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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Pedro Lessa

RESPOSTA DO SR. PEDRO LESSA

NÃO imaginais, meu caro confrade, com que prazer li o vosso discurso. As circunstâncias, em que o compusestes, imprimiram-lhe, não tanto a feição de um elogio, como a de eloqüente reparação de uma injustiça. Quando se extinguiu o brasileiro, que foi a inteligência mais vigorosa, mais profundamente penetrante e mais refulgente, de quantas entre nós já se têm consagrado ao estudo e à divulgação do Direito Civil, não lhe renderam os contemporâneos os preitos de reconhecimento e de admiração que lhe deviam. Nem se tente diminuir a imperdoável indiferença, lembrando que havia tanto tempo a idade e a moléstia o tinham segregado de todo o convívio social, que morto já podíamos considerá-lo muito antes do seu completo desaparecimento dentre os vivos.

Guardadas as proporções, há entre os pormenores da história do desenvolvimento jurídico da Alemanha um fato, que, aproximado deste que acabo de notar, bem revela como temos sido descuidosos em despertar os sentimentos cívicos, e por isso descaroáveis para com os nossos compatriotas mais eminentes. Por uma curiosa coincidência, viveu Savigny os seus últimos dias, inibido de qualquer produção intelectual e relegado da vida pública pela mesma avançada idade, que com os seus conhecidos achaques infligiu a Lafayette o isolamento dos seus derradeiros anos. Entretanto, que grave e prolongada emoção em toda a Alemanha, quando se anunciou a morte do jurisconsulto filósofo, que, assim como Lafayette, fora também um estadista!

Que solenes demonstrações em todas as escolas, em todas as cortes de justiça, por todas as classes sociais, no seio das próprias multidões, que mais estranhas deveriam ser às cogitações científicas do grande chefe da escola histórica!

Felizmente, meu caro confrade, o vosso discurso é o início triunfal de uma glorificação. Com que simplicidade, concisão e graça, com que poder evocativo, revivestes a época e o cenário político, em que Lafayette, quer como parlamentar, quer como estadista, foi uma das personagens de máximo realce, pelo fulgor do seu espírito e pela grandeza do seu saber! Com que arte sutil e sedutora, em traços instantâneos e magistrais, fizestes ressurgir, e de relance passar sob os nossos olhos, os mais insignes parlamentares e os primeiros oradores daquele tempo!...

Ah! senhores, ainda não se fez justiça aos estadistas do Império, que infundiram em nossa vida política um tão relevante espírito de liberdade, de igualdade, de honradez e de tolerância, gravando-lhe um cunho tão profundo de moralidade administrativa, que exalçaram o Brasil a uma posição excepcional na América Latina. Quando esta, a única porção do Novo Mundo, de cujo progresso, pela identidade de raça e de civilização, podemos razoavelmente fazer um termo de referência ao nosso, desde o México até ao Rio da Prata, por toda a parte, exceto no Chile, posto que ali a exceção tenha sido no tempo e na qualidade inferior ao que foi entre nós, era sacudida numa contínua trepidação em conseqüência das lutas incessantes, com que os caudilhos, em meio de freqüentes atrocidades e de sucessivas e grotescas mudanças de constituições, inundavam de sangue o jovem continente, vivia o Brasil entregue ao governo de uma plêiade admirável de juristas, que praticavam, imitando-as inteligente e desveladamente, as mais adiantadas formas do parlamentarismo inglês! Que soberbo contraste!
Enquanto essas pobres nações neolatinas tocavam o extremo buslesco de dividir metodicamente as revueltas militares em rebeliones conservadoras e movimientos democráticos, assim classificando seriamente essas revoluções “orijinadas per la sempiterna causa, ambición de jenerales impacientes, y desconfiados del voto popular”, nós aqui assistimos a discussões políticas, em que Lafayette, na defesa acirrada dos direitos individuais, das liberdades públicas e das melhores práticas parlamentares, manejava unicamente como armas de combate os textos da lei e os princípios do Direito, ou as mais caras e liberais tradições do regímen, entremeando, com um perfeito gosto literário, aos argumentos de uma inamolgável dialética sentenças e conceitos de fábulas de Lafontayne, ou de comédias de Molière.
Defendiam-se eficazmente os nossos direitos, as nossas liberdades e os nossos interesses, em justas de eloqüência, que atraíam e empolgavam mais do que as mais aplaudidas alocuções e conferências acadêmicas dos nossos dias. As lições e os estilos mais apurados do governo do povo que tem tido o privilégio de ser o mestre na arte de governar com tolerância, liberdade e moralidade, eis o que então nós praticávamos. Que importa que acoimem de imitação o que a esse tempo se fazia? Imitação do parlamentarismo inglês realizaram com excelentes resultados a França, a Bélgica, a Itália, o Chile, a Espanha, Portugal nos seus melhores dias. Não é a imitação uma das leis sociológicas mais conhecidas, e sem a qual fora impossível a civilização humana, “uma das formas da repetição universal”?
Não é justamente quando deixam de imitar, que mais sofrem os povos que perfilharam as instituições políticas dos Estados Unidos da América do Norte?

Pelo espírito entranhadamente reto, justo e liberal, pela grande dignidade e austeridade de sua vida, e por um patriotismo que nunca se discutiu, sobrelevava na política imperial o vulto inconfundível de Pedro II. Foi em grande parte devido ao Imperador o governo moralizado e democrático que então tivemos. Países sujeitos ao regímen parlamentar não têm faltado, em que nunca houve tanta liberdade, nem tanta pureza na administração. Fato convincente da influência decisiva do Imperador é que o governo da sua época se assinalou e sobreexcedeu nos assuntos para os quais sempre foi propenso o seu espírito, e com que se preocupou continuadamente: a manutenção da ordem jurídica, a mais escrupulosa moralidade: a manutenção da ordem jurídica, a mais escrupulosa moralidade administrativa e o zelo pelo nome do Brasil nas relações internacionais. Quando era preciso cuidar do progresso material, fomentar a expansão agrícola, industrial e mercantil, acelerar a exploração das nossas riquezas naturais, aperfeiçoar e disciplinar o nosso Exército, quando em síntese importava praticar atos dependentes de maior atividade e energia, de iniciativa e de coragem, já muito outro era o chefe da nossa administração, todo voltado para os desvelos minudenciosos, e sempre esquivo aos lances que demandavam amplo descortino, audácia, intrepidez.

Bem sei que seria descabido pretender para o nosso país um desenvolvimento vertiginoso como o os Estados Unidos. Aqui foi necessário, primeiro que tudo, ensinar o povo a acatar as prescrições da lei e o poder público, e aprender o poder público a respeitar os direitos do povo; lá, quando começou a colonização, eram os imigrantes em não pequena parte uma agremiação de homens, para quem os preceitos, meticulosamente observados, do Evangelho, constituíam os cânones da vida civil, homens com radicados hábitos de observância das leis e de acatamento aos direitos de qualquer ordem. Aqui tínhamos como figuras preeminentes do povo, do qual descendíamos, os dois tipos, tão conhecidos pela nossa história, do frade e do desembargador, representantes máximos das classes dirigentes da metrópole; lá os colonos vinham de uma nação, cujo passado fora amplamente arejado e iluminado pelos gênios de Bacon, de Newton, de Harvey, e de outros potentes cerebrações, que mais tarde muito naturalmente geraram os Watt e os Stephenson na Inglaterra, e os Fulton na América do Norte.

Estava o povo americano desde os seus primórdios preparado para iniciar logo o seu espantoso progresso. Entre nós já era um progresso imenso acostumar o povo a respeitar as leis, e o Governo a respeitar os direitos do povo. A isso com o ininterrupto devotamento de quase meio século se entregou de todo o Imperador com o fulgurante núcleo de estadistas, formados no ambiente do Império. Mas, proceder como se nenhuma fora a influência do meio na formação cerebral dos seus antepassados, furtar-se ao influxo atávico, seria tentar aquilo que só é possível a uma inteligência excepcional movida por uma extraordinária cultura, em que a força e a abundância das idéias dominem a influência dos fatores opostos. Tão benemérito, tão grande, tão magnífico, ao desempenhar algumas das funções primordiais do Estado, Pedro II resvalava para um plano inferior, quando se faziam necessárias as qualidades, que já vimos, lhe escasseavam.

Aqueles cuidados extremos e de todos os dias com as liberdades públicas, com os direitos individuais e com a mais rigorosa moralidade administrativa, aquelas incessantes preocupações com a justiça e com a moral, de um homem sincero, que foi um alto exemplo, a preponderar incessantemente nos costumes dos políticos militantes, quase todos de uma vida privada muito modesta e recatada, e sem nenhuma ambição de dinheiro, porque assim vivia o grande e austero eleitor de senadores e de ministros; aqueles extremos cuidados absorviam completamente a atividade política do Imperador, não permitindo outras preocupações, tão próprias de um monarca de um país novo.

Os primores, os esmeros, os apuros, os requintes, com o direito e com a ética, reveladores de uma elevação moral, que é um dos mais memoráveis acontecimentos históricos, enchiam toda a vida política do chefe do Estado. Fora desse domínio estava exausta a sua atividade; era um homem inteiramente diverso; e nele revivia, sem embargo da sua régia estirpe (tão profunda e dilatada havia sido a influência do meio na formação cerebral dos seus antepassados), o tipo ancestral da metrópole portuguesa, o desembargador, a ocupar-se embevecidamente com traduções do grego e do hebraico, com as mais puras nugas a que se pode prestar o estudo do árabe e do sâncrito, com a presidência de soporíferos cenáculos literários, e a composição de uns versinhos de ínfimo poeta de outeiro, tudo isso na capital de um vastíssimo país, novo e rico, com a quase totalidade de seus habitantes analfabetos, pobres, doentes, e com um exército sem nenhum preparo para resistir à influência do ambiente latino-americano. Faltou-lhe evidentemente a envergadura do homem de governo.

E, quando com o último gabinete do Parlamento monárquico apareceu um estadista com a inteligência, a pujança e as disposições necessárias para completar a obra do Império, já era tarde. O trono estava solapado e vacilante, graças à unilateralidade de visão mental e à falta de energia daquele que o ocupava.

Não sei por que, meu caro confrade, fostes tão avaro nos vossos conceitos acerca da preeminência de Lafayette como jurisconsulto. À Academia provavelmente seria grato ouvir o elogio do seu confrade sob esse aspecto. Foi aí que ele não teve quem o excedesse, pensam muitos, ou quem com ele ombreasse, penso eu. Não lhe conferiu essa primazia unicamente a sua inteligência de rara agudeza, mas em grande parte a sua cultura filosófica e literária, que os seus êmulos não tiveram. Como a Teixeira de Freitas, não lhe faltou a mais profunda instrução no Direito Civil. Neste ramo do saber jurídico, que foi o da sua predileção, não teve ensejo de revelar o seu espírito criador, pois, não se lhe outorgou a incumbência, que mereceu mais do que ninguém, de elaborar o nosso Código Civil. A sua missão foi a de elucidar, metodizar e expor sinteticamente os dogmas do nosso Direito.

Aí se revelou com o mais intenso brilho a sua argúcia no interpretar as leis, o seu método no explaná-las sistematicamente, a sua clareza inigualável em ambas essas operações lógicas, a conclusão e a elegância do seu estilo exemplar. Com uma erudição profunda e vasta, nunca manifestou preferência por escritores deste ou daquele país; pois sua divisa era, como deixou escrito, je prends mon bien où je le trouve”. Nada mais contrário à verdade do que isso, que já se tem dito, de não lhe serem familiares os jurisconsultos germânicos. Conheceu-os, os melhores, os que podiam dilatar-lhe o círculo do grande saber; e, se os não citava amiudadamente, reproduzindo-lhes frases escritas em caracteres tedescos, era porque não lho permitia o delicado gosto literário, nem a lucidez de sua grande inteligência, incompatível com fanáticas predileções, próprias de espíritos inhenhos.

Quereis ver num lance de olhos a superioridade de Lafayette em relação ao mais acatado sabedor do nosso Direito Civil? Contemplai-o por um momento na crítica, feita em meia dúzia de períodos irretorquíveis, como axiomas matemáticos, à classificação dos direitos, longa e penosamente engendrada por Teixeira de Freitas. O exato conhecimento da função lógica das classificações, tanto nas ciências sociais, como nas inferiores, facultou-lhe o reduzir o famoso trabalho, tão preconizado, do grande consolidador das nossas leis civis, à mais perfeita e evidente inutilidade.

Que excelente livro nos daríeis sobre Lafayette, jurisconsulto, parlamentar e estadista, se a respeito dele quisésseis escrever com o estudo e o carinho com que vos ocupastes de Machado de Assis! Quando vos inscrevestes como candidato à cadeira em que hoje tão dignamente vos assentais, meu primeiro pensamento, em benefício da nossa literatura e da vossa glória, foi propor que em nome da Academia vos fosse conferido tão-somente um prêmio, que traduzisse toda a sinceridade do nosso aplauso ao livro que então exibistes, e só mais tarde, depois de produzidos outros livros, vos elegêssemos nosso confrade. Primeiramente Lia, e alguns anos depois Raquel. Fora talvez o meio mais seguro de solicitar a vossa produtividade literária, tão embaraçada pela vossa trabalhosa advocacia.

Em verdade, há muito que seríeis dos nossos, se não tivésseis uma atividade intelectual tão dispersiva. A literatura e a poesia formaram sempre o vosso ambiente doméstico. Com esse raro ancião, que aos noventa anos ainda poetava como se fosse um jovem de dezoito primaveras, aprendestes a soletrar os primeiros contos infantis, e a amar os primeiros poetas e romancistas, os melhores artistas da palavra, escrita ou falada. Eis porque desde jovem sois um homem de letras. Há quanto tempo já vos sobravam trabalhos literários, que vos permitiam aspirar com justiça à vossa eleição pela Academia! Mocidade e Poesia, A saudade, A Arte de Ser Feliz, Os Meus Domingos, e tantos discursos, conferências e artigos, esparsos pelos jornais, já vos teriam, há alguns anos, outorgado direito ao ingresso em nossa companhia, se não vos faltasse o livro, que esta com raras exceções tem exigido, e que só agora quisestes produzir em meio de unânimes aplausos.

Vede bem como de fatos mínimos e não poucas vezes do mero acaso depende o sucesso das mais caras aspirações humanas: não vos lembrais daquele velhinho, que ao morrer era um pouco mais idoso que o vosso progenitor, velhinho de todos conhecido, e por todos cortejado e acatado, que durante cerca de meio século ensinou a praxe forense a milhares de brasileiros na Faculdade de Direito de São Paulo? Se tivésseis conhecido mais de perto o Conselheiro Ramalho, já há muito provavelmente seríeis acadêmico; pois dele, teríeis ouvido por certo o conselho que habitualmente dava aos moços que convervava. Nunca vi nenhum homem revelar tão convencido apreço e tão profunda estima pelo livro, e tanta consideração pelos autores, tanta admiração pelos que escrevem livros.

Parece que aos seus olhos o que exalçava deveras os membros de qualquer sociedade, o sinal da superioridade, do mérito, do valor, da grandeza dos homens, era o livro. Quantas vezes não o ouvi aconselhar-me com o seu sotaque de velho paulista: “Dr. Pedro (era assim que ele me chamava), é preciso escrever um livro; a advocacia é excelente meio de ganhar dinheiro; pode dar-nos mesmo muito dinheiro, e assim acontece não raras vezes; mas, a consideração social, a verdadeira estima dos nossos semelhantes, o renome que fica, só do livro pode vir-nos.” Não ouvistes nunca esses sábios conselhos, e por isso preferistes sempre esta maldita advocacia, em que despendeis os mais sutis recursos da vossa dialética e as flores mais belas da vossa eloqüência na demonstração da inocência de réus como esse famoso fazendeiro, que asilava em sua casa o famigerado facínora, que durante muito tempo espalhou a morte e o pavor pelo sertão de São Paulo, e que era conhecido, segundo uma frase vossa em discurso forense, “pelo suave nome de Dioguinho”. Ainda então não sabíeis que a Academia pensa exatamente como o Conselheiro Ramalho, e que para ela é o livro que distingue os homens, separando os elementos dos réprobos.

O vosso livro – Machado de Assis – é primoroso. Dentro e fora da Academia só lhe tenho ouvido encômios e louvores. Quanto mais saboreado e admirado não teria sido pelos que tiveram a fortuna de ouvi-lo, quando o recitastes, em conferências, com a vossa declamação correta, cheia de graça, magistral, de discípulo aproveitado da Comédia Francesa! No Brasil havia um único homem, que talvez fizesse uma ligeira restrição aos elogios que o têm cercado. Digo “talvez”, porque ninguém sabe até onde o amor próprio lisonjeado pode escurecer o nosso critério e fazer esquecidas as nossas idéias.
Mas, esse homem, com certeza, nunca externaria a sua leve discordância em termos sequer delicadamente desagradáveis. Provavelmente, toda a sua divergência se limitaria à forma do esboço imperceptível de um sorriso, que quase poderia chamar-se interno: pois muito raros... talvez ninguém o apreendesse. E se homem era Machado de Assis, que havia de achar-vos um pouco derramado.

Mas, não vos dê isto o mais pequenino incômodo. Com a sua grande lucidez e com a sua inimitável bondade de cético, que tudo perdoa, Machado de Assis seria o primeiro a vos exculpar do levíssimo, do insignificante senão, entre nós tão comum. Quem no Brasil, falando ou escrevendo, não é pelo menos um pouco derramado? Depois, estais em excelente companhia: ninguém mais derramado, e derramado diante de um jornalista vivo e poderoso, do que o vosso idolatrado amigo e companheiro de excursões pela “rive gauche” em Paris, e pelas fazendas de café em São Paulo, “esse pessimista coroado de rosas (como o definistes uma vez), com toda a sua curiosidade, toda a sua inquietação, toda a sua doçura, toda a sua ironia, toda a sua resignação”, “e com o seu instinto da beleza e da harmonia, da proporção e do contraste, da sonoridade e da cor, da pureza e da elegância”, isto é, Anatole France.

Finalmente, o que é uma grande atenuante, sois derramado, por índole, tanto no elogio como na censura. Muito jovem éreis ainda, creio que cursáveis o terceiro ano de Direito, quando publicastes aquela extensa e célebre carta sobre A Carne, de Júlio Ribeiro, que é a melhor crítica até hoje feita a esse romance. Com que acerto, com que franqueza, com que veemência de expressões justas e precisas, não dissestes desse livro todo o mal que ele merecia! Com o mais seguro critério e com o mais puro gosto escrevestes:

“A Carne é uma obra de escândalo; não visa fim literário. É um misto de ciência e de pornografia; é um pandemônio sem classificação na história literária.”

E, quase ao concluir, acrescentastes:

“A Carne no seu conjunto é um livro desonesto. Há ali rara harmonia de um grande estilo; há descrições majestosas; há períodos coruscantes, frases potentíssimas; há palavras de uma sonoridade encantadora, palavras que falam, que choram, que cantam; há coloridos vigorosíssimos, esbraseados, relampejantes. Mas, a banalidade dos tipos é deplorável; o todo é chocho, pulha, reles, pornográfico, chato, sem uma direção estética, sem unidade psicológica, sem arte, sem verdade, sem honestidade.”

Quem há que, lendo hoje A Carne, não perfilhe, não confirme, não repita – convencido, em todas as frases, o vosso juízo magistral, definitivo, irrevogável acerca da obra digna do inconstante gramático? O vosso juízo foi o da posteridade. A Carne, a princípio recebida com grande ruído, foi condenada para sempre depois desse tão justo veredicto, e nunca houve crítico, homem de letras, ou sequer gramático, um pouco abelhudo, que se rebelasse contra uma decisão tão conforme à verdade e à estética. Com esse mesmo alto espírito de imparcialidade, ainda mais apurado pela reflexão, com essa mesma inalterável sinceridade corajosa, escrevestes o primeiro grande livro, verdadeiro e imparcial, acerca da personalidade e da obra de Machado de Assis.

É notável o destino deste homem de gênio: superior ao meio em que viveu e produziu, teve contra si por algum tempo uma crítica inferior a esse próprio meio! Bem compreendido e admirado apenas por um restrito número de contemporâneos, foi hostilizado por uma crítica apaixonada e romba, que chegou ao extremo de, para lhe diminuir o talento, o humorismo, a graça, compará-lo até a insulsos repentistas. Essa crítica, a princípio agressiva somente ao escritor e sua obra, finalmente se lançou contra o próprio indivíduo, contra os próprios sentimentos do homem.

Realizastes uma obra admirável, porque pusestes em evidência, ao alcance de todos os leitores, o gênio de Machado de Assis, desde os seus primeiros passos – quando se manifestou por “esse humorismo, tecido de graça amorável e terna, que apenas vê o aspecto grotesco e ridículo da vida”, quando todavia já se assinalava por essas qualidades que acentuastes, dizendo que o “trato da literatura helênica desvendava a seus olhos a perfeição imortal, que Péricles resumia nestas palavras: graça a simplicidade” – até as suas produções máximas, em que desabrocharam todas as qualidades do excelso artista. Levastes então o leitor a penetrar e admirar a observação sagaz e profunda do psicólogo:

“Machado de Assis tem o segredo da auscultação das almas. O seu olhar devassa as consciências, penetra no mais fundo do pensamento, e interpreta todas as emoções e todos os instintos, com o mais estranho poder de decomposição e de análise.”

Caracterizando ainda mais precisamente o gênio de Machado de Assis, dissestes:

“As realidades dolorosas da vida, a brutalidade fatal dos instintos, a infinita tristeza das coisas e a implacável maldade dos homens refletem-se nele, através do seu pessimismo sereno, da sua resignação irônica e da sua indulgência, ao mesmo passo mordaz e sorridente... Ele não faz os homens piores do que os vê na realidade; no seu determinismo radical, na sua filosofia despida de ilusões e feita de negação e de dúvida, ele sabe que a vida se alimenta de enganos, de surpresas, de absurdos e de imprevistos; e aceita o homem como o fizeram a natureza e o mistério inexorável do seu destino... Por isso, as suas criações, vivas, naturais, humana, colhidas em plena realidade com assombrosa nitidez, são a síntese de todas as virtudes e de todos os defeitos de sua época e a exata e precisa reprodução das almas e das coisas... Esta prodigiosa faculdade de representação é realçada por uma arte incomparável de evocação e de expressão. Não tem par em nossa literatura, e rivaliza com os melhores clássicos do nosso idioma, o estilo perfeito de Machado de Assis, a sua graça infinita, a sua simplicidade, a sua harmonia.”

A obra de Machado de Assis não se explica somente pelo seu gênio. Dada a origem de que proveio, e o meio em que sempre viveu e produziu, só a um grande poder de vontade era dado facultar-lhe a cultura e a produção. Bem notastes nestas frases:

“Uma forte vontade dominou os seus primeiros passos na vida. A continuidade desse esforço revela-se na firmeza da sua conduta moral, vencendo, naquela aparência de timidez e indecisão, as horas perturbadoras das desilusões e dos desenganos, e criando, através de todos os obstáculos, uma personalidade de rara nobreza.”

Mas, há, além dessas duas qualidades que tão magistralmente analisastes, mais uma faculdade que se converteu numa segunda natureza do inesquecível mestre: o extraordinário poder de abstração. Machado de Assis, como todos os grandes gênios, só acessoriamente, secundariamente, como de um meio para chegar ao seu fim principal, se ocupou dos homens em determinadas condições, em um certo ambiente, em uma época especial. Nada mais longe da verdade do que supor que os seus livros são crônicas ou fotografias da cidade em que nasceu, dos seus conterrâneos e contemporâneos. O que faz constante objeto dos seus estudos, é o homem, todo o homem, a espécie humana, com os seus instintos, os seus sentimentos, as suas paixões e defeitos.

Assim como o que absorve a inteligência dos verdadeiros cientistas, sejam astrônomos, físicos, ou naturalistas, são primeiro que tudo os fenômenos comuns, de todos os dias, de todos os lugares, cujas leis se esforçam por conhecer, e não os fatos raros, as exceções, as anomalias, os casos teratológicos, empolgantes especialmente para os espírito vulgares, inferiores, assim também no domínio da observação psíquica, como base da grande arte, é o constante, o geral, o comum, que provoca e fixa a curiosidade dos grandes espíritos.

Machado de Assis abstraía do maravilhoso cenário que o cercava, da profusa riqueza de cores e de luz do seu meio físico, dos acidentes e particularidades históricas da sua época, do que era peculiar ao seu ambiente, para fazer aquilo que fazem os maiores homens de gênio que nos apresentam os paises de mais antiga e mais intensa cultura, isto é, para contribuir para o estudo e a fixação do homem de todos os tempos e de todos os lugares. Mesmo quando parece ocupar-se do meio especial em que vive, e traça os caracteres peculiares a esse meio, examinai-o atentamente, e vereis que ele nos revela o homem com seus atributos, bons ou maus, suas qualidades e defeitos de sempre. Quando recordastes o episódio da agonia do sórdido e miserável sovina, que no leito de morte, e no próprio instante em que se partia deste mundo, ainda altercava sobre o preço de uma casa, acrescentastes:

“A sinistra cupidez da natureza humana vive neste simples episódio com a mais desoladora e pungente verdade. O instinto grosseiro e tenebroso, que dorme no fundo das almas, surge nesta página, do mais perfeito realismo, com uma vibração a que só podem atingir os grandes analistas das paixões e dos caracteres.”

Mas, não é só neste caso de repugnante avidez que Machado de Assis retrata fielmente a natureza humana. A ambição de Guiomar e de Luís Alves n’A Mão e a Luva, o orgulho de Estela em Iaiá Garcia, a infidelidade e o amor de Virgínia, a cobiça de Cotrim e de Sabina, a faculdade em Dom Casmurro, e quase todas as paixões, ridículos, vícios, torpezas, caracteres de toda espécie, que Machado de Assis descreveu, ou rapidamente esflorou, são misérias comuns aos homens em geral, e não peculiares ao homem em determinadas condições de meio e de tempo. Num trecho do delírio de Brás Cubas abrangeu o mestre excelso o domínio vastíssimo da sua observação e da sua arte:

“Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delícias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça, que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor e todos agitavam o homem como um chocalho até destruí-lo como um farrapo. Eram as formas de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então, o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.”

Com esse raro poder de abstrair e de generalizar, que fazia de Machado de Assis um gênio superior ao seu país e aos acidentes do seu tempo, o seu lugar é entre os grandes escalpeladores, sutis e irônicos, das máculas e baldas, das fraquezas e misérias de toda espécie, da natureza moral do homem: é ao lado de Swift, de Sterne, de Xavier de Maistre, de Dickens, de Thackeray, de Mark Twain, posto que e por isso mesmo que a nenhum deles imitou, nem se possa confundir com um só deles; pois não tem a profundeza de pensamento e de sentimento, sempre igual, de Swift, nem a despreocupação e a negligência aparente de Sterne, nem a simplicidade ingênua de Xavier de Maistre, nem a espontânea naturalidade e a admirável abundância de Dickens, nem a preocupação moral de Thackeray, nem a arte dos violentos contrastes de idéias sob uma forma natural, simples e suave de Mark Twain.

Para esse original engenho, se a Grécia contribuiu com a sua graça e simplicidade, a nossa terra concorreu também com um certo ceticismo, que é muito nosso, ou, antes, com um certo fatalismo, que parece preceder do nosso meio, com uma certa malícia, muito própria da nossa raça mestiça, e com uma certa volúpia, ou, melhor, sensualidade que, sendo do país, e não do indivíduo por um raro privilégio deste, bem se poderia denominar objetiva, ou artística, sem embargo da aparente contradição entre estes dois últimos termos.

Forçada a reconhecer o gênio de Machado de Assis, a crítica indígena, porque não podia mais negar os méritos do artista, procurou detrair os sentimentos do homem. Machado de Assis é um escritor moralmente insensível, um egoísta, indiferente a tudo o que não seja a sua arte. Machado de Assis, que todos o confessam, foi um cidadão perfeitamente correto, de uma exemplar moralidade, modelo raríssimo de marido, sem um só vício, sem um só defeito moral, em toda a sua longa vida, só revelou a sua insensibilidade e o seu egoísmo nos livros que escreveu, nas personagens que criou, nos tipos a que deu vida em seus romances. Eis um processo de crítica, segundo parece, que só à miopia nacional estava reservado. Tem-se visto a crítica indagar o que pensará um escritor dos caracteres que engendrou, ou reproduziu, em suas criações artísticas.

O autor de La Vie Littéraire, o vosso inolvidável amigo, ao analisar um mestre, ainda não excedido, nem talvez igualado, do conto, enumera os principais tipos por ele criados, e pergunta o que pensaria o grande artista de todas essas figuras, a que deu o ser:

“Não há imbecis, nem trocatintas, que para ele não prestem, e que de passagem não meta no seu saco. É o grande pintor dos esgares humanos. Pinta, sem ódio e sem amor, sem cólera e sem piedade, os camponeses avarentos, os marinheiros bêbados, as mulheres prostitutas, os pequenos empregados públicos estupidificados pela repartição, e todos os humildes, cuja humildade não tem beleza, nem virtude. Todos esses grotescos e todos esses infelizes, ele no-los exibe tão palpitantes, que julgamos vê-los diante de nós, e os achamos mais reais do que a própria realidade. Fá-los viver, mas não os julga. Não sabemos o que pensa desses estróinas, desses velhacos, desses tipos repelentes que criou e que não podemos mais esquecer. É um hábil artista, que sabe que fez tudo, quando infundiu a vida. Sua indiferença é igual à da natureza: espanta-me, irrita-me. Eu desejava saber o que crê e sente no seu íntimo esse homem implacável, robusto e bom. Ama os pacóvios por sua estupidez? Ou o mal por sua fealdade? É alegre? É triste? Diverte-se, divertindo-nos? Que pensa acerca do homem? Qual o seu conceito da vida?... Talvez entenda que afinal de contas a vida é boa... Talvez pense que o mundo é bem feito: pois, está repleto de seres mal feitos e malfazejos, de que se fazem contos. Todavia, podemos acreditar o contrário: que Maupassant é secretamente triste e misericordioso, atormentado por uma profunda compaixão, e que intimamente chora as misérias que nos exibe com a mais soberba tranqüilidade. Eis até onde pode chegar a curiosidade do crítico. Ir além, e afirmar que é mau, ou egoísta, ou imoral, um escritor, porque nas suas criações artísticas ideou ou, antes, copiou a realidade, personagens eivadas de certas falhas, vícios, ou crimes, é ter a mais falsa idéia da arte. Quem escaparia à condenação, adotado tal processo crítico? Que juízo não se poderia formar acerca de Shakespeare, a quem, segundo Paul de Saint-Victor, ‘a sandice, a infâmia, a glutoneria, a luxúria inspiravam uma espécie de hilariedade sobre-humana’, de Shakespeare que criou lago, ‘o mais negro dos celerados’?”

Quando já se viu um grande artista, dominado pela sua arte, modificar os seus processos, cercear as suas criações, desnaturar os tipos que produziu, para deles fazer lições de ética? Que mais eloqüente meio de ensinar pela arte do que a exibição da realidade imoral sob o seu aspecto vil, torpe, repelente?
Quando no Quincas Borba, Sofia conta ao marido as inconveniências de Rubião, e lhe propõe fechar aos poucos a porta de sua casa ao mineiro apaixonado, e Palhares, “agarrando-a pela cintura, diz em voz mais alta do que até então: Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro”, que mais se faz preciso para pôr em evidência a miséria moral, e inspirar o mais invencível engenho por um caráter tão desprezível? Nem por ter tido uma morte natural na “velha Suíça”, a “ardilosa e pérfida, a acautelada e fingida Capitu”, de Dom Casmurro, deixará de infundir horror, ou pelo menos repugnância, no espírito de toda senhora dotada de um pouco de sensibilidade moral. No conto A Cartomante não era necessário que Vilela pegasse a Camilo pela gola, e com dois tiros de revólver o estirasse morto no chão, para que o leitor de menos elevados sentimentos morais, compreendesse a infâmia de Camilo.

A morte, que neste caso é aliás um elemento indispensável ao desfecho do conto, não aumentou a indignidade do procedimento do adultero, que talvez sem o castigo ainda fosse mais antipático. A arte é um meio de apurar a moral de pessoas inteligentes e sensíveis. Machado de Assis contentava-se com dez leitores para o Brás Cubas! Às crianças e aos incultos a educação moral há de ser forçosamente ministrada de um modo mais rudimentar, mais ao alcance de inteligências toscas e de corações duros, ou ainda não desabrochados. Os livros de Machado de Assis não foram escritos para meninos de sete anos, nem para almocreves, ou cabouqueiros. O que convém a essas pessoas, são os catecismos, livros de contos infantis, compêndios de moral religiosa, com alguns castigos corporais, como se fazia antigamente com imenso proveito.

Nas próprias artes liberais, e onde quer que o homem exerça a sua atividade, sujeito a regras, ou cânones, ninguém logra a perfeição, sem abstrair os efeitos imediatos e transitórios de suas produções ou de seus atos sobre a sensibilidade de um certo número de pessoas. O cirurgião que se eleva à culminância no exercício da sua arte, que mais se aproxima da perfeição no seu ministério, atende, no operar, no amputar, aos preceitos de sua profissão, e não aos gemidos dos seus clientes, nem às aflições e angústias dos conjuntos destes. O juiz que se torna provecto na sua carreira, e sabedor da sua arte, julga tendo somente em mira os dogmas desta, e não a sua sensibilidade moral, ou os seus sentimentos de compaixão, que só influem nos caracteres fracos, ou nos espíritos ignaros.

Afinal de contas, seguir sempre as normas elaboradas calma, cuidadosa, reta e sabiamente, pelos que, estudando o assunto, determinaram como se deve proceder, é ainda o meio mais seguro, ou menos prejudicial, de fazer o maior bem possível, ou de evitar quanto possível o mal.
A nossa crítica fez como a nossa política, como a nossa imprensa, como a nossa maledicência de todos os instantes e sob todas as formas. Não podendo demolir a obra imperecível do gênio, lançou-se contra o homem. Os próprios escritores que mais modernamente se ocuparam de Machado de Assis, como esse jovem e talentoso autor de Novos Estudos Críticos, não se furtaram a reproduzir a esdrúxula argüição de que ele nunca se interessou pelas nossas grandes causas, foi completamente alheio à Abolição e à República, um egoísta, insensível aos nossos males e aos nossos progressos.

Vós mesmo, meu caro confrade, fostes injusto com o mestre insigne, quando dissestes que, no que toca a opiniões políticas, “não as tinha fixas, nem determinadas. Não as teve depois. Não as teve nunca”. Não pretendestes jamais, nem é preciso dizê-lo, que um dos mais finos humoristas, de todos talvez o mais malicioso, posto que toda a sua malícia fosse puramente intelectual, de mero artista, e sem nenhuma raiz nos sentimentos do homem, fosse para a praça pública mesclar-se à patuléia, e, deixando por alguns momentos os seus ideais, os seus processos artísticos, as suas convicções filosóficas, o seu estilo maravilhoso, o seu gosto literário, o seu recato invariável, declamasse algumas frases banais e pomposas, as únicas que tal auditório compreende e aplaude, ou que se apresentasse candidato, para ser preterido, em qualquer eleição, e em seu lugar eleito o mais bronco amanuense da sua secretaria, ou o mais lorpa escrivão de cartório de juiz de paz do seu distrito, ambos mais estranhos a quaisquer noções científicas, ou literárias, do que aquele pobre Inácio, escrevente do solicitador Borges, que apenas lia e relia três folhetos, comprados a tostão cada um, debaixo do passadiço do Largo do Paço, um dos quais era a Princesa Magalona.

Quanto não seria estranho um tão grande gênio, com uma forma tão simples e cheia de graça, a discursar em “meetings”, propugnando a abolição ou a república, ou a entreter pelos jornais inevitáveis polêmicas com adversários indignos sobre qualquer desses assuntos! Como se diminuiria, como se apoucaria, como se mesquinharia!

As formas superiores, pelas quais ele podia revelar as suas idéias filosóficas acerca da abolição e da república, essas ele não omitiu, não esqueceu. Os dois principais efeitos da escravidão, de que todos os mais são corolários, o sofrimento injusto do escravo e a dureza de sentimentos do senhor, cujo caráter tanto se perverte pelo empedernimento da sensibilidade moral, como o do escravo pela contínua humilhação, que gera a dissimulação, a astúcia, o ódio e a vingança, esses efeitos da escravidão, que os filósofos e os moralistas demonstram em longas dissertações, o nosso grande romancista evidencia em breves contos, mais expressivos e emocionantes.

No conto “Pai contra Mãe”, “um episódio da escravidão, dos raros que conserva a nossa literatura”, depois de relembrar o que denomina “aparelhos da escravidão”, o ferro ao pescoço, o ferro ao pé, a máscara de folha-de-flandres, instrumentos de suplício, tão usados pelos senhores contra os escravos, refere-nos um dos fatos mais comuns daquela época, a pega de um negro fugido, o que chegou a constituir um ofício, um meio de vida. Cândido Neves, que, cedendo à necessidade, abraçou essa profissão, viu-se um dia tão falto de meios, que aceitou o conselho da tia Mônica, e resolveu levar à roda dos expostos o seu filho recém-nascido. Saiu e casa com a criança, agasalhando-a e beijando-a.

“Ao entrar na Rua Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. – Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Nisto, deu com um vulto de mulher; era a mulata fugida. Entrou numa farmácia, pediu ao farmacêutico a fineza de guardar a criança por um instante... Saiu rápido, ao encalço da mulata fujona. – Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves com as mãos robustas atava-lhe os pulsos, e dizia-lhe que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. – Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se vossa senhoria tem algum filho, peço-lhe pelo amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! – Siga, repetiu Cândido Neves. – Me solte! – Não quero demoras, siga! Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. – Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. – É ela mesma. – Meu senhor! – Anda, entra... – Arminda caiu no corredor. Ali o senhor da escrava abriu a carteira, e tirou os cem mil réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta, a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono.”

Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas conta este:

“Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo e todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra.”

Prudêncio mais tarde conseguiu a alforria, e algum tempo depois de liberto comprou um escravo, e nele se vingou à farta do muito que havia apanhado, dando-lhe surras descomunais: “Perdão, meu senhor, perdão”, suplicava o escravo de Prudêncio. A cada súplica respondia uma vergalhada nova: “Toma, diabo! Toma mais perdão, bêbado! – Meu senhor! gemia o outro. – Cala a boca, besta! replicava o vergalho.” Aí está em algumas linhas uma apologia da liberdade civil, mais convincente para certa ordem de espíritos do que os gritos e os gestos descompassados de algumas centenas de tribunos no Largo de São Francisco de Paula, ou nas proximidades do Bangu.

Quanto à política, a princípios constitucionais, a formas de governo, a filosofia de Machado de Assis é a de um verdadeiro, profundo e grande pensador, e ele a sintetizou com a sua arte suprema, velada e perfeita. Não se viu ainda mais justa crítica do voto popular, que é a base de todos os governos democráticos, do que a do humorista brasileiro no conto “A Sereníssima República”. Em vez das nossas eleições, que bem sabemos quanta indigência intelectual e moral tentam esconder, adotou-se um dos processos eleitorais da antiga Veneza: “Metiam-se as bolas com os nomes dos cidadãos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas.
Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não (observa o mestre). Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça.” O saco se modifica freqüentemente, num contínuo desejo de perfeição, e as reformas do saco são, quanto à sua eficácia, perfeitamente comparáveis às reformas das nossas leis eleitorais. Afinal foram incumbidas dez damas (as damas aqui são as aranhas) de urdir o saco eleitoral. Um orador diz a essas damas: “Vós sois a Penélope da nossa república; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar outra vez o lugar que lhe coube. Ulisses é a sapiência.” Sem esta, isto é, sem a educação e a instrução do povo, todas as reformas eleitorais valem tanto como as alterações do saco e das bolas d’“A Sereníssima República”.
Sem que Ulisses tome o lugar que lhe cabe, a política há de ser sempre aquilo que Francisco Otaviano, numa frase por vós reproduzida no vosso belo livro, chamou a “infecunda Messalina”, que freqüentemente à inteligência rebrilhante, e sempre voltada para o alto, prefere a vivacidade murina, e sempre afocinhada na politiquice; ao talento que serve com dedicação à causa pública, a habilidade para os pequeninos arranjos individuais; ao gênio que prevê, idealiza, produz, doutrina, ensina, guia, a esperteza que sabe simular e dissimular, aparentar e iludir, fingir e empanar, para convencer de uma superioridade que é apenas o efeito de ardilosas encenações; à competência indiscutida e proclamada, a mediocridade diligentemente doirada e interesseiramente preconizada, à eloqüência opulenta, espontânea, vibrante, inexaurível no propagar as idéias liberais, úteis e generosas, a retoricazinha insignificante, que sabe vocalizar com primor um escolhido repertório de lugares-comuns; ao civismo abnegado, o exclusivo culto do eu; à sinceridade, à franqueza corajosa no esposar e defender as aspirações nacionais, os ideais da humanidade, a verdade e a justiça, sem medir as conseqüências, a mais raposeira astúcia, o retraimento, o silêncio, à espreita dos acontecimentos, a calcular bem qual o caminho mais seguramente conducente à conquista de posições e vantagens econômicas; ao cidadão que pensa, trabalha, combate e vence, o que se limita a estender o braço para colher o fruto de alheios esforços; à magnanimidade, à correção moral, à tolerância, à bondade, a violência, a improbidade, a perfídia, a pequenez; à mais pura glória, o ruído de aparências enganadoras; à águia de mais remontado vôo, a gralha arteiramente disfarçada; a um homem, um andróide.

Quem já terá julgado com maior perspicácia e melhor critério uma boa parte das nossas revoltas do que Machado de Assis no conto  “O Alienista”? A sublevação contra o Dr. Bacamarte, capitaneado por um dos barbeiros da vila, que depôs a Câmara Municipal, e tomou conta do povoado, graças à defecção de uma parte dos dragões, revolta a que aderem quase todos os da vila, para logo depois outro barbeiro promover nova rebelião, a que se seguem novas adesões dos mesmos grupos, não é a imagem sintética e verdadeira de não poucas das nossas desordens, guiadas muitas vezes por indivíduos que têm o mesmo ideal do barbeiro Porfírio, ou do barbeiro João Pina?

Não tinha, pois, razão o nosso querido e saudosíssimo Olavo Bilac, quando numa de suas crônicas, por vós citada, refere que nas reuniões que quase todas as noites havia em casa de Eça de Queirós, em Paris, no inverno de 1890, nenhum dos brasileiros presentes podia responder às sucessivas perguntas de Eça a respeito do que pensava Machado de Assis da proclamação da República, da agitação revolucionária do Rio Grande do Sul e de outros fatos do nosso país, e que à interrogação – “Que pensa sobre isso o Machado de Assis?” – só podiam responder: “O Machado não pensa sobre isso; o Machado escreve romances e contos.” Não; o Machado pensava melhor, mais profunda e acertadamente, do que todos os outros brasileiros. Somente não dizia os seus pensamentos; porque mais sagaz e avisado do que eles, e bastante instruído e cético para compreender que nada absolutamente adiantaria a manifestação de suas opiniões, que só lhe poderiam valer alguns incômodos, ou talvez grandes sofrimentos, perfeitamente inúteis para a causa pública, entendia que era mais sábio e melhor recolher-se à sua habitual modéstia e completa discrição.

Não seria esse filho da Hélade, nascido na América e no século dezenove por um equívoco da natureza, que dissimulou “a própria agonia para não magoar os outros com o reflexo da sua dor”, quem haveria de se despir dos mais altos atributos da sua essência superior, para se envolver, como o mais vulgar dos cidadãos, em contendas, a que o seu gênio e a sua olímpica serenidade lhe davam o direito de presidir à guisa dos deuses de Homero, – guiando e protegendo um dos grupos contendores.

Increparam-no até de excessivamente tímido e humilde diante dos superiores hierárquicos. Quereriam talvez que ele fosse como o Swift que Taine descreve, e que Rui Barbosa nega, de um desmedido orgulho, a invectivar e humilhar os ministros da secretaria de Estado em que serviu, ou que passasse uma boa parte do tempo a ridicularizar os seus chefes, a cobri-los de remoques, a escrever contra eles quadrinhas satíricas, a rir-se furtivamente das cincadas por eles cometidas, como qualquer bolônio oficial de secretaria, com dois dedos de gramática. Essa delicadeza ininterrupta e essa timidez, que parecia excessiva humildade, não têm a explicação deprimente que alguns querem dar-lhe. Constituem uma das mais sutis revelações do espírito do humorista.

Que mais expressivas páginas de ironia e de humorismo poderia ele traçar do que sublinhando com essa apuradíssima cortesia e incessante reverência todas as frases de toda casta de mediocridades que lhe passaram pelo ministério em que era funcionário, a lhe darem ordens, a lhe ostentarem a sua superioridade legal, a desprezarem talvez o gênio do seu subalterno, a mofarem – quem sabe? – da cultura e do estilo do exímio mestre, a lhe ignorarem muitas vezes a existência dos próprios livros, a suporem-no inferior e um tanto grotesco exatamente por ser um homem de letras!... menosprezar os chefes que eram intelectualmente inferiores estava ao alcance de qualquer dos empregados da sua repartição; mas, fazer o que ele fez durante cerca de quarenta anos, permanecer sempre hirto, grave, solene, perfeitamente respeitoso, sem denunciar pelo mais leve rictus um justo desdém, ou uma irritação passageira, ou uma natural vontade de rir, ou uma explicável comiseração, diante dos superiores legais, a ouvir os mais fatigados conceitos na mais estafada de todas as linguagens, os erros mais estopantes, as mais insulsas frases com pretensão a frases de espírito, empertigado e sem pestanejar, como um soldado em frente do seu comandante... ah! isso só ele podia fazer.

E fazê-lo num país sem disciplina, de civilização incipiente, em que todos, especialmente os subalternos e os incompetentes, se julgam com o direito de criticar, de censurar, de injuriar, e assim procedem com aplausos do maior número, aumentando ainda os defeitos da nossa educação, era a melhor resposta que ele podia dar a esses pobres críticos que lhe negaram a espontaneidade da ironia e a graça natural do humorismo. Que tela magnífica não seria a do pintor de gênio, que reproduzisse, com toda a precisão e com toda a palpitação da realidade, Machado de Assis a receber as ordens de um dos ministros a que tenho aludido, este com a arrogância das nulidades doiradas, quando governam, e aquele na sua humilde postura de reverente subordinado!... Se, na misteriosa complexidade dos fenômenos psíquicos, para essa modalidade do humorismo de Machado de Assis concorreu, no começo da sua vida, a timidez da juventude, a humildade da sua origem, mais tarde com a sua elevação moral, com o seu aperfeiçoamento no decurso do tempo, contribuiu talvez um estranho fator, à primeira vista inconciliável com essa forma de espírito. O respeito, cheio de amabilidade e de timidez, de Machado de Assis, não só aos seus chefes e superiores, como a todos os que o tratavam, provinha em parte da sua grande doçura e inalterável bondade de artista cético.

E essa bondade e doçura inalteráveis lhe advieram da sua completa absorção pela grande arte. Numa das mais profundas páginas que lhe saíram da pena, nota Dumas Filho que todo ser que só se prende às coisas eternas, não conhece, nem compreende, as dores, as desgraças, nem sequer os pequenos males que em geral afligem os homens. Não há decepções, nem fatalidade, nem recriminações, para aqueles que se consagram ao amor exclusivo, sem cálculos nem ambições terrenas, de Deus, da humanidade, da natureza, da ciência, da arte. Daí a serenidade dos grandes religiosos, dos grandes filósofos, dos grandes cientistas, dos grandes artistas.

Daí o seu desprendimento, benevolente, caritativo e doce, para os infortúnios dos homens, cujas causas descobriram nos erros e fraquezas do mesquinho desejo humano. Essa bondade tem um caráter negativo, algumas vezes prejudicial à sociedade. Se o mundo fosse governado sempre por Marco Aurélio, ........ sáveis à conservação e ao progresso da sociedade, e que no tempo do imperador filósofo tanto se enfraqueceram? Se fosse governado por São Francisco de Assis, não haveria castigos, nem justiça, nem distinção prática entre o bem e o mal: para São Francisco de Assis o prazer perfeito, a absoluta felicidade, está em sermos injuriados, caluniados, confundidos, feridos. Todo e sempre absorvido pela sua arte, Machado de Assis impregnou-se dessa bondade superior, que eleva o homem a tão grande altura, que não lhe permite castigar, repreender, censurar, ou sequer criticar diretamente. Tudo o que não é amor de Deus para um santo, é assunto alheio às suas cogitações. Tudo o que não é amor da ciência para um sábio, ou amor da arte para um artista da estatura de Machado de Assis, é objeto estranho aos seus pensamentos.

Sempre que nos meus passeios vespertinos passo em frente do vetusto chalé do Cosme Velho, sem estética, sem nenhuma arquitetura, que por tantos anos habitou Machado de Assis, vem-me à mente o esforço imenso e contínuo que teve de despender o mestre imortal para, isolado, e bem alto, do seu meio, ser o artista que foi. Num ambiente tão infenso ao seu gênio, no qual entre os próprios homens de letras se revelou tanta incapacidade para o compreender, que não foi preciso a Machado de Assis para abstrair de todas essas inferioridades, e manter o seu espírito no puro domínio da arte, para não se contaminar das intrigas e pequeninas aspirações da nossa política, para não se envolver nas passageiras lutas da abolição e da república, para ser unicamente artista, ático, perfeito, acima do seu povo, superior aos seus patrícios, a si próprio; pois foi superior às fatalidades da sua origem, da sua raça e do seu ambiente.

Todos os louvores vos são devidos, meu caro confrade, a vós que fostes o iniciador deste culto, que com o tempo há de crescer, dilatar-se, dominar todo o país, que ele não conquistou, quando vivo, porque não havia afinidade, ou aproximação entre o conquistador e o objeto da conquista, mas que cada dia que passa vai sendo senhoreado pelo gênio de seu filho incomparável.

À Academia devemos o incentivo ao estudo magistral, em que se evidenciou aos olhos de todos os brasileiros a personalidade e a obra do seu consócio preeminente. Só uma corporação como a Academia poderia despertar essa homenagem, tão desinteressada, tão justa, tão de harmonia com a verdade.

E vós, meu caro confrade, fostes o executor, para não dizer o pontífice, desse ato de amor à verdade, à justiça e à pátria. Bastava ele, quando outras muitas provas já não tivésseis dado do vosso talento e da vossa cultura, para serdes acolhido com o maior afeto e carinho em nossa companhia.