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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ALOYSIO DE CASTRO

SENHORES:

Admitindo-me a ocupar nesta Academia a cadeira que pertenceu ao Dr. Osvaldo Gonçalves Cruz, seguramente não cuidastes em lhe dar um substituto entre vós. Porque se a complacência dos vossos sufrágios aconteceu recair em mim na ocasião de tão sensível perda, nem vós poderíeis supor que assim preenchendo a vaga opúnheis à glória do morto um nome à altura dele, nem eu, que amo a ilusão, haveria de iludir-me, desconhecendo a realidade. É certo, buscando, desta vez, a um médico para suceder a outro, não fizestes praça daquele amor dos contrastes, que costuma decidir das vossas preferências. Ora, vede: nesta mesma cadeira, encimada pelo nome de um grande romancista, Bernardo Guimarães, o meu preclaro antecessor substituiu a um poeta. Julgais assim temperar as cousas com a diversidade dos homens e não será a expressão menos bela do vosso gosto por na mesma balança todas as forças espirituais, prezando por igual a obra idealista de um Raimundo Correia e os estudos positivos do sábio alçado às mais altas esferas de meditação científica.

Quando acertastes de eleger o Dr. Osvaldo Cruz, não faltou quem se perguntasse se acaso era ele homem de letras para transpor o augusto limiar deste cenáculo. Ele era o que era, e a um vulto assim todas as portas se abrem com honra, em toda a parte está bem e em seu lugar.

Pergunta igual com razão se há de fazer quanto ao recipiendiário de hoje: e médico que nunca saiu de sua medicina, porque cresceu amando-a no Pai, nem aos meus olhos me chego a justificar quando torno sobre mim e me encontro na vossa companhia, já que nas lides da profissão não tenho nome ou serviços que me suprissem títulos literários. Não os faltam a doutos colegas meus do magistério médico, e um deles, a quem adivinhando-me os segredos da afeição, designastes para me receber, de novo vos vai hoje admirar a louçania e o lavor das suas letras, entretendo-vos com assunto tão pobre.

Por singular coincidência (sabeis o que são coincidências nas Academias), ao vosso Afrânio Peixoto coube acolher neste recinto, faz cinco anos, ao Dr. Osvaldo Cruz. Nomeou-o, com justiça e aplauso, grande homem. Ides ver não dirá menos de mim, porque, bom acadêmico, lá terá lido o seu Voltaire e sabe o que é dos usos.

A certo inglês, que o interpelava acerca das Memórias da Academia Francesa, contestou Voltaire não havia Memórias, o que havia eram “sessenta ou oitenta volumes de cumprimentos”.
Tomando em mãos um dos volumes, deixou ver o colocutor não lhe entender o estilo: “Tudo o que aí percebo é que o recipiendário, tendo assegurado que o seu predecessor fora um grande homem, que assim também o fora o Cardeal de Richelieu, que o chanceler Séguier era suficientemente grande homem, e Luís XIV mais do que um grande homem, o diretor da Academia lhe responda pela mesma toada, acrescentando que o recipiendário bem poderia ser algo assim como um grande homem, e quanto a ele, diretor, não desprezava a sua parte.” Sabeis que é boa prática não descurar do modelo, e por sem dúvida mal não ficará entre nós o que tanto assenta na Academia Francesa, que já agora, por zelo da tradição, não pode mudar de costumes.

Seja o que for, não acrediteis que eu desconheça os impulsos que vos moveram, aceitando-me, com generosidade estreme, por um dos vossos. A razão das cousas anda quase sempre no sentimento e ainda naquelas em que acreditamos acertar pela justiça, é o coração, mago sutil e inspirado, que veladamente nos governa e encaminha. No dia da minha escolha, a um de vós disse eu que a Academia se contentara com razões de coração, e se agora vo-lo repito não será por supor que o duvideis.

Aceito como vosso companheiro, ao Dr. Francisco de Castro não sobrou vida para aqui se empossar na cadeira do Visconde de Taunay, e houve de agradecer-vos num discurso póstumo. Chamastes então a Martins Júnior, mas ainda este a morte o levou precipitadamente, antes que neste recinto recebesse as vossas recompensas. Veio por fim Sousa Bandeira, cujo passamento ainda nos enluta, e fiel à tradição evocou na sua entrada o antecessor imediato. Por modo foram assim as coisas, que não houve para o Dr. Francisco de Castro a oportunidade do elogio acadêmico, a que todos têm direito. Entendestes por isso contrabalançar de algum modo os fados, e pondo de parte conveniências, esquecendo a minha desvalia, me elegestes em memória de meu Pai. Assim, por vossas mãos que é dado chegar hoje ao posto que me faltava escalar para reproduzir na minha a carreira paterna. Comparando-as, estou a dizer em mim que muitas vezes podem as circunstâncias o que noutras pode o merecimento. A meu Pai tudo devo. Se acaso assim não fora, eu assim o quisera. Quem ama a verdade, a quem ama quer dever o mais que possa, para que a gratidão cresça o amor, e este não sabe limites.

Compreendeis, agora, a suave emoção com que, tocado nos meus mais caros sentimentos, agradecido me inclino à vossa bondade.
Invocando, data vênia, o nome do vosso malogrado companheiro de tão breves dias, espero que me tomeis a bem associar-lhe a lembrança do vosso primeiro presidente, mestre que lhe foi como a todos desta Casa.

Falar de si não é somente um mal, como o disse Renan, senão cousa a que falta a decência, conforme acrescentou o Mestre de Jacques Tournebroche. Não será contudo falar de mim trazer-vos algumas reminiscências pessoais do tempo em que convivi com o Dr. Francisco de Castro e o Sr. Machado de Assis, lembranças que me não parecem pouco a propósito neste lugar, onde conto viver com eles pelo pensamento e pela saudade.

Foi um dia, já bem longe, que conheci o mestre da nossa geração literária, quando, menino de colégio, entrei com meu Pai à Livraria Garnier. Era uma casa velha e escura, cujo soalho gretado tremia sob os pés. A um canto folheava livros certo homem de grande aspecto, a quem o Dr. Francisco de Castro logo se dirigiu com significações de estima. Não sabia eu quem era ele, mas recordo-me que lhe beijei a mão, ou porque adivinhasse que agradaria à vontade paterna, ou porque já no mais verde dos anos desponte às vezes o instinto das grandes venerações.

Enterneceu-se com o gesto o Sr. Machado de Assis. Mimou-me na face, dizendo-me que me vira quando ainda lhe cabia no bolso do casaco. Larga conversa conversaram os dois amigos. Ao despedir-se, bem me lembra, sorria o mais velho a dizer: “Sim, a vida é um baile de máscaras, uns vão saindo depois de outros. Já me sinto no fim do baile.” E repetia, com voz meio gaguejada, “a vida é um baile de máscaras”. Na rua interpelei meu Pai sobre que baile era aquele. Respondeu-me que eram cousas de filósofo. Não ajuizei ao certo o que fossem filosofias, mas nunca me esqueci do encontro e das palavras.

Aprendi depois que a amizade que ao grande escritor aliançava meu Pai, vinha da juventude deste, que em começos de 1877, estudante em Medicina, ainda no 4.o ano, chegava da Faculdade da Bahia, para nesta cidade concluir os estudos.

Seu gosto das letras logo o aproximou do Sr. Machado de Assis, já então o incontestado chefe literário, o qual lhe deu a mão, publicando num jornal um artigo do estudante sobre a morte de Thiers, e de bom grado prefaciando-lhe, um ano depois, um volume de versos, as Harmonias Errantes. O poeta durou pouco, logo trocou os versos pelas receitas. Bem o pressentira o Sr. Machado de Assis, na Revista Brasileira: “Confesso um receio. A ciência é má vizinha; e a ciência tem no Dr. Francisco de Castro um cultor assíduo e valente.” Não esqueceu, porém, o homem de ciência ao mestre que lhe concertara as primeiras rimas e por mestre o teve sempre.

Quando em 26 de abril de 1901 assumiu o Dr. Francisco de Castro a direção da Faculdade de Medicina, a seu lado quis ter no ato da posse, como único convidado especial, o grande romancista, a quem na Congregação dos Professores deu lugar de honra. Fui designado para o acompanhar nesse dia ao velho edifício da Faculdade. Busquei-o no Ministério da Aviação, onde trabalhava, subimos a pé a Rua da Misericórdia, e como íamos andando ia eu rememorando calado, pelo que me sugeria a companhia daquele pobre velho, a mocidade de meu Pai. Adivinhou-me o mestre os pensamentos, bateu-me com afeto no ombro para repetir que conhecera meu Pai quando da minha idade, e como eu então estudante de Medicina. Dizendo-me isto sua voz era a das recordações, e era como quem dizia os tempos vão depressa.

Logo falamos de outras cousas, das casas do vetusto quarteirão que cruzávamos, cheio de reminiscências coloniais. Como eu as tachasse de desgraciosas e tristes, corrigiu-me brandamente, “São feias, são, mas são velhas.” Porque ele era assim bom, e na conversa como nos livros, se notava defeito, logo acudia com a desculpa, ou lembrava qualidade que o fizesse esquecer.

Poucos meses passados desse encontro, vejo o vosso antigo presidente em casa de meu Pai, a quem fora pedir ultimasse o discurso que deveria apresentar a esta Academia, para a posse, que já tardava. Era domingo e meu Pai, com paciência que daqui lhe agradeço, me iniciava no conceito das doenças, traduzindo-me em voz alta a Patologia Geral de Cohnheim, que então e depois muitas vezes me gabou como livro de polpa. Estava entre os livros e ali mesmo recebeu o amigo. Não deixei passar a ocasião e depois muitas vezes me gabou com livro de polpa. Estava entre os livros e ali mesmo recebeu o amigo. Não deixei passar a ocasião de assistir ao colóquio, porque sobre prezar como fortuna a afeição que tão antiga e segura sabia entre os dois, já me dava às pretensões de querer entender a filosofia do autor de Quincas Borba. Nem errava supondo que a mais alta filosofia é a que sai na conversação.

A visita foi longa e animada. Como estavam de vagar, discretearam de letras, dos insetos que picam os livros, tema obrigado entre bibliófilos, e por fim, se bem me lembro, do Sr. Rui Barbosa e da beleza do seu gênio. Os gestos foram então de admiração exaltada, naqueles dois homens de maneiras tão medidas. De quando em quando abriam as estantes, tomavam de um livro e de outro, velhos volumes clássicos que folheavam, sorrindo contentes das horas. Baixava o crepúsculo quando findou a entrevista. Da sua coleção das obras de Ruskin, autor que lhe era os mais conversados, tirou meu Pai um tomo, que ofereceu ao visitante. Relutou este em aceitar, como se lhe doesse ver truncar-se a série, mas acabou cedendo, ninguém recusa o que vem dado do peito. Despediu-se com o livro debaixo do braço, e ainda mal que eram despedidas para sempre. Poucos dias passados já não vivia o Dr. Francisco de Castro.

Ainda me sangrava o luto dessa perda, quando uma noite fui ao Cosme Velho entregar ao Presidente da Academia o manuscrito incompleto do discurso de meu Pai. Visita curta e calada. O Sr. Machado de Assis leu o pórtico da oração, fez um sinal com a cabeça, assim como traduzindo a incerteza das cousas, e ao estender-me as mãos quis consolar-me, deixando-me crer que viria o meu tempo de ter ádito à vossa companhia. Quando se é jovem e se escuta a voz de uma vida digna e experimentada, as palavras de animação exaltam em nós arrojadas ilusões. Tais palavras as ouvi do mestre augusto.
Descendo a ladeira, naquela noite adornada de estrelas, em que as águas do rio próximo me pareciam soluçar, não me saía dos olhos o gesto da incerteza das cousas, mas em meu peito despontava a esperança deste dia e desta doce ventura. Tudo isso é para dizer-vos que por agora, entre vós, me volvo para aquilo tão conhecido de Vigny, ao definir o ideal da vida: “une pensée de la jeunesse réalisée dans l’âge mur.”

Para me vincularem a outros tempos e outras impressões, aqui boa fortuna encontro, confrades de hoje, aos quais tenho por dever saudar com veneração, alguns dos meus antigos mestres de humanidades, no Colégio Köpke, onde professavam com rara excelência: o Sr. Silva Ramos, que me doutrinou a gramática e o horror da gramatiquice e um bom dia, se mal me não recordo, se quedou atalhado, quando por empréstimo lhe pedi o volume dos Adejos, como se receasse perder a autoridade por lhe terem os discípulos descoberto a lira, que encordoara em Coimbra, e o austero filólogo forcejava de esconder; o Sr. Mário de Alencar, que com mimo me pôs nas mãos o Eurico, de Alexandre Herculano, e primeiro me fez sentir as sonoridades do nosso idioma, na majestade daquela prosa; o Sr. Rodrigo Octavio, que benévolo me corrigia os cadernos em que lhe apontava as lições de literatura, das quais bem lhe quisera prestar melhores contas; o Sr. Luís Murat, que duas vezes por semana me levava a passeios pelo nosso Parnaso e sobre as Ondas me ensinou a contar as sílabas dos versos. Acreditai, Senhores, não é sem timidez que em presença de testemunhas de quão pálidas foram as minhas auroras, me desobrigo do primeiro dos deveres acadêmicos.

Nem sempre será fácil, ainda que o pareça, dizer de quem muito já se disse. Do Dr. Osvaldo Cruz, tão infausta e precocemente falecido, em Petrópolis, a 11 de fevereiro do ano atrasado, da pessoa e das obras, copiosamente falaram, nas Academias e na imprensa, as nossas mais respeitáveis vozes. Falou por todos a altiloqüência do nosso augusto Presidente, nem lhe foi preciso ser da medicina para com pena larga e erudição enciclopédica escrever do meu antecessor um panegírico digno dele. Vindo por último venho, pois, contar-vos o que muito já sabeis. Quisera ao menos ser sóbrio; se assim puder ser, só das circunstâncias terá o merecimento.

Contudo, é certo que se podem dizer e ouvir vezes sem fim aquelas mesmas cousas em que a nossa admiração se não cansa. Quem sabe amar mil vezes diz o seu amor, e nunca bastantemente o terá dito; quem de verdade reza tem a prece sempre nova, e a vida inteira é uma oração. Sempre há, pois, o que louvar num homem já muito louvado, quando assim o mereceu. Tudo está feito se a grandeza do objeto supre a insuficiência do narrador: o mármores, é o mármore, ainda quando lhe falte artista para da excelência da substância desentranhar a maravilha da forma.

No Dr. Osvaldo Cruz a vida foi exemplo e ascensão gloriosa.
Logo de muito moço manifestou com firmeza a vocação do espírito, quando estudante de médico, exercia em nossa Faculdade, como ajudante de preparador da cadeira de Higiene, um desses lugares de aprendiz, onde não raro a boas horas se revelam os atributos de alta genialidade, que distinguem mais tarde grandes observadores. Doutorado com apenas vinte anos (nasceu a 5 de agosto de 1872), partiu mais tarde para a França, onde por um triênio se fez, com a mais lidada aplicação, aluno do Instituto Pasteur, que cursou distintamente, de pronto dominando como técnico primoroso os métodos da investigação experimental e chegando a possuir a fundo a bacteriologia. Daí trouxe ao regressar cabais estudos, e de então por diante nunca desertou o laboratório, em cujos assuntos não custou a conquistar autoridade magistral.

Quando, pois, em 1903, o louvado governo do Conselheiro Rodrigues Alves, fazendo do saneamento da capital do Brasil o artigo coronal do seu programa, entregou ao Dr. Osvaldo Cruz a nossa administração sanitária, se a escolha recaía em nome ainda sem consagração pública, acertava em quem se achava à altura da grave missão.

Aqui vivíamos nesse tempo em uma cidade vilescida por terrível morbo, que anualmente lhe extinguia milhares de vida, e dela fugia o estrangeiro como de respirar no podredouro de fétido paul. O mal, como todos os males, tivera entradas fáceis, e desde que a sobressalteara pela primeira vez, em 1849, não mais a tinha abandonado. A cada estio, com violência e rapidez, se desencadeava o contágio, crescendo os óbitos de mais a mais, o desalento e a miséria, a que nos resignávamos na ignorância dos meios de nos esquivarmos ao perigo epidêmico.

Sobre minar, havia meio século, todas as nossas energias, reduzindo-nos o comércio marítimo e afugentando pelo terror a corrente imigratória, estorvando, enfim, todas as formas do progresso, era a febre amarela permanente ameaça de nos pôr às más com as nações vizinhas, constantemente expostas à invasão do flagelo.

Urgia assim esforçar todos os recursos para remover essa insalubridade nefasta, que disso vitalmente dependia o avanço do país. Obra tão magna estava a pedir desusadas energias. Logo o Dr. Osvaldo Cruz se revelou qual era, afastando o mais duro obstáculo de quem administra, a sugestão do desânimo, que se insinua por mil formas e a que a rotina tanto deve em seus triunfos. Seguro de si mesmo, em si tinha ele forças para vencer e dobrar a inércia do ambiente.

A ciência acabava de assegurar o êxito de uma profilaxia específica contra a febre amarela, determinando em certa espécie de mosquito o agente único da propagação do mal, e as condições em que nocivamente atuava. Pouco vos importe a denominação, já aqui vos avisou o Sr. Medeiros e Albuquerque que até os mosquitos mudam de nome. O sistema profilático decorrente desse descobrimento, em curto espaço, saneara Havana. Cumpria adotá-lo no Rio de Janeiro, abolindo os velhos processos, vãmente empregados por tantíssimos anos. Não mais se tratava de submeter à contraprova as experiências dos médicos americanos em Cuba, já tão de fundamento assentadas, e fora daqui afeitas por doutrina indisputada. Estava a questão em executar com firmeza e coragem esses novos preceitos científicos, insular os doentes, protegê-los mecanicamente contra a picada do veiculador, atacar a este pela destruição das larvas, nos empoçamentos, nos encharcadiços, nas cisternas, onde se desenvolvessem.

Surgiram para logo dúvidas, opiniões desconcordes. Pediam-se novas provas à evidência provada. A doutrina estribava em fatos irrebatíveis, a opugnação contentava-se em deblaterar com palavras. Não custava, nestes termos, mover campanha contra a ação projetada, e na imprensa, no Parlamento, na praça pública, as vozes se engrossaram, incitando a resistência e o furor popular. Na mesma classe médica, não há ocultá-lo, à parte pequena minoria, os que acintosamente não combatiam a nova orientação profilática não a tinham senão por meia verdade. Contra a autoridade higiênica fizeram parceria todos os ardis da insídia, da ignorância e da maledicência; doestaram-na, invectivaram-na, argüiram-na desabridamente, apontando-a à opinião como temerária e criminosa. Não se mexeu o Dr. Osvaldo Cruz, invencível a todos os ataques. Sorriu-se, a recordar Terêncio e a sua comédia Andria, onde vem dito que a verdade traz ódio. Gritaram sem que ele descesse ao raso das discussões apaixonadas. Ao governo que o nomeara, assegurou a exterminação do mal, em prazo fixo, se contasse com os recursos por que instava. O compromisso foi formal, e ele o selou com a garantia de sujeitar-se à última das penas. O chefe do Estado, com sabedoria de experiência, deu mão forte ao auxiliar, previu, confiou decidido, facultou-lhe o que pedia, créditos para o custeio do oneroso serviço, leis garantidoras da execução do novo regulamento sanitário.

Cidade extensa e populosa, de topografia acidentada, tudo sobremaneira dificultava entre nós a execução das medidas idôneas. Havia mister uma vigilância extenuante, um afã de todas as horas. Empenhou-se a batalha. Ordenadas as falanges o Dr. Osvaldo Cruz, ele mesmo como bom capitão se pôs à testa das tropas. O projeto do combate, assim como o planejara assim o praticou. Não houve desfalecer nem fraquejar, nem abrandar mão em providências de indispensável rigor. Então, de ano para ano entrou a rebrandecer a investida do inimigo, e por tal arte que antes da época aprazada a vitória estrondeou, redento o Rio de Janeiro de sua sinistra praga. O Dr. Oswaldo Cruz não havia quebrado das suas promessas. Tudo foi em poucos anos, bem se poderia dizer num dia, comparando a obra e o tempo. Não se perderam, assim, os custosos melhoramentos que pela mesma época modernizaram e formosentaram esta capital, mal afortunado sorvedouro de vidas mudado em terra abençoada e salutífera.

Imortalizado pelo feito, que só em si valeu pelo renascimento do Brasil, não se deu ao descanso o Dr. Osvaldo Cruz, não suspendeu a sua ação benfazeja, e desfadigando-se no próprio trabalho, expugnou o mal amarílico de outros pontos do nosso território.

Fazia alguns anos, aqui se juntara uma peste a outra. Entrara por Santos, com passo aberto, o mal levantino, cuja epidemia nos assolava. Mas veio o mesmo saneador que fizera modelo o Departamento da Higiene Pública, e com as armas que aperfeiçoou abateu a doença em que ardia a cidade.
Não foi tudo. Longe daqui, ao norte do país, a engenharia esbravava a região amazônica, cujos penetrais devia transpor a via férrea, Madeira e Mamoré, a cuja construção nos empenhava um tratado com a Bolívia. O trabalho era luta do homem com a natureza indômita, e o mesmo solo ubertoso em que as árvores, eternamente verdes, hauriam a seiva poderosa, vertida na opulência das frondes e das resinas, era o leito putredíneo onde proliferavam os germens da doença e da morte. Ninguém podia padecer a intemperança e a aspereza desses lugares palustrais, cuja depopulação se fazia por epidemias pavorosas. A hostilidade do meio detinha o braço dos operários e o açoite das febres os dizimava, como varre ondas humanas a metralha da guerra. Dificuldades tão tremendas haviam baldado todas as tentativas empenhadas na construção da estrada, e ainda uma vez, em 1910, ameaçavam sobrestar os trabalhos, entregues a poderosa companhia estrangeira. Foi quando buscaram os meios de salvação no Dr. Osvaldo Cruz, a quem pela mesma ocasião cometeu o Governo o estudo das condições médico-sanitárias do vale do Amazonas.

Com alguns discípulos de primeira força, sem demora se partiu o notável higienista ao teatro de tão grandes calamidades, embrenhando-se com os companheiros naquele trecho ferozmente inóspito, onde ao longo dos rios se estendem as zonas paludanas, pauis, igarapés, alagadiços, espraiados e aguaçais polutos. Pela primeira vez se estudou, então, in loco, com a necessária individuação, a nosologia daquelas extensões ubérrimas, onde a vida humana tragicamente se troca pela riqueza dos seringais.
“A gente daquelas paragens”, verificou o Dr. Osvaldo Cruz, “não tem noção do que seja estado hígido.” Mas não havia duvidar da segurança das medidas que tornariam habitável o letífero vale. “É apenas questão de tenacidade e resolução, e o duende do Amazonas, campeão da morte, ruirá por terra.”
Na verdade que postos em prática, no serviço sanitário da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré, os conselhos pautados por tão grande autoridade, os resultados cabalmente confirmaram as previsões, prosseguindo com próspero êxito aquela obra, de tanto alcance para o desenvolvimento dessa vasta zona do sententrião brasileiro, e cujas conseqüências, na vida econômica do Brasil, já foram comparadas às da abertura do canal do Panamá, na dos Estados Unidos.

Nestas e noutras vitórias do higienista sempre brilhou a excelsitude do seu saber. Estudiosíssimo do ramo, em que fez a sua especialização médica e tão preclaro se tornou, não lhe bastava o espírito ornado de sólida erudição, mas pretendeu e alcançou aqueloutra segurança fundada na experiência dos fatos e no exame direto dos fenômenos. Pesquisador exato, sabia perquiri-los em suas manifestações naturais, sabia criar-lhes a oportunidade de novas condições, esgotando os métodos e processos inquisitivos e desenvolvendo, dia a dia, a sua capacidade de observação. Não lhe minguava nenhum dos dons do experimentador, perfeito observante das regras da investigação científica, que conhecia a preceito e levara à última extremidade do rigor.

Homem de laboratório, sempre voltado para o objeto da pesquisa, num recolhimento a que nada deturbava, ainda quando aparentemente distraído com o trabalhoso exercício de obrigações administrativas, sabia ele defender-se do incoerente dispersar de energias, em que às vezes em vão se vêm a perder árduos esforços.

Aos que se educam nesse hábito nada lhes vence a constância e a paciência no recomeçar cem vezes o ensaio cem vezes infrutuosamente tentado. A curiosidade é de todos os instantes, o cuidado sem remissão, a abnegação infatigável.
Era desses o Dr. Osvaldo Cruz, e dessa paciência ainda nos fala o instrumento dos seus últimos estudos, na sala que no seu Instituto é hoje um museu das recordações de sua vida. Ali se vê conservado o engenhoso formigueiro que fizera construir para os ensaios, a que havia seis meses se entregava, acerca da biologia das formigas, e diante da qual, a lente na mão, gastava as horas, concentrado e absorvido, na observação calada e fecunda.

Sábio, tinha em desprezo as jactâncias e a doutorice palavreira, que à pura força quer passar praça de ciência. Nele, ao contrário, tudo era silêncio, modéstia, decoro e prudência.
Alcançado o fato que buscava descobrir, a causa que procurava rastrear, o mecanismo que lidava por aprender ou de algum modo interpretar, não se convencia sem que sobrepesasse os argumentos com severa autocrítica, e as suas condições só as radicava com as provas na mão.

Na análise dos fatos biológicos sabia onde acaba a ciência e começa a fantasia, aí onde tantos se perdem, com quererem ir mais longe do que se pode. Porque ater-se ao justo limite da boa observação não será descrer, nem tudo supor incerteza e ignorância. É, ao contrário, caminhar seguro, para que se não perca aquela fé imensa e viventíssima, que a Pasteur nunca faltou, ainda nos anos extremos.
Condição primordial no desenvolvimento da ciência, esse entusiasmo, que está na sinceridade mesma dos seus adeptos, não será, contudo, em muitos inconciliável com tal ou qual ponta de ceticismo, a exemplo de tantas harmonias, que tiram sua origem de elementos contraditórios. Nem desse ceticismo se despiu, entre outros, Magendie, um dos iniciadores da Filosofia experimental, do qual corre por certo se deleitava, em seu curso do Colégio de França, com anunciar aos discípulos resultados que de antemão sabia seriam depois contraditados na demonstração prática. Ria-se o auditório e não contraditados na demonstração prática. Ria-se o auditório e não menos quem lhe armara a decepção.
Era isso, sugere Renan, como um comprazimento do ceticismo. Daí lhe não veio mal a Magendie, porque, atinadamente pondera um dos seus comentadores, esse que assim procedia era o Magendie professor, cujos laivos de descrença naquilo que ensinava seria meramente chiste, ou toque de faceirice, ou acaso generosidade, no intuito de dar a ver aos alunos que ainda na mão de doutos e traquejados lá alguma vez acontece sair a experiência pelo avesso e, lição por lição, todas eram de anotar-se; o outro, o Magendie investigador e descobridor, esse não conhecia desanimação, tinha o dom de crer, nem jamais perdeu a fé no buscar a verdade.

Esse poder de fé, essa condição, em falecendo a qual já não medram as outras, não só em sumo grau a possuía o Dr. Osvaldo Cruz, senão que a soube poderosamente comunicar aos que em seu ensino se instituíram.

Não estavam suas obras nos ensaios, não muitos, que de mão própria escreveu e publicou com grande aplauso. Estavam no seu Instituto, na sua escola, nos seus discípulos, de cujos trabalhos participava com a colaboração do mestre, habituado a se sumir para realçar aqueles, em cujo êxito sobradamente se compensava.

Sabe-se que maculada esta cidade com a importação da peste oriental, força foi criar-se aqui um instituto para o preparo dos soros adequados, fundação do município levada de projeto a obra pelo Dr. Pedro Afonso, diretor do Instituto Vacínico, ao qual se anexou o outro. Foi quando esse notável médico, cujo nome com justiça por tantos anos luziu entre os dos nossos grandes cirurgiões, espontaneamente buscou o Dr. Osvaldo Cruz, então ainda mui jovem, confiando-lhe os trabalhos técnicos do novo instituto, escolha gloriosa que se lhe deve, mais que a ninguém, agradecer.
Desenvolvendo-se em pouco os laboratórios de Manguinhos, gratuitamente dirigidos, em ocasião bem difícil por espaço de três anos, pelo Dr. Pedro Afonso, logo passou o Instituto para o Governo Federal. Entrou a regê-lo em 1902 o Dr. Osvaldo Cruz.

Atravessava por esse tempo a Medicina um período de verdadeira reformação com os aperfeiçoamentos alcançados nas aplicações dos métodos de laboratório aos problemas patogênicos e à prática da clínica, ganhando o diagnóstico, graças ao concurso das reações biológicas, uma precisão ainda desconhecida, e a terapêutica novas e prestantes armas. Intuição médica, olho médico, tino médico, excelências de ouvido, argúcias de raciocínio, todos esses primores da arte que outrora celebrizavam seus eleitos, vieram a pedir o complemento do laboratório, sem cujo auxílio a cada passo se veria em entalas ainda o clínico muitas vezes experimentado em prática larga e consumada.
Preciso era assim remodelar o Instituto de Manguinhos, ampliando-lhe os fins a que nos começos se destinava. O cometimento requeria a par de indiscutível capacidade científica um poder de vontade não pequeno. Outros não eram os requisitos que marcavam a personalidade do Dr. Osvaldo Cruz, a sua regra e a sua força. Atirou-se com aferro à obra, que já trazia o cunho das criações perduráveis. Ele próprio tudo indicava, tudo via, tudo previa, tudo dirigia, com incrível atividade, não tão-somente na parte da construção material, senão ainda no tocante à difícil organização técnica.

Eram idas ao repontar do dia e tornadas por noite velha. Revelou-se assim em nova prova o homem de ação decidida, reconhecido como dos raros exemplares que temos contado. Viu enfim a casa feita e prosperada, um monumento cujas colunas lhe guardam saudade.
Não podia subir mais de ponto o esmero, na faina nobilitante pela ciência. Trabalhos e descobertas científicas que fora de lugar seria aqui referir, sequer muito de superfície, logo tornaram por dos melhores entre os congêneres o nosso Instituto, em cujo frontal fez o Governo esculpir por brasão o nome do Diretor, já consagrado por universal voto.

Tudo ali era esforço, constância, disciplina apertada, e até muito de noite se vigilava no estudo, com ardor insofrido, porque havia aquela alegria com que os trabalhos se fazem leves. O chefe era exemplo. Superintendendo o Instituto, ao mesmo passo que executava a grande obra do saneamento do Rio de Janeiro, a todas e tão grandes obrigações acudia com inexcedível dedicação; e o mesmo administrador que consumia horas em aplicar regulamentos e dar audiências sem vergar de cansaço, trazia a ponto e em dia, com admirável espírito de método, o precioso cabedal da sua vasta instrução.

Nem era só o saber que assegurava ao Dr. Osvaldo Cruz a singular preeminência de chefe de escola, e lhe dava sobre os discípulos tão notável domínio pessoal. Possuir grande doutrina é, sem dúvida, condição primeira para isso; com ela se querem, porém, predicados outros e não poucos, que só de muito longe em muito longe se vêm a reunir em um homem, um espírito são, feito de crença e entusiasmo, de moderação e justiça, um verbo sereno, um ânimo inteiro, de uma retidão que não quebre, uma respeitabilidade que edifique como uma exortação de todos os instantes, um mostrar em si por obra o que dos outros se exige. Quando assim, quando tantos prestígios se aliançam, já não é tão-só a admiração que vincula o mestre ao discípulo, é um laço mais forte, um querer de devoção. Não de outro modo ao Dr. Osvaldo Cruz queriam seus auxiliares do Instituto, sua família científica. Para os guiar nos trabalhos, com igual solicitude tomava a cada um de per si, perscrutando-lhes a veia, suscitando-lhes a inspiração, premiando-os com o seu aplauso.

Tal mestre e tais discípulos em poucos anos deram a Medicina no Brasil considerável impulso, esclarecendo de raiz, por descobertas de vulto, numerosíssimos assuntos da chamada patologia tropical. “Os múltiplos problemas da nossa patologia”, escreveu o Dr. Osvaldo Cruz, “só deverão encontrar suas resoluções aqui, e não podíamos esperar que viessem elas de torna-viagem, muitas vezes após estudos incompletos, baseados ora em informações falhas, ora em material deficiente, impróprio ou alterado.” Era isso nacionalizar a nossa Medicina.

Sem falta que antes dele havíamos tido pesquisadores de primeira ordem, a cujas investigações sobrelevava, fora outros muitos, o mérito de executadas em época pouco vantajosa às mesmas. Porém só com o Dr. Osvaldo Cruz se veio a fundar, na força do termo, a experimentação médica em nosso meio e só de então para cá começamos a nos governar por observação própria. Assim se fez com fatos novos uma obra nova quanto à etiologia, profilaxia e tratamento de muitas doenças, nomeadamente as determinadas por protozoários, uma obra nova quanto à Biologia e sistematização de espécies referentes à Zoologia médica, uma obra nova de veterinária, rumo até aqui por investigar.
Não tardaram a alcançar muitas coroas os que tais provas deram da nossa cultura científica.
Representando o Brasil no exterior, era o Dr. Osvaldo Cruz recebido com veneração, e onde havia sábios com eles praticava de igual. Em brilhantes exposições anexas a Congressos Internacionais de Higiene, ao Instituto Osvaldo Cruz tocaram sempre os melhores lauréis. E nem sem orgulho vemos Dr. Carlos Chagas, digno êmulo de seu mestre, decorado com a medalha Schaudinn.

Se em nossas obras pomos algo de nós mesmos, se diria que o Dr. Osvaldo Cruz todo ele estava no seu Instituto, naquela casa que ultimou com tão boa mão e tanto lhe falava, com os realços de suas cores vivas, seus arcos mouriscos, seus lampadários, seus mosaicos e seus reflexos de ouro. Pode-se questionar se a um grande laboratório de estudos médicos se deva conceder tamanho luxo arquitetônico e o fausto daquele estilo, sem faltar ao sentimento da propriedade. Mas não é caso de discutir as teorias estéticas do homem de ciência que o erigira, artista de um espírito cheio de lindezas.

Severo e frio figura-se em geral o sábio, de todo insensível à contemplação poética, grave engano de que prevenia o químico Berthelot: “Guardai-vos de supor que a ciência torna árido o coração do homem e só lhe inspira austera e egoística vaidade.” O mesmo entendeu Ramon y Cajal, sábio de boa lei, cuja obra o colocou na primeira linha da ciência contemporânea, e usa falar com a eloqüência profunda em que se repassa a voz dos verdadeiros mestres. Ao enumerar no seu discurso das Regras e Conselhos sobre a Investigação Biológica, as qualidades indispensáveis ao pesquisador, independência mental, gosto da ciência, continuação do trabalho, religião da pátria e amor da glória, soube ter em conta “o temperamento artístico que o leve a contemplar a beleza e a harmonia das cousas”. Ser artista é ter alma, e saber observar exige arte. “Não basta examinar”, muito bem o disse o professor espanhol, “é mister contemplar, impregnando de emoção e simpatia as cousas observadas. Façamo-las nossas, assim pelo coração como pela inteligência, e só dessarte nos entregarão os seus segredos.”

Tudo faria descobrir no Dr. Osvaldo Cruz uma organização assim, em que o sentido do belo afinava as outras qualidades. Com seu tanto ou quê de romântico retratado nos rasgos das feições, esse idealista que tão singularmente irradiava energia na força criadora das suas obras, bem podia cingir à cabeça douta o louro sagrado e a coroa, prêmio dos poetas.

Podia ser que na expressão literária não estivesse, e suponho não estava, a manifestação mais brilhante do seu espírito artístico, embora amasse as letras com apaixonada efusão, e em sua pessoa transluzisse a poesia e o mistério de uma alma capaz de silêncios profundos.

No Instituto, em que todo se dava à ciência, tinha por aposento particular pequena sala, no mais alto da casa. Aí, portas adentro, nada de luxo, simplicidade de cela; um leito pobre e por único livro a Imitação de Cristo, em que Deus lhe terá falado como aos que verdadeiramente o possuem. Nesse remoto retiro não raro se encerrava, para buscar com a vista os pássaros perdidos e da janela conversar com a noite silente, contemplando dos adarves da sua torre, ao de cima das vulgaridades, a beleza do sonho, na evocação do que pode ser a um tempo flor, estrela e mulher. Quem sabe de cada um quais as melhores horas? Das suas decidiria ele se as do sábio ou as do poeta; mas como fosse, não tereis desacertado, se acaso também neste atentastes ao elegerdes o substituto de Raimundo Correia.

Raimundo Correia... Revocar este suave nome é comover-vos com a imagem de quem tão fundo amastes, admirando aquela perfeição imaculada e igual em todos os lances da vida.
O instinto poético, que era a sua mesma natureza de harmonia e sensibilidade, lhe dava à lira uma alma misteriosa.

Já não compunha versos o juiz de egrégia virtude em que acabou, mas ninguém dirá que nele não viesse ainda o poeta de outrora, nem guardasse através de nostalgias profundas uma entreaberta por onde olhar o céu, o sol da manhã, o azul da tarde e o luar sereno. Céleres voam os sonhos, exclamou Raimundo no soneto dos vinte anos. Voarão? Por que a distância das idades afastaria de nós o que em nós mesmos vivia e em nós adorávamos? Um coração profundo é o altar dos sonhos e quem nele recolheu os votos apaixonados de um dia, nele se arrimou para erguer a esperança e a fé, trocando mudas confidências com o ídolo longínquo, esse o não deixará desabar, quando tudo desabe e os tempos se mudem, nem jamais perderá o bom contentamento para volver alguma vez aos caminhos da juventude. Nem fenece a ilusão; se perdida a supomos, por magia ressurge quando já desesperávamos, graças de musa fugidia que se oculta a sorrir porque quer ser procurada. Tornam os sonhos, sim, cada qual como foi na glória do seu dia, mas agora sonho e saudade, desejo e evocação. E os dias são como rimas, se é assim a rima como a definiu a senhora de Staël: “a imagem da esperança e da recordação”. “Un son nous fait désirer celui qui doit lui répondre, et quand le second retentit, il nous rappelle celui qui vient de nous échapper”...

Raimundo Correia foi o poeta da dor, se como aqui lhe pareceu ao Dr. Osvaldo Cruz, o foi do amor. Querendo ou não, ele mesmo como era apareceu, quando em versos de mão prima assim disse, no “Amor Criador”.

Coração, que és do amor o dócil instrumento,
Rende-te, coração; rende-te ao seu poder;
Homem, vem, neste ameno oásis, suarento
E exausto, adormecer!
Enche um século a dor, e o gozo um só momento;
Existir é sofrer;
Para que, em tua espécie, a vida, o sofrimento,
Dure eterno, hás de amar. Ama, inditoso ser!
Todo o instinto a essa lei tirânica é sujeito.
O amor conténs-no em vão em teu âmbito estreito,
Alma. É forçoso amar,
Para que existas sempre, ó alma dolorida!
Forçoso é, pelo amor, perpetuando a vida.
A dor perpetuar!

Já todos reconhecestes o mesmo alto sonhador que nas “Harmonias de uma noite de verão”, dialogando com as vozes do crepúsculo, entre a esperança que o chamava aos braços e a estrela funesta que o desiludia (“Em vão! Nunca acharás uma alma que te entenda”), soube entender e consolar-se com os ecos de uma alma compassiva:

Poeta! Eu te reservo, alma que anseia e sofre,
A mais rara e melhor das jóias do meu cofre;
Cristalizou-a a dor, e o seu vivaz clarão
Enche, como uma aurora, a tua escuridão;
Brilha mais do que um astro e mais do que um diamante.
Vou chora-la em teu seio ardente e palpitante;
Recebe-a; sinto-a já, trêmula a reluzir;
Subiu do coração, dos olhos vai cair...

Seja assim umas lágrimas dessas que se elevam do coração, a que hoje nos recorde Osvaldo Cruz e a desfortuna de o havermos perdido. Tu, Osvaldo, foste digno de saudade, se ela exprime o desejo de que para sempre durasse o que houve de passar com o tempo e as cousas, no desfilar dos homens. Mas não é em meio aos ciprestais, no sagrado silêncio do teu túmulo, coroado de flores, que te vemos. Vivo estás, vivo te sentimos como naquele dia de há dez anos, em que recebestes, com as honras da ovação, o preito dos da tua classe. Por que já então subiras à mansão elísia, onde o poeta latino colocou, com a fronte nimbada de alva fita, os que por bem-fazerem se tornaram para sempre lembrados:

Quinque sui memores alios fecere merendo
Omnibus his nívea cinguntur tempora vita.
(Virgílio, Eneida, 1. VI)

Com os versos de Virgílio, num coro de aplausos, te falamos cingindo-te o peito forte com a medalha da vitória. Não era para te engrandecer com louvores; porque o louvor em ti mesmo estava no teu exemplo, que nos animava de uma fé mais viva, na beleza dos teus dias e das horas fecundas em que completaste a glória do teu destino. Não te foi preciso uma existência larga para o prodígio da tua obra. No teu por aqui rápido transcurso não chegaste a declinação dos anos, mas não esqueceste a lição do pregador, “a cada um de nós não nos toca a viver muito, senão viver bem”. Nem muito terá porventura vivido, assim a doutrinava Sêneca, aquele a quem a idade lhe alvejou os cabelos e cobriu de rugas: muito haverá durado, sem quiçá ter vivido muito. Tu, Osvaldo, duraste pouco, mas viveste muito. Quando pelo teu saber dez anos antes de acabares te certificaste da indeclinável fatalidade que para breve te haveria de encerrar os dias, não desanimaste com os reveses cruéis da tua doença, não desesperaste a batalha, não desertaste do trabalho em que te abrasavas, senão que redobraste no ardor, a fronte rescaldada de um ideal sem eclipses e, com o coração bem preparado, todo tu te deste à tua  obra, no último arranco das tuas energias.

Quando assim lastimosamente te chegou o dia extremo, tinhas concluído a tua tarefa e os homens do teu continente te chamaram benfeitor.

Para agradecer as dádivas com que enriqueceste o teu país, orgulhoso da grandeza do teu estudo e dos teus talentos, não houvera bastado que em vida te condecorássemos com os ornamentos da pompa romana, a coroa, a taça de ouro, a túnica ornada de palmas, a toga de áureos bordados, a cadeira curul afestoada com o ramo de carvalho e o cetro de marfim. Nem bastara, para memorar a tua passagem e exalçar a tua lembrança, que te elevássemos um arco imperecível com a inscrição dos teus heroísmos, dos teus feitos eminentes à coletividade. Mesquinha será para o objeto da consagração a estátua que te erigiremos. Será então em todos os monumentos desta cidade, que te deve a salvação, na majestade de suas montanhas, no esplendor destes céus, na voz das suas águas, nas flores destes jardins, no coração de seus homens, que há de sobredurar tua imortal grandeza e na fama perene hás de substituir.

Em tudo te hás de perpetuar e ressurgir cada dia, em tudo te sentirão nossos filhos, e os que lhes sucederem, recordando-te naquele mesmo espírito de comovida gratidão com que daqui da casa das letras todos os brasileiros nos unimos para saudar-te nesta oblação modesta, de ti nos prezando, ó companheiro excelso, como de uma das glórias da nossa terra.