Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Ariano Suassuna > Ariano Suassuna

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça

A expectativa pelo resultado de candidatura à Academia atormenta e aflige. Já se disse até que ao tímido melhor fora livrar-se da espera agoniada, ficando ao sereno na calçada da Avenida Presidente Wilson, sem tentar entrar aqui nem carecer de acertar o labiríntico caminho de incertezas, nem escutar a dissinfonia que mistura bons e maus augúrios.

Não foi o seu caso, Sr. Ariano Suassuna, esperado com arruído e foguetes de lágrimas por todos os inquilinos das glórias machadianas. Tanto que, ao ouvirmos o seu chamado, à moda nordestina:

 – Oh de casa!

Todos, à unanimidade, respondemos:

– Oh de fora!

Foi a alegria de tê-lo, logo, mano a mano.
 
Só não esqueço a frustração que sofri ao lhe telefonar para dizer, encerradas as inscrições à sucessão do saudoso Genolino Amado, que nenhum outro se dispusera à competição. E falei:

– Você será candidato único. Uma eleição tranquila.

De lá, do seu retiro recifense-capibaribeano do Poço da Panela, dispara, para me desorientar, perguntas danadas:

– E você acha isso bom? E se eu perder para ninguém?

Seguidas da advertência:

– Minha família é ruim de urna, desde 1930 ninguém vence uma eleição!

Quando a Academia Brasileira de Letras foi fundada, em julho de 1897, ainda se brigava em Canudos, sob a convicção de volta à Monarquia. Pois não é que, quase cem anos depois, um canudo euclidiano e ex-monarquista chega aqui acarinhado na consagração do referendo geral – e não apenas daquela unanimidade que, após as votações, todos nós gostamos de dizer, em boa e conveniente tradição, ter sido conferida aos ganhadores.

Sua incorporação à grei machadiana é perfeita, pois, não sendo um academicista, se livrará do confronto com o maior inimigo das academias, o academicismo.

Aqui encontrará, porém, a glória que não passa mesmo, porque as academias não inventam, não fazem escritores menores ou maiores. As academias nada têm a dar além do reconhecimento dos valores e dos poderes do convívio.

As academias não prejudicam a obra de ninguém, não amordaçam nem libertam escritores. Nem as academias representam estações de fim-de-linha. De outra parte, compreendemos a natureza complementar dos ritos, o que, aliás, está exemplarmente admitido no seu discurso. Daí ser o fardão apenas a relevante nota litúrgica, complementar da dignidade ou do ridículo: depende do monge que o use.

Aliás, o povo é sábio, na reverência a esses ritos, a essa liturgia. Nunca esqueço o alvoroço recifense quando a rainha Elizabeth II ali esteve. Todo mundo na rua para ver Sua Majestade desfilar em carro aberto, na companhia do governador Nilo Coelho. Ela passa, e Marieta, a velha cozinheira da família de minha mulher, me diz, arrasada:

Que decepção! Nunca imaginei uma rainha sem manto, nem coroa!

Foi por conhecer, para usar uma ideia-síntese, o seu apreço pela Heráldica, que sabíamos, mesmo ainda vigorasse o Regimento que favoreceu a Rio Branco assumir a Cadeira através de carta, Ariano Suassuna não repetiria o gesto.

Aqui está ele muito mais fazendo que a gente recorde um sonho do Quaderna, sempre tão respeitador dos halos acadêmicos. Mais ainda: fundador da Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba.

Atentemos para este trecho de Romance d’A Pedra do Reino, livro que Maximiliano Campos chama, no seu imperdível posfácio, com felicidade de “Brasileida”:
   
Devo confessar a Vossa Excelência (Sr. Corregedor) que ontem à noite dormi muito mal: tive um sono profundamente perturbado. Passei a noite sonhando, e desses sonhos, dois sobretudo me deixaram impressionado. O primeiro referia-se à minha coroação como gênio da nossa raça, através da Academia Brasileira de Letras.
   
Ora, “gênio da raça” ainda não é laurel que distribuamos. Limitamo-nos à glória da “imortalidade”. E já basta.

Essa imortalidade é para que desfrutemos, na Casa, aquilo de que muito nos orgulhamos: o exercício da liberdade.
 
Conta-se, aliás, que, ao tempo da Paris ocupada, sob o guante da SS e da opressão nazista, um acadêmico se dirigia à sessão e, na altura do Pont des Arts, um oficial invasor o aborda, apontando para La Coupole:

– Que edifício é aquele?

E teve como resposta:

– É a Casa da Liberdade.

Pois este Petit Trianon é outra Casa da Liberdade, inclusive nos últimos tempos – muitos e alegres tempos – presidida por alguém que redigiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Este seu conhecido “à vontade” nada terá de se inibir perante a Casa. Querêmo-lo exatamente assim, como construiu a obra estupenda e mostrou a todos a personalidade admirada e admirável.
 
Por tudo isso e por saber o quanto gosta da poesia de Deborah Brennand, ouso sugerir-lhe ter, de agora por diante, ainda mais presentes, estes versos:
   
Então, não lamentes o amanhã. Ajaeza teu cavalo e segue
Entre o cheiro das juremas, nos ramos da terra clara.
Nos rios mortos, apanha o teu brasão, as três medalhas.
O gavião da luz devora um voo de sombras frágeis.
Segue e rasga o lenço vermelho: está acesa a batalha.

De batalhas, aliás, são enxundiosas sua vida e obra. A mais forte delas, a decisiva de tudo, quando João Suassuna tombou, assassinado na vida para renascer no exemplo.

O filho diria, depois:
   
Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da sorte sobre meu destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.
    
Para mim, o seu cantar era divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o desatino
O Sangue, o riso e as mortes do sertão.
    
Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o sol, transfigurado.
    
Sua efígie me queima. Eu sou a presa
Ele, a brasa que impele ao fogo acesa
Espada de ouro em pasto ensanguentado.
   
Confessa que é um daqueles escritores que, tendo infância rural, inventa terras e remos como os “Fazendeiros do Ar”, todavia não o faz por frustração ou escapismo, porém para a recriação e o enriquecimento poético e forte do real, na gana da recaptura.

É da tragédia da infância, com impressões digitais de dor eterna, que vemos Ariano Suassuna emergir para expor ideias, zelar respeitos, desabotoar preconcebidas conceituações de cultura, construir um dos mais altos momentos da dramaturgia em Língua Portuguesa, para realizar obra romanesca de fascinante afinidade com tudo que é brasileiro, na incrível magia das palavras, e para ser adorável e travesso insubmisso, de vez em quando se fingindo de doido manso.
 
Só que ninguém se fie na brandura desse cangaceiro de Taperoá, ele próprio sabedor de que o cangaço não se esgota num grupo de facínoras a espalhar terror e horror. Cangaço é também o grito de uma gente reagindo à injustiça, à opressão, à exploração e ao arbítrio.
 
O cangaceiro que recebemos hoje – sob luzes de reconhecimento, de aplauso, de simpatia, luzes mais profusas por que o homenageiam – está temperado em lições recebidas na Fazenda Acauhan, no Território Livre de Princesa e nas sequidões dos Cariris Velhos.
 
Vem de famílias valentes – pela varonia, dos Suassuna – sobrenome indígena que substituiu o luso-florentino Cavalcanti de Albuquerque; em maior ortodoxia que o outro ramo que adotou o Suassuna só como título nobiliárquico – e, pelo lado materno, dos Dantas, que, em 1912, tomaram mais de dez cidades a bala e, na crise perrepista, tendo a casa cercada, o povo açulado – a cantar o “Vassourinhas” – ameaçando sopresá-la, enrijeceu-se de bravura pela ordem dada a um dos filhos, por D. Ritinha, mãe dele:

– Vá pro piano e toque o Hino de Princesa.

E a meninada, ao som da música aliciadora, Ariano Suassuna inclusive, começou a cantar:
   
Cidadãos de Princesa aguerrida
Celebremos com força e paixão
A beleza invulgar desta lida
E a bravura sem par do sertão
   
Ao contatar sua obra, vemos que não se sonega nos seus limites. Seria espécie de bitributação, se, separadamente, cuidássemos de destecer-lhe a renda da vida e de lhe conhecer a produção artística de intelecção imediata. Em razão disso, José Augusto Guerra disse que, nele, a vida e a Arte se completam na fala, nos gestos, nas lembranças, nas confissões.

É fácil perceber o quanto ambas têm do cerne dos problemas daquele tempo e do homem daquela região cheia de sofrimentos, vítima de esquartejamentos sucessivos.
 
No ato de escrever, reconhecidamente o mais público de todos, denuncia-se a sua natureza participante, pinçando a criatura como parte de um povo. Daí, ser ela encontradiça no núcleo e na moldura dos personagens.

É da nossa querida Rachel de Queiroz a feliz observação em admirável prefácio para Romance d’A Pedra do Reino: “Só comparo o Suassuna a dois sujeitos: a Villa-Lobos e a Portinari. Neles a força do artista obra o milagre da integração do material popular com o material erudito, juntando lembrança, tradição e vivência com o toque pessoal de originalidade e improvisação.”

Indo viver os primeiros anos de infância no sertão, contingenciado no luto, viu dentro de casa a batalha da mãe, viúva, aos 34 anos, com nove filhos por educar; e lá fora ouviu os homens do sertão no seu eloquente silêncio.
 
É preciso anotar que Suassuna não restringiu o mundo ao sertão. Antes, pôs o sertão como palco dos dramas do homem de qualquer latitude.
 
A peculiaridade regional é apreendida como forma “significante”, sem aprisionar o “significado” das coisas, e, em vez de capitular ao pessimismo, resgata o sentimento de amor-próprio.
   
Tudo isso introduziu no meu sangue, diz Suassuna, – não digo nas ideias porque veio bem depois – a convicção obscura, mas profunda e arraigada, de que o mundo era, ao mesmo tempo, um espetáculo cruel e belo, duro, mas que vale a pena, porque é grande e porque Deus existe. O pessoal diz, às vezes, por mania esquerdejosa, que eu pinto o sertão e o sertanejo, alegres e belos, como se a vida fosse fácil. Eles não conhecem nem o sertão nem os sertanejos. Os sertanejos são mesmo capazes do sangue da tragédia e do riso violento da comédia; e o sertão é belo. Não é gracioso, como a Zona da Mata: é belo, despojado e cheio de grandeza, capaz de riso, de beleza e de corajosa alegria, no meio da aspereza e da crueldade do mundo.

   
É fácil entender porque João Cabral de Melo Neto poetou assim:
   
Sertanejo, nos explicaste
como gente à beira do quase,
    
que habita caatinga sem mel
cria os romances de cordel
o espaço mágico e feérico
sem o imediato e o famélico
    
fantástico espaço suassuna
que ensina que o deserto funda.
   
Na seca, há um caladão doido, um caladão que fala, é o silêncio. E fala gritando, com a alma arranhada de dor.

Esse silêncio é denunciador de que Ariano Suassuna não se situa no sertanismo do sertão úmido, entroncado em Afonso Arinos ou Guimarães Rosa, mas no sertão seco; de vaqueiros encoletados em couro; de sóis sem-fim; euclidiano; emaranhado numa espécie de palha de aço de macambiras, gravatás, coroas-de-frade, facheiros, erva-babosa; de terreno áspero; de chocalho de cabra; por todo lado, um mundo castanho, um mundo pardo, uma raça da cor da suçuarana – nossa onça castanha – e de coisas dispostas numa como que essencialidade bíblica.

Nesse cenário, se desenrola a trilogia de que Romance d’A Pedra do Reino é a primeira parte. Escrevendo no “Álbum de Depoimentos” da minha filha, em dezembro de 1977, ele faz uma confissão e um desenho significativos e explicativos:
   
Querida Taciana: Se tudo o que eu escrevi tiver que ser esquecido e desgastado pelo Tempo e se fosse dado o direito de salvar um só livro dessa cinza e desse pó, eu escolheria o longo romance que venho escrevendo desde 1958... Por isso, resolvi colocar aqui, como homenagem a você, essa espécie de desenho simbólico d’A Pedra do Reino. 
   
Despertado para o mundo como ele próprio conta, entre o primeiro e o segundo ano de vida, dentro de uma rede, chorando porque a mãe deixara uma prima embalando-o, Ariano Suassuna viveu infância marcante, no seu modo de ser, a um só tempo, singular e plural.

Aliás, aquela rede de dormir deveria estar armada em certo alpendre ou quarto do palácio do Governo, na capital da Paraíba, Estado de que seu pai fora presidente, como se dizia à época.

Conta-se que um dia desses, ao passar pela cidade onde nasceu, e dela não pronuncia o nome atual, por conta de tudo o que sabemos, foi Ariano Suassuna ao palácio para rever e recordar.

De alpercata, calça e camisa, na sua encadernação dos últimos anos, barrou-lhe o guarda a entrada, censurando-o:

– Como que quer entrar; sem paletó e gravata?

A resposta veio firme e maliciosa, sem que o coitado do vigilante pudesse entender:

– Pois saiba que já andei nu aí dentro muito tempo. E ninguém reclamava. Até achavam bonitinho e engraçado.

A infância ensejou-lhe muito de amadurecimento antecipado, porque, como diz nestes versos, ela foi assim:
   
Sem lei nem rei me vi arremessado
Bem menino ao planalto pedregoso
Cambaleando cego ao sol do acaso
Vi o mundo rugir tigre maldoso.
........................................................
    
E veio o sonho e foi despedaçado
E veio o sangue, o marco iluminado
A luta extraviada e a minha grei.
   
Naquele tempo, sabia-se do sertão como o sertão sabia do mar e, talvez por isso, esperava-se fosse cumprida a prédica de Antônio Conselheiro: “Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão: então o certão virará praia e a praia virará certão.”

A profecia cumpriu-se pelo avesso: em 16 de junho de 1927, na Cidade de Nossa Senhora das Neves, capital do Estado da Paraíba, filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e de Rita de Cássia Dantas Villar, nasceu Ariano Villar Suassuna. Um ano depois, 1928, a família Suassuna regressa a seu lugar de origem, o sertão, na Fazenda Acauhan.

Pois bem, o sertão recebeu da praia, do litoral, um seu grande intérprete. O menino pisou a pedra, ouviu os cantos dos pássaros, do povo e, com os professores Emídio Diniz e Alice Dias, aprendeu a ler os primeiros folhetos, os primeiros romances populares. O menino ouviu, pela primeira vez, os cantadores – Antonio Marinho e Antonio Marinheiro – e assistiu a uma peça de mamulengo. O menino se fez, ora descobrindo o imóvel das gravuras, nas capas dos folhetos, ora aprendendo a música do martelo, do galope, da sextilha, da gemedeira, onde gemem os cantadores.

Os seus versos, a prosa, o teatro fazem parte da sua experiência vital. Por isso, o que produziu, proclama um tanto orgulhoso, se aproxima da parte do mundo que lhe foi dada, cheia de sol, de poeira, de atores ambulantes, de bonecos de mamulengo representando gente comum, de assassinos, de juízes, de avarentos, de homens e mulheres de bem, de prostitutas, de luxuriosos medíocres. Seu nativismo, adverte Silviano Santiago, não é tão “estreito” quanto os dos que pregam um ufanismo de portas fechadas, nem tão “aberto” quanto o dos que professam uma constante dívida, na construção do brasileiro, ao alienígena.

Raimundo Carrero observa que nele “o processo de criação, a fabulação, a chamada agilidade dos diálogos, a arrumação de cenas, a escolha de personagens e a notável ‘arquitetura’ das tramas jamais traíram a concepção de Arte e de mundo”.

É a autenticidade costumbrista, digo eu, desse ressuscitador prodigioso da memória e da alma de sua gente.
 
Muito do que pode parecer sem-vergonhice de algum dos seus personagens na verdade é a busca do indispensável à sobrevivência. É espécie de vitória da inteligência sobre a adversidade opressora.

No Nordeste, a gente sabe que a astúcia é a coragem do pobre.

Além do mais, esses recursos literários favorecem ao leitor ou ao espectador um suculento exercício de imaginação.

Inspirando-se em bons e nada desprezíveis anônimos, em bons e nada desprezíveis analfabetos, a obra suassuniana foge do banal, porque a desbanalização ocorre exatamente por conta do quanto se mostra atenta ao homem e à magia do cotidiano.

A sua graça, a sua originalidade vêm da empatia com a tradição popular, fazendo tudo que escreve ser espécie de coroa da arte do seu povo. Por isso, tão pura, tão fogo, tão fogosa, tão tradicional e tão original, tão novidadeira, tão ocupada – no sonho e na tradição – em redimir injustiças da vida real.

Antônio Houaiss, com a sua precisão habitual, adverte que:
   
Essa inserção no tradicional é, entretanto, tão espontânea e autenticamente estabelecida, que [...] embora possa parecer, a certos analistas metafísicos, um mero aproveitamento de recursos cediços sem originalidade, é, em verdade, uma rica lição de como o novo provém do velho, de um combinatório criador do velho, de modo que o novo apareça como decorrência precisamente desse combinatório.
   
Nela, é ostensiva uma fidelidade ao que Gilberto Freyre identifica como muito própria do nordestino: a constante ampliação das zonas de sensibilidade, zonas como que erógenas de civismo e fé.

Aliás, o meu dileto Josué Montello, instigante e perspicaz, ao recordar a expressão de Chateaubriand, me disse, faz poucos dias, querer nesta noite ouvir bem os discursos de posse e de recepção para sentir exata demonstração do quanto o Nordeste significa para os oradores, ou seja, uma verdadeira Mátria, diversa da Pátria, que é o todo, no seu conjunto.

Sendo assim, de modo a que não se perca o caráter patriótico e reivindicante, e nem prejudique a prática da inconformidade ao tratamento, permitam-me um instante de “matriísmo” e de “nordestinidade” comprometidas com o progresso e não apenas literárias. Associemos o “matriísmo” ao “patriotismo”.

O ano passado, com o processo amplo da campanha política, foi o instante de germinação para as propostas de revisão da estratégia de desenvolvimento regional. Esperamos, agora, que a complexa realidade de seu sistema social, os seus desequilíbrios, a parte que a Região representa de um todo maior – o sistema social nacional – sejam considerados. E que a sua inserção nesse sistema social nacional se faça de modo funcional e convergente.

O Professor Roberto Cavalcanti de Albuquerque tem alertado, e louvo-o pela lucidez como coloca a questão, para a necessidade de a consciência nacional reagir às tentativas de nela se implantarem “mitos incapacitantes” com relação ao Nordeste, como região, e ao nordestino, como povo. É a inconformidade aos clichês mentais depreciativos sobre o Nordeste: o de que o seu desenvolvimento autossustentado é impossível; o de que, no semiárido, a agricultura é inviável; o de que os recursos públicos destinados à Região são invariavelmente malbaratados; o de que a população regional degrada-se rapidamente em sub-raça de nanicos ociosos e imbecilizados.
 
Setores ponderáveis do Sul e do Sudeste do País não podem ignorar que o Nordeste respondeu aos incentivos à industrialização, com desempenho produtivo superior ao do País; que a agricultura moderna, no semiárido, é factível tecnicamente (com a grande e a pequena irrigação) e rentável economicamente; que a Região evoluiu significativamente no social, conforme demonstram os indicadores de mortalidade, morbidade, nutricionais, educacionais, entre outros.

Tem razão, ainda, aquele ilustre brasileiro ao lembrar:

O ideário que deve orientar o projeto do Nordeste precisa transmitir mensagens positivas: de integração do sistema regional no sistema nacional que seja mutuamente benéfica; de compatibilização de interesses; de transmissão inter-regional do desenvolvimento, reciprocamente fertilizante.
   
Logicamente, se a opção estratégica regional for a da inserção convergente – econômica, social, política – no sistema nacional, o conteúdo de sua estratégia deve estar, sintônica e sincronicamente, ajustado à política nacional de desenvolvimento.

Mas não só pelas mudanças e transformações na política de desenvolvimento regional se interessa a inteligência dos brasileiros, em particular a dos nordestinos. É bom não esquecer que, no Auto da Compadecida, infere o personagem Manuel da necessidade de uma reforma administrativa. Não na terra, mas no céu. Tudo isso por conta da avassaladora presença salvacionista da Virgem Maria, no empenho de resgatar a todos das penas do fogo eterno.

Manuel falou meio zangado, àquela altura, inconformado com o protecionismo largo, desmedido, de quem mais cultivava o Perdão que a Justiça: “Se a Senhora (a Compadecida) continuar a interceder por todos, o inferno vai terminar [...] feito repartição pública, que existe mas não funciona.”

Aí está a crítica social de grande acento cristão. Nada blasfema. Ao contrário, de profunda espiritualidade. Mas houve quem descobrisse nos textos de Suassuna – foi Plínio Salgado, pobre dele – diálogos maldosos, por vezes infames a Deus e à Virgem Maria, estruturados e encenados “de acordo com a técnica soviética de desmoralização da religião”.

As contradições que espalhou – como em obediência a Unamuno que preceituou aos artistas o gosto pela controvérsia – também o obrigaram a ouvir que se portava e escrevia como “solteirona da Ação Católica”.

Por isso, lhe foi constante o ser acossado por duas censuras: a fascista, autoritária, da Direita; a outra, igualmente totalitária, intolerante, vinda das patrulhas ideológicas marxistas.

Melhor, na verdade, seguir a sugestão de Décio de Almeida Prado que,  ao integrar essa obra admirável do não menos admirável Afrânio Coutinho, de interpretação e de esclarecimento da história da Literatura Brasileira – com graça e sabedoria, indica que a justiça e a misericórdia divinas – podem se expressar, em Ariano Suassuna, no seguinte: “Bem-aventurados os pobres porque deles será o Reino dos Céus.”

Ariano Suassuna pôs diante da nação cristocêntrica, que é o Brasil, a condição de ter um teatro de amplo significado religioso, ao retomar, inovando-as, as sendas vicentinas. Teatro, igualmente, de ideias, porém de nenhum modo ideológico, na perfeita observação de Ângelo Monteiro.

Do seu lado, Geraldo Costa Manso afirma que a sua dramaturgia traz a religiosidade do medievo no riso, nas moralidades, nos personagens típicos, na encenação circense, centrada sempre em um ângulo de profunda articulação com a condição humana. Aliás, a propósito desse modelo medievalizante, há razão em Lígia Vassalo, ao observar que a aquisição, pela vivência pessoal, da oralidade em nada despreza as vias cultas das literaturas europeias escritas, nas quais também se arrimou. E diz Vassalo: “Esta opção não implica em arcaísmo, porém em extrema afinação dos elementos constitutivos da obra.”

E Eduardo Portella completa: “A fidelidade à forma peninsular é, em Ariano Suassuna, ademais uma solução funcional para um teatro sem tradição que o justificasse. E a tradição não se isolou, ao contrário, se harmonizou com o Nordeste.”

É como se as pessoas, se matando, pela sobrevivência, transfigurassem a dor e fizessem dela uma flor a se transformar em riso.

Não resisto ao desejo de trazer à lembrança de todos parte da competente apresentação que Sábato Magaldi faz de A Pena e a Lei, ao dizer:
 
   
O mecanismo teatral encontra perfeita equivalência no universo religioso [...] o palco resume aquele gran teatro del mundo microcosmo simbolizador da história humana, quando o homem pergunta o significado de sua presença na Terra. Teatro e transcendência estão aí admiravelmente fundidos. [...] É perfeita a correspondência entre a materialização cênica e o intuito apologético fundamental.

   
Ariano Suassuna foi protestante. Adoeceu, converteu-se ao Catolicismo. Graduou-se em Direito e foi trabalhar no escritório de Murilo Guimarães, um dos principais do Nordeste. Reconheceu; não dava para aquelas coisas. Deixou. Tornou-se professor de Estética. Um estupendo sucesso. Dirigiu a área de Cultura da Prefeitura do Recife. Outro grande êxito.

E ainda há quem diga que ao intelectual não está reservado o esplendor da ação. Como é ruim generalizar!
 
Foi aí que Suassuna deu força à popularização da Cultura, em vez de se restringir à teoria dos ortodoxos da chamada Cultura popular. E é aí que a gente pode encontrar uma grande sintonia, teórica e prática, do Suassuna, Secretário da Cultura, no Recife, com o Mário de Andrade, Diretor do Departamento de Cultura, em São Paulo. Nessa ocasião, ele pôs no debate de rua o seu entendimento de Literatura, teatral ou romanesca, como interpretação individual de um sentimento plural, enraizado no populário nordestino.

Por essa época, cismou que não queria ser tratado de Secretário. Justificava-se, dizendo que em sua fazenda tinha um jumento chamado Secretário. Por isso mesmo, um amigo comum, lá do Recife, Ítalo Bianchi, já o advertiu de que não inventasse agora que também tem algum bode chamado de Imortal.

Densificou, a partir dos seus tempos de dirigente cultural da Universidade do Recife, a atenção de todos pelo Movimento Armorial, quando posicionou a Cultura popular nos ambientes cultos. Um projeto estético encontradiço na cerâmica de um Brennand ou de um Miguel dos Santos, nos romances de um Maximiliano Campos ou de um Raimundo Carrero, na música de um Cussy de Almeida, de um Guerra Peixe, de um Antonio José Madureira, na poesia de uma Janice Japiassu, de um Marcus Accioly e também nos painéis de Zélia sua mulher.

O Movimento Armorial tem ligação com o espírito mágico do romanceiro popular do Nordeste – a Literatura de Cordel; com a música de viola, rabeca, pífano, que acompanha seus “cantares”; e com a Xilogravura, ilustração de suas capas, assim também com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares.

Estas coisas aconteceram sem caipirismos, pois o caipirista só se ocupa “sectariamente” do que há de transferível na vida ou na natureza regional. A obra suassuniana cuida do transferível, do transregional. Por isso, Gilberto Freyre viu nela uma grande distância daquela subliteratura do Sudeste americano que tentou fazer do “negro” um ente ridículo.

Seu teatro, de igual maneira, a excelente poesia e o romance – para onde foi porque algumas coisas que tinha do seu mundo interior, conforme diz, não mais cabiam em versos ou no Teatro — têm expressão linguística popular, como manifestação da Região, e erudita, pela comunicação universalista. Sem que falte, nunca, o tempero do “riso bom e ruidoso, um sopro de vida simples e cheio de paixões diretas, um cauterizar feridas que alegra até o cauterizado, um girar contínuo de graça e astúcia cabocla, sob o fundo de universal humildade”, como viu Drummond.

É com essas raízes que a suassuniana trafega pelo trágico e o risível. Não esqueçamos que o engraçado é simpático. Ele próprio, falando do Quixote, diz assim: “[...] há uma beleza criada a partir daquilo que, no comportamento humano, faz parte do risível. E então, uma beleza criada a partir daquilo, sem exageros, o que elidiria o riso.”

Agora, Sr. Ariano Suassuna, escute uma coisa. Escute também, dona Zélia, em quem o novo acadêmico se instalou, no conforto do coração, e de quem faz juízo exato, ao dizer: “Os escritores gostam tanto de fantasiar as coisas que, quando não têm um caso de amor, inventam. Eu tive sorte; casei com meu próprio caso de amor.”

Ariano Suassuna acha que o sertão é macho e a mata é fêmea. Pois disto usa, quem disto cuida: não é que a nossa distinta dona Zélia vem de famílias da Zona Canavieira pernambucana, da gente de José de Barros Lima, o “Leão Coroado” da Revolução de 1817, companheiro de Frei Caneca? Vem de Tapera. Tão perto – pelo menos na grafia – de Taperoá. Somente uma letra, o “o” e um acento, o “agudo”, os separavam. O mais, foi só a ensancha do encontro.

Escutem, pois: a comunidade machadiana está feliz em os incorporar aos seus quadros regimentais e afetivos.

Sr. Ariano Suassuna,
   
não se entusiasme muito com a imortalidade, ela, às vezes, surpreende desfavoravelmente. Será bom que a decepção não lhe bata à face, outra vez, como no episódio da “La Cumparsita”.

O caso, eu vou contar como o caso foi:

Um dia, em casa de Francisco Brennand – seu colega de turma e o artista extraordinário a quem todos admiramos – chega o padre vigário da Várzea, o bairro recifense, hoje tão renomado, por conta desse pintor ceramista, e o anfitrião, feliz, exclama:

– Padre, veja quem está aí!

O padre olha para Suassuna, desconfiado, sem saber quem era. Brennand, no afã de salvar as aparências:

– É porque eu não disse o nome dele. Quando eu disser o senhor identifica.

E o padre:

– Quem é?

E ele:

– É Ariano Suassuna.
 
O padre confessou, honestamente, nunca ter ouvido falar. Então, Brennand, no esforço derradeiro:

Mas, padre, é o autor do Auto da Compadecida.

O rosto do padre se iluminou:

– Ah! Essa eu conheço – e emendou logo a pergunta: – O senhor tem composto muito?

Foi quando Suassuna, sem entender nada, observou-lhe:

– Não, padre; eu não sou compositor.

O padre, novamente perdido, rebate:

– Mas o Dr. Brennand não acaba de dizer que o senhor é o autor de “La Cumparsita”?
 
Escutem, agora em sério, Ariano e Zélia, pois os trato na intimidade acadêmica: dependurem, lá na casa da Rua do Chacon o diploma da Academia Brasileira de Letras junto àquele de benemérito da Associação dos Cantadores e Violeiros do Nordeste e, assim, promovam a união indissolúvel de Machado de Assis e Austregésilo de Athayde a Antonio Marinheiro e a Antonio Marinho, para não falar num montão de outras boas-gentes, como certamente se referira José Sarney.
 
Depois, não esqueçam que aplaudem as cenas desta noite, outros paraibanos que se pernambucanizaram, desde André Vidal de Negreiros, passando por Odilon Nestor, Augusto dos Anjos, Virginius da Gama e Melo, Aderbal Jurema, Assis Chateaubriand, José Lins do Rego, e chegando a Marcílio Campos, a Tarcísio Pereira, a João Câmara e a Edilberto Coutinho. Ademais deles, também os doidos que fizeram a alegria de nossas respeitáveis Cidades – Taperoá, Lajedo e Limoeiro – porquanto cidade sem doido não merece respeito. Falo da Velha do Badalo, de Júlia Doida, de Manoel Penico e de Inácio Carreta.

Pois bem, aquele que o saúda se empavona ao dizer que se apresenta nesta Sala solene com cheiro de pólvora, impregnado do suor das lutas políticas e familiares, entupido de códigos de honra e sempre com o olho na mira, por imposição das disputas de vida e morte.
 
Devo, finalmente, anotar que o que eu disse de Ariano é muito pouco para o muito que ele é.

Desejo combinar – e como combinam! – o fardão e a viola. Quando Manuel Bandeira assistiu a uma cantoria de viola entre os irmãos Dimas e Otacílio Batista, desabafou, em “Cantadores do Nordeste”:
   
Saí dali convencido
Que não sou poeta não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação,
Como faz Dimas Batista
e Otacílio, seu irmão.
   
Assim, para que ninguém duvide da harmonia fardão-viola – para que todos os presentes possam assistir, sem duvidar, a um desafio de viola, embora erudito, eu convoco à minha fala dois poetas (que dedicaram poemas entre si) e dois poemas; convoco o aqui já convocado Ariano Suassuna e convoco o pernambucano Marcus Accioly, aqui também presente. O desafio é em forma de martelo.

Ariano Suassuna começa, “ante um retrato de Camões”:
   
Se, na noite de chuva, a tempestade
em solitários galhos açoitados,
revivesse os navios naufragados
e o travoso gemer da soledade;
se, da grave assonância da vontade
entrever se pudesse o sacrifício,
nesse claro e cansado frontispício
quem, mais do que teus olhos, cantaria
da vida o caso cego e a galhardia,
a luz flamante e o sacro desperdício?
   
Marcus Accioly responde, evocando o maranhense (rima e solução) Catulo da Paixão Cearense:
   
Sobre as cristas das pedras pousam anjos
Para ouvir estes rudes desafios
Que só hão de cessar ao sol nascente
Pois que a noite tem cantos como os rios.
E estes cantos são notas ou arranjos
De violas, rabecas e pandeiros
Que, marcando o compasso do repente,
Fazem os passos da noite mais ligeiros
Porque o dedo da gente quando esfola
o aço firme e sonoro da viola
que parece chorar enquanto canta,
Eu, lembrando Catulo quando falo,
Ouço a lua cantar dentro do galo
Que carrego por dentro da garganta.

   
Minhas senhoras, meus senhores,

a cantoria vai continuar pela noite adentro, até o sol nascer. Cedo a retórica à poética. Talvez seja invulgar a cantoria nesta Casa, dentro desta Casa de Machado de Assis. Mas ela irá virar a noite, e eu devo dizer, agora, a todos: Boa noite. Até amanhã. 
  

9/8/1990