dos climas, as aptidões das raças, as variações das épocas, é sempre a poesia que nos faz penetrar nas profundezas da alma humana, como os vulcões nos fazem assistir às revoluções internas do globo.

Por isso, disse Aristóteles que a poesia é mais filosófica e mais seriamente verdadeira do que a história.
A Bíblia é o espelho do idealismo hebraico, como a Ilíada ou a Odisséia é a cristalização das idéias e sentimentos dos tempos heróicos da Grécia; no De natura rerum se assiste à representação de todas as lutas, de todas as paixões, de todas as moléstias intelectuais e morais que afligiram a alma do povo romano; chame-se como se quiser a obra genial do Dante, tragédia, drama ou comédia, ela é o poema da Idade Média com sua concepção de um Deus que recompensa ou castiga em uma outra vida, concepção inteiramente desconhecida do judaísmo, que não se preocupa senão com a sorte do homem sobre a terra, segundo dá a entender aquela admirável página de Ezequiel, em que o renascimento de Israel é figurado por ossos secos que se aproximam uns dos outros, se cobrem de músculos, de carne, de pele, e de novo se animam ao sopro do criador, da mesma sorte que a Comédia Humana, embora escrita em prosa, é o poema da vida contemporânea, mostrando Balzac em seus livros que o pivot da civilização atual é a propriedade móvel em sua forma mais perfeita e acabada, a moeda, a mercadoria por excelência, a mercadoria que, no dizer de Lafargue, encerra em estado latente todas as outras e tem o poder mágico de se transformar em todas as coisas desejáveis e desejadas.

Dizem que somos um povo de poetas, e, entretanto, não possuímos uma epopéia nacional: está por escrever nossa Ilíada, o poema da guerra holandesa, feito assombroso, com que os heróis do Norte, eu ia dizendo os pernambucanos, salvaram a integridade da pátria brasileira, bem como está por compor nossa Odisséia, narrando em linguagem homérica a luta titânica dos povoadores do Sul, ou melhor, dos bandeirantes, contra tudo e contra todos, para conquistarem do lado do poente um Brasil ainda mais rico e maravilhoso do que aquele que havia sido descoberto à beira-mar pelos argonautas portugueses.

Se não obstante a predisposição do meio físico, pois o Brasil, embora não ofereça o equilíbrio e a harmonia da natureza grega, pelo seu solo coberto de frondosas selvas matizadas de flores, saturadas de perfumes, umedecidas pelo pó líquido das cascatas, não deixa de ser uma região fadada ao comércio das Musas; se apesar da equiparidade do momento histórico, pois os bandeirantes não se achavam em grau inferior de civilização ao daqueles bandidos gregos, que mais tarde se fizeram heróis e semideuses, debalde procuraríamos um poeta épico digno deste nome, em compensação não nos faltam líricos que sabem emoldurar na forma alada de um impecável soneto os mais pomposos espetáculos da natureza ou as mais formidáveis tempestades do coração humano.

Superior ao lirismo, em prosa ou verso, do Barão de Loreto, afigura-se-me tão-somente seu idílio na família, gênero de poesia, que cultivou durante toda a sua vida, e que foi o perene embevecimento de sua existência inteira.
No lar o autor dos Enlevos teve sempre ao seu lado, à direita e à esquerda, as duas mais fagueiras musas, a da poesia e a da felicidade.
Tão feliz que pôde fechar o seu livro de ouro com aquele talismã, que por si só lhe abriria as portas da imortalidade:

Completo o livro está: nele o teu nome escrevo
Faltava-lhe um remate; achei-o de primor.
Bem sabes que tu és meu derradeiro enlevo,
Ó anjo de bondade, anjo do meu amor!

Sinto-me sem expressões, pois seria preciso possuir a linguagem das flores e das coisas divinas, a cor do céu e o brilho das estrelas, para contar a vida de casado do Barão de Loreto; mas felizmente aí está sua autobiografia, escrita em belíssimos versos sob o expressivo título “A Felicidade”:

Ser feliz não é ocioso
Passar dias festivais,
Nem ter cofre precioso,
Pejado de cabedais;
Não, isto rio é ventura,
Ao mesmo Creso tortura
A agonia do sofrer;
Vive o rico na opulência,
Mas desgostoso a existência
Não cessa de maldizer.

Ser feliz não é pujante
Conquistar cem regiões,
Mostrar-se um vulto que espante
Pelo brilho das ações;
Acender em cada passo,
Seguro, de glória um traço
Indelével, imortal;
E por fim, coa fronte erguida,
Tranqüilo perder a vida,
Tendo ganho um pedestal,

Não é, não. Da glória a estrada
De espinhos coberta jaz;
É árdua, longa a jornada,
Que por seu trilho se faz.
A fama nos colhe o fruto;
O egoísmo corruto,
Faminto, impudente o rói:
O homem deificado
Foi antes martirizado,
Chame-se gênio ou herói.

Ser feliz é nesta vida
Ter um seio a estremecer,
Onde a alma beba insofrida
O frenesi do prazer;
onde a fronte macilenta
Sinta o calor, que aviventa
Com suave languidez;
Onde perfumes aéreos
Embalsamem os mistérios
Da amorosa embriaguez.

Ser feliz é, deslembrado
Dos mundanos vai-e-vens,
Junto do ente adorado
Gozar inúmeros bens;
Levar tempo indefinido
Em seus olhos embebido,
Como quem atento lê,
Coo peito que forte pulsa,
À mais pequena repulsa,
Dizer-lhe terno: – Por quê?

Ser feliz é no retiro
Ter companheira fiel,
Que pague longo suspiro
Cum beijo que sabe a mel;
Com ela amar os luares,
As aragens salutares,
A sombra que envolve a chã,
As flores da sicupira,
E o hino de cada lira,
Que soa pela manhã.

Ser feliz é, nessas horas
De tédio e vaga aflição,
De lembranças opressoras,
De opressora inquietação,
Coaquela que nos entrega,
Ébria de amor, de amor cega,
O fio dos dias seus,
Procurar o santuário,
E bem ao pé do Calvário,
Orando, falar a Deus.

Não! tudo não é vaidade:
Não! tudo não é sofrer:
Existe a felicidade,
Logo que existe a mulher.
Amai-a, amai-a deveras;
O amor é das quimeras,
Se ele é quimera, a melhor:
Nutri um amor profundo,
Que há de encantar-vos o mundo:
A f’licidade é o amor!

Bem se vê que é a autobiografia do Barão de Loreto; mas, senhores, existe realmente a felicidade? A felicidade é realmente o amor?

Não posso responder porque sou vítima da maior das cegueiras, que certamente não é a cegueira da natureza de que fala Victor Hugo, pois afinal o céu possui as estrelas para admirar em todo seu esplendor a Verdade, a Justiça e a Beleza, e sim a cegueira das palavras, que consiste em não descobrir o termo próprio para exprimir a idéia, pois, na frase de Flaubert, “pensar é falar”, e o termo próprio, “o termo sem sinônimo, é o corpo vivo, o corpo único da idéia”; mas recordo-me de que em menino li uma admirável página, que me ficou para sempre gravada na memória do coração.

É a história de um cego, que tinha os olhos límpidos e brilhantes como pedras preciosas, mas não via senão a escuridão, nunca, nunca a luz; uma existência de eterna noite, sem um dia de sol, e, entretanto, essa criatura se julgava supernamente feliz, porque era amada.

A suprema felicidade da vida é a convicção de que se é amado, esta convicção o cego a tem. Não perde a luz quem tem o amor. E que amor! um amor inteiramente de virtude. Não há cegueira, onde há certeza. A alma, às apalpadelas, procura a alma e a encontra. Esta alma encontrada e posta em prova, é uma mulher. Uma mão vos sustém, é a sua; lábios se abrem em vossa fronte, é sua boca; ouvis uma respiração muito perto de vós, é ela.Tudo ter dela, desde o seu culto até a sua piedade, nunca ser deixado, ter essa doce fraqueza, que vos socorre, apoiar-se sobre esse caniço inabalável, tocar com suas mãos a Providência e poder to¬má-la em seus braços: Deus palpável, que enlevo!
Enlevos intitulou o Barão de Loreto sua obra-prima, e realmente a poesia não é outra coisa senão enlevo, magia, encanto, feitiçaria.

A musa da poesia é uma feiticeira, que sabe encantar e embriagar aqueles que aspiram a uma vida superior, ideal, e no enlevo da alma, na poesia, estava o segredo daquele néctar, com que os deuses gregos se embriagavam no Olimpo para esquecerem as dares passadas e presentes.
O autor dos Enlevos disse inspiradamente que “a felicidade é o amor”, sem que pudesse inverter os termos: o amor é a felicidade.

Sim, a felicidade não aprendeu a conjugar o verbo amar na ativa: ela consiste não em amar, mas em ser amado, e é esta convicção que ilumina a alma dos cegos de amor, e dá aos que não são vítimas da cegueira das palavras, àqueles que, à maneira dos poetas, vêem em uma gota de orvalho o espelho do Universo, em um grão de areia a imagem do infinito, forças para sustentarem sobre os ombros, como um Atlas, o mais pesado de todos os mundos – o mundo da dor.

Como Pascal e Sully-Prudhomme, aquele o mais poeta dos filósofos, este o mais filósofo dos poetas, Junqueira Freire foi uma vítima do coração e da razão, foi infeliz na vida, o contrário do Barão de Loreto, que, vimos, foi habitante do país das Fadas, região encantada, onde impera não o acaso, e sim o destino – Fatum, – e policiam não as harpias, mas as próprias filhas do destino – Fata – anjos bizarros, de asas invisíveis, e criaturas tão delicadas como as mais impalpáveis naturezas aladas, intermediárias entre a terra e o céu.

Há vinte anos, quando ainda não consagrava o seu formoso talento à ciência e arte da diplomacia, o Dr. Oliveira Lima escreveu no estrangeiro, relativamente ao meu primeiro livro publicado, palavras que, trazidas pelo mar e confundindo-se com o ritmo das vagas e com a melodia das sereias, foram para mim um doce enlevo; hoje o meu enlevo não é menos suave, vendo-me recebido – numa associação, em que vibra uníssona a alma nacional – pelo meu eminente amigo, agora diplomata, mas diplomata conforme já tive ocasião de dizer, capaz de dar lições àquele embaixador, a que se refere Tolstoi em Guerra e Paz, e que, ao ver o lenço que proposi¬talmente seu colega deixara cair para o obrigar a apanhá-lo, fez o mesmo, evitando deste modo dobrar o corpo em plena Corte, ou àquele outro que respondeu a Leão XIII, quando este o provocara a dar sua opinião sobre a guerra do Transvaal:

– Santo Padre, meu coração é pelos bôeres...
E como o Papa sorrisse, juntou imediatamente:
– ...e os meus votos são pelos ingleses.

O Dr. Oliveira Lima pertence ao número dos diplomatas brasileiros tão devotados quão simpáticos colaboradores do Sr. Barão do Rio Branco, trabalhando com esforço, perseverança, bravura moral e intelectual para que, contra a sentença Terrae dominium finitur, ubi finitur armorum vis, predominem nas relações entre o Brasil e os povos circunvizinhos a idéia e o sentimento do justo, desideratum impossível de realizar-se sem uma nítida delimitação de fronteiras, e para que, apesar de trazer em seu pavilhão o Cruzeiro do Sul, a nossa pátria não continue a formar com os outros países da América Meridional uma espécie de “nebulosa geográfica” em face da cintilante constelação que se chama Estados Unidos da América do Norte.