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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. AFONSO ARINOS

Senhor Presidente, Exmas. Senhoras, meus Senhores:

Chamou-me a Academia Brasileira de Letras: aqui estou.
Timidamente me aproximo da cadeira de que é patrono o Visconde do Rio Branco e que foi ocupada por Eduardo Prado. Entro em dúvida, hesito, antes de bater-vos à porta, Srs. Acadêmicos; aqui chegando, não sei se retroceda, não sei se avance para preencher meu lugar, que decerto não é o meu. Passa-me pelos olhos a cena que vi outrora, numa gravura antiga: um estranho – cliente, pedinte talvez – vai atravessar o átrio do palácio de um patrício romano; o pórtico, silencioso, rijo, ereto nas colunas de mármore, está materialmente aberto ao acesso do estrangeiro, mas, ele o sente bem, tudo lhe embarga o passo e lhe veda a entrada; ei-lo a volver olhos assustados, buscando coragem nas paredes duras, pedindo animação aos mármores, esperando o aparecimento súbito de algum semblante amigo.

Foi, decerto, porque conhecíeis bem a minha intimidade com Eduardo, que a vossa atenção se prendeu ao meu nome; não só a nossa intimidade, como a afinidade das nossas idéias devem ter sido o motivo principal da minha eleição. Queríeis, para representar Eduardo Prado, alguém que tivesse privado com ele e vos pudesse talvez pintá-lo ao vivo na intimidade sadia e interessante daquela vida tão viva, tão exuberante. A pessoa é ainda a dele e essa insubstituível; eu representarei apenas a sombra, ou, se quiserdes, o culto a quem desapareceu dentre vós. É, pois, um motivo de sentimento que me faz comparecer perante vós. Ainda uma vez – e esta numa sociedade de intelectuais, de homens de sã razão – se confirma a verdade de que mais nos move a todos o sentimento do que o raciocínio, a despeito de tudo quanto possamos dizer do sexo fraco. Procurastes em mim uma como reminiscência de Eduardo Prado. Mas foi também um motivo de sentimento que levou Eduardo a tomar como patrono de sua cadeira o nome do Visconde do Rio Branco, não foi só a homenagem ao estadista, a admiração pelo diplomata, o respeito pelo professor, mas, principalmente, a amizade que Eduardo Prado votava ao segundo Rio Branco, legítimo herdeiro do nome e da glória do primeiro. Se em mim procurais uma lembrança, no grande Rio Branco, Eduardo procurou um tributo de veneração e afeto.

Antes, porém, que me ocupe de mim, ainda mesmo com o pretexto de cumprir um dever, qual o de agradecer-vos a eleição, permiti que eu vá dizendo o que senti, o que sinto, quando vejo unidos nesta cadeira dois nomes tão distantes um do outro pelo tempo, tão diferentes na forma da ação de cada um neste país e tão misteriosamente ligados, não como dois contrastes ou dois extremos a se tocarem, senão como duas forças opostas apenas para constituição de um equilíbrio, concorrentes, pois, para o mesmo fim. Rio Branco, filho do passado colonial, herdeiro da resistência tenaz contra a independência, olhava para o futuro; Eduardo, filho do presente, nascido já no declínio do século XIX (1860), tinha os olhos fitos no passado.

Vindo ao mundo ainda na era napoleônica (em 1819), onze anos depois que a Corte portuguesa, buscando as praias deste lado do Atlântico, pôde salvar Portugal do que sofreu a Espanha, o Visconde do Rio Branco, por seu pai, Agostinho da Silva Paranhos, por seus tios, o Capitão-Mor da Bahia Antônio da Silva Paranhos e o Coronel de Milícias João da Silva Paranhos, respirava aquele aferro à Metrópole, aquela paixão reacionária contra a emancipação da colônia, emancipação que o bom senso seguro, a clarividência e o espírito prático de D. João VI previram e contra a qual o patriotismo português protestava, não por desamor ao Brasil, mas por amor egoísta de velho pai, sob ameaça de uma separação; por amor das velhas glórias portuguesas, cuja conservação parecia intimamente ligada à conservação do mais importante domínio ultramarino do reino.

A família Silva Paranhos, honrada e genuinamente portuguesa, portou-se, naquela ocasião do domínio lusitano no Brasil, com o lealismo rude, o devotamento de pessoas e bens à causa da Pátria, a renúncia, sem espalhafato, da própria posição em holocausto à rija norma de fidelidade – virtudes deveras não raras em portugueses e que vereis em esplêndido relevo no lema tirado de uma das frases atribuídas ao vice-rei D. João de Castro por seu historiador Jacinto Freire: “é esta a herança que legaram nossos maiores – morrer gloriosamente pela lei, pelo Rei e pela Pátria.”

O futuro estadista brasileiro veio ao mundo três anos antes da triste era de provações que foi para sua família a resistência de Madeira, na Bahia, e, principalmente, o período posterior ao 2 de julho. Sofreu com o sofrimento dos seus; e o seu espírito, partindo daí, tomou largo surto para o futuro, encabeçando, sem que o soubesse então, talvez sem que o sonhasse, essa política nova, puramente americana, de atração e incorporação do estrangeiro, cujo dedicado e ardente pregoeiro foi, mais tarde, no dizer de Joaquim Nabuco, o vosso antigo e saudoso confrade Visconde de Taunay.

Assim, pois, meus senhores, Rio Branco, filho da época da Santa Aliança, nascido depois da vitória desta contra Napoleão, quase em meio do renhido duelo do antigo espírito conservador, profundamente monarquista, contra o desencadeamento da doutrina do Contrato Social que dava ao povo o governo direto do Estado e cuja realização nunca passou daquelas páginas do livro de Rousseau – fez como Péricles: do seio do mais obstinado aferro aos velhos moldes, ao que Taine chamou, na sua obra capital, L’Ancien Régime, partiu para o mais amplo liberalismo. Também Péricles, do orgulhoso espírito aristocrático, cujo kanon era um como patriarcado, cuja religião era a da família, segundo a descreve Fustel de Coulanges, saía para ser o chefe da democracia helênica.

Rio Branco na política e Mauá na indústria e no comércio foram os chefes do americanismo no Brasil; sua ação continua ainda, até que se feche o ciclo histórico iniciado com as últimas reformas do segundo reinado.

O que eu chamo americanismo é simplesmente a recíproca do que os europeus e anglo-americanos chamam expansionismo e imperialismo. O momento, para as grandes nações pejadas de população e de riquezas, é de se desdobrarem; para nós, donos de vastos territórios despovoados, é de formarmo-nos, de constituirmo-nos, de crescermos e de sermos uma nação, enfim. Aquelas, já formadas, tendo já atingido a maturidade, estão na fase biológica do desdobramento, da prolificação, do que Spencer chama “excesso de crescimento”. Nós temos que receber delas, temos que crescer à custa do Velho Mundo, temos que tonificar-nos com as sobras da sua população, com o produto do seu trabalho. Ora, o que eu chamo americanismo é o estado peculiar às duas Américas – de serem nações a formar-se, da caráter ainda indeciso, de feições mais pronunciadas, não tendo ainda nem passado, nem história, nem arte, nem literaturas constituídas e definidas; o que eu chamo americanismo é o reconhecimento desse estado de elaboração, se o quiserdes de fermentação, ou melhor, de fusão de elementos, de concorrência, enfim, de fatores, para que se desenhe o nosso tipo nacional; o que eu chamo americanismo é ainda, senhores, a defesa dos elementos nacionais já pronunciados, já vivos, denunciando já as linhas do tipo futuro, revelando já, no vago dos traços do Brasil-infante, as linhas másculas do Brasil-homem.

Rio Branco, senhores, foi dos mais completos intérpretes desse americanismo. Eduardo Prado também o foi. Mas Rio Branco, vivendo na vigência do antigo espírito conservador, propulsava a máquina, em largos arrancos, para o futuro; ao passo que Eduardo, agindo num período oposto, de monomania de reformas, de desprezo de tradições, de destruição do passado, dava contravapor, volvia-se com todas as veras da alma para esse passado; ambos, porém, defendiam, na sua mais veemente, mais nobre, mais leal expressão, o que de mais nobre, de mais leal, de mais brasileiro se possa encontrar no Brasil.

Mas, ao passo que Rio Branco, crescido dentro dos vossos moldes, encerrado neles, vivendo neles, tinha, para caminhar, de arrastar consigo a sua época, de entrar, portanto, como figura magna na vida pública, de dominar os espíritos dos seus contemporâneos, infundindo-lhes ou impondo-lhes suas próprias idéias e exprimindo-as por eles, realizando-as até; tinha de ser, pois, fatalmente, chefe político em ação, estadista à testa dos negócios públicos de sua terra; – Eduardo, crescido no tempo em que o espírito democrático saía do seu álveo natural para tornar-se revolucionário e anárquico; Eduardo, vivendo no tempo da enchente da democracia, quando a corrente, ou, usando de uma frase muito repetida, outrora, no nosso parlamento, “a pedra do alto da montanha” lá rolava impetuosa; Eduardo, sentindo nesse excesso de liberalismo o perigo da destruição para os poucos elementos mal definidos ainda da nossa nacionalidade, sentindo o risco de naufrágio da tradição portuguesa, vendo de perto o perigo de absorção pela vaga anglo-saxônia; Eduardo, moço do século XX, agarrou-se às tradições do passado, sem temor de ser esmagado no caminho: segurou-se ao rochedo da nossa história, viveu nela, viveu por ela, morreu fiel a ela, defendendo-lhe as duas principais forças, as suas melhores expressões nos povos da Península Ibérica de que descendemos – a Monarquia e a Igreja.

O seu monarquismo não era, assim, o que superficialmente, ou, segundo os nossos hábitos, por indolência de indagar as causas, chamaram esnobismo, excentricidade elegante, originalidade literária; não era também político, segundo a acepção da palavra nas palestras, nos parlamentos e nas gazetas; era mais alto, mais filosófico, mais fundamente social: era o amor à nacionalidade brasileira. Note-se que não digo “ao Brasil” propriamente, porque este crescerá sem nós e a despeito de nós. Tomaram eles, os fortes, os grandes povos que assistem ao chamado desperdício de um continente por aglomerações de incapazes – tomaram eles que nós sejamos postos à margem no governo deste território! Por isso, eu emprego o vocábulo “nacionalidade” para significar o culto que dedicava Eduardo à forma bruxuleante, ao tipo em formação do brasileiro no Brasil, o tipo que ele conheceu, que ele amou e que ele queria triunfasse na luta das raças ou das nacionalidades.

Eduardo queria que o Brasil fosse o futuro de Portugal; que fosse o santuário onde, dentro de menos de um século, Os Lusíadas seriam guardados por cem milhões de brasileiros; onde as tradições da velha terra lusitana, coloridas pelas do tupi-guarani e do negro, tão repassadas de melancolia, pudessem cantar, ao baque das enxadas e ao ruído das charruas nos nossos hoje desertos, como cantam as tradições britânicas nas savanas da América do Norte, que, há meio século, eram conhecidas apenas pelas tribos errantes do indígena ou pelos quakers. Eduardo queria, senhores, que a história do Brasil fosse e continuasse a ser o que, no dizer de Guizot, é a dos Estados Unidos da América do Norte: o desenvolvimento da história da mãe¬-pátria.
Esse moço que podia repetir a trova da opereta, pois mais de uma vez realizou a volta do mundo, parou comovido na ocidental praia lusitana, como junto ao paiol da velha casa paterna; conviveu com os grandes homens que falam a nossa língua; percorreu a província portuguesa, ombreou e misturou-se com o povo, amou os olivais, os vinhedos, os castanheiros, as falas, os carvalhos, o quente colorido dos trajes e das trovas aldeãs, e pôde ser, e foi, no seu cosmopolitismo, no seu variado conhecimento de tantos povos e tantas línguas, um amigo sincero e estremecido não só do Brasil, mas do brasileiro.

Entretanto, seus escritos quantas vezes foram inquinados de antipatrióticos, quantas vezes o acusaram de difamador do Brasil! Ouçamo-lo a repelir seus detratores: “Esta pecha de antipatriotismo – disse algures – é das mais banais e a que com mais freqüência os homens da política atiram uns aos outros nas lutas dos partidos. Compreendemos a pecha de antipatriotismo atirada aos literatos que pretendem descrever costumes, aos filósofos que traçam caracteres e que podem dar uma idéia deprimente da dignidade e da moralidade de uma nação. Mas patriotismo em mineralogia, em fitografia, a propósito de pedras e árvores, não compreendemos. Antipatriotas, nós? É uma injustiça! Nós, que exaltamos a coragem do nosso povo, a sua energia, a sua constância; que temos um imenso amor pela sua história, pelo drama da conquista desta terra; que, com reverência, amamos a nossa raça e tudo que a ela se refere – as lendas da sua vida primitiva, as tradições do seu passado; que amamos a língua que falamos, a arte de nossos pais de além-mar; que temos imensa ternura pelo nosso homem do campo, que com ele convive¬mos, ouvindo-lhe as longas narrativas e o pitoresco falar; nós, que temos votado a vida ao estudo de tudo quanto é brasileiro – nós não temos patriotismo!”
É, como se vê, um queixume sentido, um protesto eloqüente.

Outra vez, disse Eduardo, com acento de filial carinho, num dos seus tão sinceros, tão espontâneos e, por isso mesmo, tão claros e fluentes escritos:
“É esta a pátria nossa amada, que, há mais de 330 anos, a nossa raça, lutando contra os homens e contra os elementos, conseguiu fundar. Encontramos dificuldades e obstáculos de que a nossa energia triunfou. Nesta zona tropical, que se dizia inabitável, levantamos a nossa tenda e, sob o céu dessa terra nova, cresceu e multiplicou-se a nossa raça com a força e a fecundidade das plantas vivas, que deitam raízes fundas e estendem longe a verdura das suas frondes. Temos vivido do trabalho, regando com o suor de todos os dias uma terra que só pela violência do labor frutifica e nos alimenta. A tez branca que a nossa raça trouxe da Europa aqui se tem dourado ao fogo da um sol sempre ardente. Temos tomado às feras os largos pedaços de terra, rasgando o véu sombrio da floresta hostil; e onde dominavam as febres da terra inculta, há hoje a verde salubridade das lavouras. Entram pelos nossos portos os navios que nos trazem os habitantes de outras terras que conosco vêm trabalhar; e, nos caminhos de ferro que fizemos, circulam em nosso solo a vida e a força. E tudo isso fizemos sendo um povo brando e sociável, que nunca atormentou nem supliciou os fracos, deu liberdade aos cativos, amou a paz e soube repelir pela força a agressão dos fortes.”

Ora, haveis de compreender, meus senhores, que dado esse temperamento de Eduardo, dado esse amor pela história e a tradição brasileira, ele se revoltasse contra o desprezo da história e da tradição, contra o desprezo dos velhos costumes, a queda das instituições anglo-saxônicas da América do Norte ao nosso país. “O furor imitativo dos Estados Unidos”, lê-se na Ilusão Americana, página 54, “tem sido a ruína da América Latina. Péricles, no seu célebre discurso do Cerâmico, disse: dei-vos, ó atenienses, uma constituição que não foi copiada de nenhum outro povo. Não vos fiz a injúria de dar-vos, para vosso uso, leis copiadas das de outras nações. Há muita grandeza na exclamação do gênio grego. Há uma presciência de tudo quanto descobriu a ciência social moderna, que, afinal, se pode reduzir nisto: as sociedades devem reger-se por leis saídas da sua raça, da sua história, do seu caráter, do seu desenvolvimento natural. Os legisladores latino-americanos têm uma vaidade inteiramente inversa do nobre orgulho do ateniense. Gloriam-se de copiar as leis de outros paises! Todos os povos espanhóis na América, declarando a sua independência, adotaram as fórmulas norte-americanas, isto é, renegaram as tradições de sua raça e de sua história, sacrificando ao princípio insensato do artificialismo político e do exotismo legislativo. O que colheram desse absurdo di-lo a triste história hispano-americana deste século (XIX). O Brasil, mais feliz, instintivamente, obedeceu à grande lei de que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a sua própria substância, depois de já estarem lentamente assimilados e incorporados à sua vida os elementos exteriores que ela naturalmente tiver absorvido.”
Se atentastes bem nestas últimas palavras, deveis ter notado a forma perfeita de que soube Eduardo revestir uma verdade fundamental.

Era assim o seu nativismo, um nativismo inteligente, de quem viu inteligentemente o mundo e elegeu esta pátria, não para sua morada material, mas para a morada dos seus afetos, das suas predileções.

Este brasileirismo de um cosmopolita, de um homem cujo sentimento dominante era o de sociabilidade, era o que ele próprio chamou a simpatia irradiante e ativa pelos homens e as cousas; este nativismo em quem, revelando numa frase todo o seu amor pelos homens e as cousas na sua passagem pelo mundo, chamou-lhes companheiros de planeta na grande viagem dos seres – este nativismo é bem diverso do sentimento mesquinho de ódio ao estrangeiro, que, em período ainda recente de nossa história, tanto nos desvairou. E o que é mais digno de nota é a enorme incoerência daqueles nossos nativistas: ao passo que perseguiam os estrangeiros com ódio nas ruas, ao passo que repeliam o homem de outras terras que livremente aportava às nossas praias para trabalhar conosco, copiavam trefegamente tudo quanto era alheio, repelindo irreverentemente tudo quanto é nosso!

Companheiro de planeta – disse Eduardo. Há frase que indique mais largo sentimento de fraternidade, mais ampla ternura, não só pelo homem, como ainda pelo animal, a planta e a rocha? Todas as cousas da terra têm o seu lado simpático, tudo é digno de ser amado – sentia ele.

“Para bem pintar – lê-se no seu estudo sobre Eça, publicado na Revista Moderna – é preciso bem ver, cousa diversa da vaga faculdade de enxergar, comum aos homens e outros animais da terra. Para bem ver é indispensável o exercício da atenção, que resulta do dom inapreciável do interesse pelo mundo e pelos homens, dom que não vai sem a simpatia irradiante e ativa, revelação ideal e sintética de uma bondade generalizada.” Esse modo de familiarizar-se com a Natureza, de conversá-la íntima e fraternalmente, revela nele o que Bagehot, no seu finíssimo estudo sobre Shakespeare, o Homem, chama an experiencing nature, qualidade que não possuem os sábios, os homens de abstração, os que, no meio de nós, estão sempre ausentes de nós.

Esta experiencing nature, na qual a curiosidade, viva e ativíssima, busca e recolhe os fatos, produz também os dois elementos que o citado escritor encontra nas boas descrições – o conhecimento de fatos e a sensibilidade aos encantos.

Para conhecer Eduardo, meus senhores, será preciso mostrá-lo na intimidade do seu viver. Tentarei fazê-lo. Num dos Contos fluminenses, disse Machado de Assis, parodiando conhecido anexim: “Dize-me como moras e dir-te-ei quem és.”

Recente obra histórica, publicada na Inglaterra, sobre os estadistas da República Romana, procurando refutar esse fatalismo segundo o qual julgamos tudo pelo sucesso, reconhece que há homens que estão acima de suas obras e entre estes aponta Tibério Graco. Acho que nós não podemos conhecer Eduardo só por suas obras, pois sua carreira foi interrompida pela morte quando em plena ascensão. Os seus livros são muitos, mas Eduardo era capaz de mais.
Moniz Barreto, aquele moço de gênio que morreu em Paris aos trinta anos, depois de ter-se-nos revelado um pensador, disse verbalmente a mim que Eduardo era uma das mais completas organizações de escritor que ele jamais vira.

Procuremos, pois, ler o livro vivido de Eduardo Prado, aquele cujas páginas ficaram dispersas pelo mundo percorrido por ele. Assim compreendereis que aquele moço arrebatado à vida antes que se revelasse por completo ao seu país, é digno de estar ao lado do estadista notável cujo nome a história já glorificou e os contemporâneos já perpetuaram. Rio Branco, cuja vida, cujo papel, cuja carreira bem representam a marcha da nacionalidade brasileira para tomar lugar no mundo; Rio Branco, que vem da emancipação política com a Independência, até à emancipação social, com a redenção ¬dos escravos; Rio Branco que, ao partir criança da Bahia, a terra do seu berço, embarcou em uma nau cujo nome – Regeneração – parecia simbolizar uma carreira futura; Rio Branco está bem acompanhado por quem, no meio do naufrágio das nossas instituições peculiares, das nossas tradições mais puras e quem sabe se da nossa raça, agarrou-se ao passado sem receio de que o arrastasse a torrente vitoriosa e protestou contra a imposição do sistema federativo e presidencial do Brasil.

Foi um erro de Eduardo, dirão muitos. Quem o sabe? Não há medida exata, ou, pelo menos, reconhecida para as forças sociais; como as marés, estão em contínuo fluxo e refluxo e nunca as praias puderam marcar o limite real atingido pelas vagas no preamar.

Sem me deter mais na análise da feição social e política da obra de Eduardo Prado, sem levar longe a indagação das causas, do móvel, do fundamento, não só da sua orientação política, como da sua posição na política, deixai que eu tente descobrir-vos o homem na sua intimidade.
Devera talvez começar por aqui, mas não me pareceu melhor fazê-lo, encontrando-o, como o encontro, ligado nesta cadeira ao nome de um homem público por excelência, de um estadista consagrado.

* * *
A morada que Eduardo amou, o seu verdadeiro home, a casa onde eu o conheci e por onde, aplicando a citada sentença de Machado de Assis, eu pude julgá-lo; a moldura onde primeiro vi o seu retrato, a que, portanto, primeiro me impressionou, não foi a garçonnière que os seus íntimos conheceram em Paris, à Rua Casimir Périer, nos verdes anos de Eduardo, nem a habitação aparatosa da Rua Rivoli, onde, já maior de trinta anos e casado, Eduardo reuniu, em vasta sala forrada dos nossos velhos damascos da Índia, a biblioteca de livros e documentos brasileiros; foi, sim, a sua fazenda do Brejão.

Aí, no oeste de São Paulo, entre o Mogiaçu e o rio Pardo, águas do rio Grande e Paraná, a 651 metros acima do nível do mar, e a cerca de 350 quilômetros da costa, em um terreno ondulado, coberto outrora pelas mais frondosas matas virgens e hoje vestido de cafezais a perder de vista, – aí passou ele os seus últimos e profícuos dias de existência.

É o pleno domínio da terra roxa, fofa, macia, com as suas nuvens de pó, quando, pelo tempo da colheita, vão e vêm as carroças carregadas de café. No verde-escuro do cafezal que coroa os outeiros cruzam-se os carreadores ou ruas com a regularidade das linhas de um planisfério. Bandos de raparigas descalças, com as cabeças envoltas em vistosos lenços, encaram o cavaleiro em marcha, deixando flutuar na claridade dos olhos castanho-escuros e azuis um misto de curiosidade e respeito. Quase todas sobraçam balaios, cestos de formas várias, utensílios agrícolas diversos.

Se a tarde vem baixando, é a volta do trabalho. Sobre as cabeças, quantas delas formosas, pesam feixes de lenha para a cozinha caseira ou molhos de capim para o cavalo de sela do chefe da família.

Lá vêm os homens, com o andar pesado e o ar inexpressivo de quem repete todos os dias, de sol a sol, a mesma fadigosa labuta, sem um incidente a quebrar-lhe o tédio.

Esperais debalde ouvir esses cantos do crepúsculo, de que vos falaram decerto vossos livros bucólicos: debalde esperais bulício, papaguear, animação, rumores de grupos que, ao fim da tarefa, vêm para casa descansar.

Essa gente mostra certo ar de recolhimento: ela marcha como quem está cumprindo um dever; oprime-a uma preocupação; um pensamento assombreia-lhe os rostos – a Pátria distante: são os colonos que se recolhem.

Eis ali a fila de casas rústicas, com seus chiqueiros ao lado; no vasto terreno em comum, que é o logradouro da colônia, pasta o seu gado; junto das casas onde se vêem cercas entressachadas de madressilvas, retoiçam crianças, balbuciando uma língua estrangeira.

Não é a nossa volta da roça, em que o mulato pernóstico ou o caboclo imaginativo conta casos ao vivo, imitando as passagens com entusiasmo, acrescentando um ou mais pontos a cada conto. Para este o horário é o “mais hoje, mais amanhã”, a previsão é o “lá se avenha”, a segurança é o “deixar correr trinta dias por um mês”. A gente que aí passa é bem diversa; exilou-se da pátria em busca do trabalho tendo este fito – libertar-se do trabalho pelo trabalho; não se mostra alegre, não se expande aqui nos mesmos entusiasmos que tanto a caracterizam no seu país, porque não há alegria perfeita fora da Pátria. Entretanto, ao mesmo tempo que ela fecunda com o seu suor a terra brasileira, enriquece-a com seus filhos, e estes são nossos, bem nossos, pois mesmo neste trecho de Itália Austral que é o oeste de São Paulo, o menino colono já vai metendo no correão da cinta a faca do caipira, já vai traçando no pescoço o lenço vermelho, já vai dobrando na testa a aba do chapéu de palha, já vai dependurando nos calcanhares as chinelas, já vai quebrando o queixo dos machos ariscos, à força de barbicacho, lá vai, finalmente, falando este português bamboleado, vagaroso, sem o “re” no fim da palavra, característica da prosódia brasileira.

Continuemos, porém. Eis aqui no cocuruto do morro ainda um trecho de mata virgem, exíguo embora para a morada dos jaguares. Saúdam-nos as frondes vitoriosas dos jequitibás, emergindo dentre a multidão cerrada que os cerca. Sente-se aí o excessivo vigor da terra; a vegetação brota com fúria, por toda a parte, e briga e se agarra, arbusto contra arbusto, árvore contra árvore, e roja e se contorce, ou salta num ímpeto para o alto, levando presos nos galhos verdoengos tufos coloridos de orquídeas. O musgo oscila na ramaria como farrapos de bandeiras. Os cipós, pacientes, perseverantes, traiçoeiros, vão coleando troncos e galhos, soltando laçadas que tremulam nos ares e formando pontes bambas por onde se escorregam os caxinguelês.

Aqui sentis, à sombra escura das árvores anciãs, um odor suave: um manacá florido se vos apresenta como um ramalhete; acolá um cheiro intenso vos dilata as narinas e vos denuncia ao mesmo tempo a seiva exuberante do terreno: é o pau-d’alho, padrão, ou, segundo o termo caipira, “vestimenta” de terra boa. As taquaras se esfregam haste contra haste, gemendo ao sopro do vento, as borboletas lá vão carregadas brandamente; alam-se, revoam, volitam e perdem-se pouco a pouco na espessura...

Depara-se-vos um claro na mataria; os raios de sol não descem apenas, escorrem quase tangivelmente, estendendo rico tapete ponteado de estrelas, aos pés do rei da floresta: é o seu trono. Se viésseis com cuidado, deveríeis ter notado, mais longe, um pórtico de troncos retos e altos que anuncia a proximidade do Rei: este é um jequitibá mais que secular, de cerca de vinte metros de circunferência e de não muito longe de uma centena até as pontas dos galhos mais altos. Debalde a sua fronde soberana se agita ainda nos ares, sobre todas as outras: fugiu dele a alegria e nem mais o passaredo o procura para dos seus galhos desferir a alvorada. Um parasita roaz lhe devasta as entranhas; a sua pele encarquilhou-se, o galho mais forte ruiu apodrecido; mas ele resiste ainda; a sua agonia durará talvez um século e ele morrerá de pé, sem um gemido, e reinará ainda depois de morto, dominando com o seu cadáver as novas e velhas verduras circunvizinhas.

Fora da mata. O caminho vai descendo agora.
Lá embaixo, no fundo de um ninho de colinas de macios contornos, sentireis “o langor dos vergéis em que os frutos e as verduras se impregnam de sol”, segundo o verso atribuído a Psappha ou Safo, a poetisa de Mitilene, a fabulosa suicida de Lêucade.

Por uma avenida de eucaliptos, entre os quais uma canjerana, em alto soco de pedras, ergue a copa cerrada e espalha sombra mais propícia, vereis estas palavras – ora apagadas – que alegrariam imediatamente o visitante do Brejão, gente cosmopolita na sua maioria – Welcome to Brejão – em letras garrafais. A avenida estende para nós, carinhosamente, os dois renques de árvores como dois braços que nos convidam a espancar vãos receios e a acolher-nos, de coração aberto, à hospitalidade do morador.

Aborda-se a fazenda pela face esquerda do edifício, de onde se destaca uma ala que termina pela capela e forma com o corpo da casa um ângulo reto; aí uma figueira colossal, digna êmula do seu parente, o baobá africano, esparrama ao largo a galhada, insistindo pelo repouso dos viandantes singulares e das caravanas.

Bordando os três lados da casa, o jardim, com a grande fonte de farto jato, as ruas de roseiras, os trinta e nove rumorosos coqueiros e, na ala para onde davam a sala de vestir do homem de sociedade e o salão da biblioteca do escritor, um esplêndido cinamomo, povoado de ninhos e de melodias, a defrontar um alentado pau¬-d’alho. Desse mesmo lado o pomar, com a frescura das sombras e das águas e a riqueza do frutal. Aí todos os sabiás, desde os de Gonçalves Dias até os modestos das gaiolas dos taverneiros, entoam os louvores da terra das palmeiras, que aquela o é de fato.

Eis-nos agora no topo da escada; quase a alcançarmos a espaçosa varanda onde os peregrinos se reúnem. Corre ao nosso encontro um homem vestido de ganga amarela, coberto por largo sombreiro de feltro claro; estende-nos afetuosamente a mão gorda e macia e nos introduz no salão: é o dono da fazenda. Reparai um pouco no vosso hospedeiro: estatura acima da mediana, encorpado, fala-vos rapidamente com os lábios meio cerrados e o acento sibilante; agora está de cabeça descoberta e mostra, bem limitada por fortes cabelos pretos, a placidez de uma fronte lisa, alta, olímpica; debaixo dessa fronte luzem dois olhos límpidos, vivíssimos, a que o cristal do pince-nez não pode tirar a forte expressão, nem o ressaibo saltitante de malícia.

Num relance percorreis o salão: há cousas que a gente não encontra juntas nas lojas, há objetos apanhados aqui e além pelo mundo; tapetes do Oriente unidos irmãmente a um soalho de madeiras brasileiras, sofás de nosso estilo empire de há sessenta anos, esteirinhas malaias, gravuras de antigas ladies a ombrearem com uma coleção de estudos de Pedro Américo, faianças várias, um antigo lustre com velas vermelhas, macias poltronas inglesas perto de uma rede cuiabana; aqui mora um globe-trotter. Levantais os olhos e percebeis que os vivíssimos olhos do vosso hospedeiro têm um fulgor de quem sabe ver e viu, e o fazendeiro logo se vos revela: é Eduardo Prado.

A fim de pordes um pouco de ordem no vosso vestuário, ele vos convida para o quarto de vestir, ao mesmo tempo que se curva para fazer festas à Margaux, a cadelinha favorita. Aqui, sim, há muito do Jacinto d’A cidade e as serras; notais logo em largas cômodas, forradas de finas toalhas de linho bordadas, a profusão de escovas, a bateria de ferrinhos complicados, a fileira de frascos vários. Em prateleiras, alinham-se, brunidas, filas de botas, botins, sapatos, alparcatas, socos, sandálias, borzeguins, às dezenas; batalhões de chapéus alpinos, tiroleses, ingleses; nesse incomparável sortimento, há reminiscências das cinco partes do mundo e das quatro estações do ano; há de tudo, para tudo. Não é menos rica a coleção de capas, de bengalas, de roupas em vastos armários de robusta madeira nacional – tudo na ordem mais rigorosa. Até o traje completo do jagunço lá encontrareis – as perneiras, o jaleco, o facão e o chapéu de couro.

Deixemos, porém, aqui o homem de sociedade, o elegante, passemos à sala contígua: estamos na biblioteca: é esta a mansão do escritor.

A frescura e o silêncio vos convidam ao repouso do corpo e ao trabalho do espírito. Junto à janela sombreada pelo cinamomo, que sussurra brandamente, rodeado o tronco por uma moita de guembês viçosos, está a mesa de trabalho, sem o mínimo desalinho; perto, um vaso japonês com esplêndidas rosas-príncipe-negro. Pelas paredes, gravuras de personagens coloniais; e, de um e outro lado, atopetadas com o teto, as finas estantes carregadas de livros; junto delas deslizam sutilmente, em molas invisíveis, as leves e compridas escadas.

Aí Eduardo vos mostra algumas edições preciosas, maravilhas do bibliófilo, aponta-vos obras raras, apresenta-vos os amigos íntimos, os livros que ele conversa diariamente. Em seguida conta um caso: um amigo, entendido em letras, ao percorrer aquela biblioteca, estranhou que faltassem obras de literatura! debalde vira as obras completas dos grandes autores, desde a Grécia até aos tempos modernos... Não! Shakespeare não era literatura, Goethe não era literatura; Herculano e Garrett do mesmo modo... “Ah! Sim! Literatura eu também tenho”, replicou Eduardo; “mostrarei mais tarde.” E mais tarde, quando o caso parecia esquecido, Eduardo tomou à parte o homem de letras e, levando-o a uma alcova interior, mostrou-lhe vasta estante pejada de brochuras amarelas, quase todas francesas e mais ou menos indecentes, e disse: “eis aqui a vossa literatura!”

Mas, não vos demorais muito, nem mesmo na biblioteca: Eduardo não deixa parar o seu hóspede; sai logo, acompanhado do seu fox-terrier, a percorrer os vastos terreiros de café, que se abrem mesmo em frente da casa grande e em direção à casa da máquina, ao fundo, perto de uma nesga de mato pertencente ao vizinho. Sobre a cumeeira o galo que indica a direção dos ventos treme de susto à aproximação de Eduardo: é um dos alvos da sua carabina, o mísero.

No terreiro, antes de chegardes à casa da máquina, encontrais com espanto um canhão com a respectiva carreta; costuma salvar à chegada dos hóspedes ilustres e é um dos numerosos meios que tem Eduardo de pregar peças ao indígena.

Depois vamos ao laboratório, um pavilhão construído especialmente para aquele fim, pois que Eduardo trouxe da Europa um sábio, Mr. Coulon, casado com uma russa, ambos fervorosos adeptos do que chamam a Santa Rússia; aí, nesse laboratório, Eduardo mexe em tudo e faz experiências de explosões para assustar-vos.

O programa do dia é variado; há muito que fazer; mas esse programa, em que há sempre números novos, é a vida de Eduardo. Antes de receber-vos, ele já trabalhou três ou quatro horas na biblioteca, desde as seis da manhã, com interrupções. O seu trabalho é, assim, tão natural, tão fácil, tão alegre, tão vivo, que vós outros ficais entendendo que é antes um divertimento. E é este o grande mistério do temperamento de Eduardo para quem não o conheceu bem: diverte-se em toda a parte, de todos os modos: acomoda-se a todos os meios. É que em toda a parte da terra achava ele cousas que o interessassem – eis a simpatia irradiante e ativa, que Eça, no memorável estudo sobre Eduardo, chamou curiosidade, mas de que realmente a curiosidade não é senão uma das formas.

Creio que foi Wordsworth, um dos biógrafos de Sir Walter Scott, quem contou que na vida daquele escritor magno poderia alguém negar fosse ele um poeta, mas ninguém diria que não era the best fellow, o mais jovial, o mais fino e chistoso anedotista da Grã-Bretanha. Tomava como regra falar a todos com quem casualmente andasse, fosse qual fosse a condição social desse companheiro do acaso. Ora, para escrever para o povo, é preciso ser do povo. “O que já esteve em livros, pode ser posto ainda num livro”, diz Bagehot; “mas, um caráter original, tirado de primeira mão da natureza, precisa de ser visto diretamente, para ser conhecido.”
Esse modo de insinuar-se, tinha-o Eduardo muito expressivamente. Com a mesma facilidade com que entrava numa casa de caboclo, numa conversa de caipiras, entrava em Londres, no escritório do Times, ou de alguma agência telegráfica internacional, para bisbilhotar e, como se diz em linguagem familiar, arranjava logo meios de pôr-se de dentro.

Enquanto lhe durava uma preocupação, a sua vontade era vivíssima, os seus recursos extraordinários, a sua invenção múltipla, para chegar ao desejado resultado. Por isso, era homem do momento e o seu principal instrumento de correspondência era o telegrama. Os empregados de uma das repartições do telégrafo em Londres já tiveram ocasião de espantar-se com alguns dos seus telegramas de cem e mais libras esterlinas. Passada uma preocupação, vinha outra, porque o seu espírito, sempre ativo, sempre cheio de movimento, estava sempre ocupado; mas, nos dias da segunda ou da terceira preocupação, a correspondência que chegasse sobre a anterior ficava retida na posta-restante, até ser inutilizada.

Mais do que Boileau, ele tinha horror ao gênero ennuyeux; abominava as prisões de qualquer ordem, porque seu espírito era libérrimo; por isso mesmo Eduardo era a tortura dos que esperavam por ele. Se saía por dois dias, poderia demorar-se um mês, desde que alguma causa o interessasse. Assim, partiu uma vez, por uma semana, de Paris para Londres; no fim de quinze dias não havia notícias do viajante: só mais tarde se soube que Eduardo estava em Montenegro, falando diariamente, nas ruas da pequenina Cettigne, com o príncipe Nikita!

Apaixonada pelo movimento, gostava de máquinas, das cousas feitas de um jato; a sua cozinha e a sua copa tinham duas dúzias de máquinas diversas e um dos seus divertimentos era mostrá-las aos caipiras.

Pescar é desporto de paciência. Mas Eduardo achou meio de abreviar a pesca, trazendo de Londres uma – como direi? uma bateria de anzóis de mil tamanhos, para mil variedades de peixes, com iscas prontas, linhas, pesos, etc. Assim partiu de uma feita para o sertão.

Antegozava o prazer de abrir aquela bateria diante dos olhos assombrados dos caipiras. Chegou a hora e todos o rodearam. Ao tocar naquelas cousas tão bonitas, naqueles peixinhos de latão, de escamas muito brilhantes, nas minhocas de borracha, muito limpas e muito flexuosas, pensaram os caboclos que se tratasse de algum enfeite para dependurar ao pescoço. Mas quando Eduardo lhes assegurou que eram anzóis e iscas já prontas, para evitar trabalho de apanhá-las, um dos caboclos, mais idoso e mais grave, ponderou: “Quá, sô dotô, os nossos peixe de cá não pega nisso, não! eles são muito velhaco! quando nas iscas de devera eles custa, quanto mais nessas!”

A larga campana de bronze japonês deu o primeiro sinal para o jantar. Já corremos as cercanias com o fazendeiro; já vimos as árvores que ele plantou, já vimos os melhoramentos que introduziu, as reformas que executou; testemunhamos com que cuidados trata ele das árvores enfermas; testemunhamos o seu amor pela terra, as plantas, o gado. Deixemos para outra vez o passeio ao mirante, a visita aos vizinhos, a excursão a algum ponto curioso.

Penetrando de novo no jardim, lembramos, ao atravessar a rua de roseiras, o delicioso processo com que Eduardo afugenta das flores os insetos daninhos: banqueteia estes, para que não busquem alimento no cálix das rosas. Na cerca por onde se derramam as trepadeiras, estão dependurados vidrinhos cheios de melaço, de gargalos abertos para que os bichinhos entrem e saiam livremente: assim Eduardo defende as flores regalando os insetos.

No salão iluminado, já nos aguarda a família. Eduardo vai vestir-se para jantar. É o momento da sua confabulação amistosa com o criado, que está a contar-lhe as proezas de um casal de bassets: criado e patrão riem-se a bom rir. O criado de Eduardo transforma-se com o tempo em mordomo. Mas, não é mais o Humphrys, aquele severo personagem doméstico que ele achou num clube de estrangeiros em Cingapura ou em Batávia. O Humphrys era a Ordem de olhos na testa e cara raspada; era a Previsão de pernas e braços; era a Disciplina em marcha.

Razão teve Eduardo em esconder com todos os cuidados, durante certo período da nossa história, a correspondência com os jornais do Brasil, que lhe chegavam a Paris. A um íntimo, que o surpreendeu nessa operação, respondeu depressa Eduardo: “Tenho vergonha de Humphrys; não quero que ele saiba do que se passa agora no meu país, na terra do seu amo!”

Penetramos no salão de jantar: há um brilho discreto espalhado nas paredes pintadas a óleo, de cores claras, e refletido no assoalho envernizado; a mesa, de que Eduardo achou tempo de aproximar-se por um momento uma hora antes, a fim de arranjar as flores, tem o mais encantador aspecto; do linho alvíssimo rompe o tom bravo das rosas vermelhas, bizarras faianças do Oriente fazem esgares nas caras truanescas, a velha e sólida prata portuguesa se ostenta gravemente de ponto em branco; diante de vós se equilibra, cercado de outros menores, um enorme e anafado copo de cristal, que vos diz em tom de mofa – mon verre est petit, mais je bois dans mon verre; a vosso lado vos belisca uma trêfega cumbuquinha ama¬rela – é a pimenta do Peru; mais adiante uma conserva de Bombaim vos amedronta; atrás de vós duas engraçadas corujinhas de louça aumentam a luz da sala com seus olhinhos iluminados, muito vivos e muito brejeiros.

Mas defronte, na parede nobre, um belo crucifixo de marfim, a cujos pés uma admirável andorinha de madeira pintada parece que adeja ainda a beijar a imagem de Cristo, impõe no ambiente um doce recolhimento; embaixo, rasgado em metal polido, o brasão do terceiro Antônio da Silva Prado, Barão de Iguara.

O anfitrião discreteia, à luz branda das velas e do lustre, amortecida por lucivelos multicores; e vós jantais finamente, ao lado de Apolo convertido e purificado por Jesus Cristo, sentindo no homem o que Amiano viu no seu Imperador – venustate oculorum micantium flagrans, qui mentis ejus argutias indicabant – (Caetano Negri – L’Imperatore Giuliano, pág. 391).

Só pouco e pouco percebíeis que estáveis diante de um homem de sólida erudição e de clara sabedoria, porque Eduardo, escrevendo ou conversando, era de uma singeleza encantadora.

Tinha verdadeiro horror ao artifício e à afetação; abominava o pedantismo. Um artigo de Pedro Lessa, nosso comum amigo, encerra o seguinte depoimento, ouvido do próprio Eduardo, a esse respeito: “Tenho receio, costumava ele dizer, de supor-me um dia uma capacidade. Esse fato marca sempre o início da decadência mental, a anquilose da inteligência. Não se tolera mais a contradição; torna-se impossível a investigação paciente, a observação perspicaz, o raciocínio seguro; não se enxergam os lados vários de uma questão complexa; o pensamento deixa de ser um instrumento dócil para a descoberta da verdade, porque acredita, sem exame, estar sempre na posse dela.”

Sim! a sua ilustração vinha-lhe dos olhos com a naturalidade de um lampejo; desabrochava-se-lhe dos lábios a erudição com a frescura de um sorriso; o seu saber penetrava-nos mansamente, com a suavidade de um perfume. Nada dessas lições caídas do alto com o formalismo hierático de uma fímbria de púrpura que se dá a beijar, como honra e consolo, ao mísero neófito. Não! a sua ciência era fácil, era meiga, era simples e era forte, como devia ter sido aquela de que nos fala o autor de Les Jeunes Gens de Platon: transmitia-se a céu aberto, no repouso dos exercícios da arena, quando os braços, ainda trêmulos da impulsão aos discos, arqueavam-se graciosamente para segurar as pensativas cabeças, que se dobravam embevecidas, sonhadoras, às falas dos filósofos. Ah! ele compreendia que tudo quanto sabemos, todas as nossas ânsias, todas as nossas torturas perdem-se na paz augusta da natureza; ele compreendia que o homem no mundo é uma síntese do mundo que vale tanto quanto a mais modesta florinha rústica, que esmagamos no caminho: ele compreendeu que “a arte humana, para ser duradoura, não pode deixar de ser criada à imagem e à semelhança da natureza”; ele compreendeu que o que dela se salva na memória dos homens é a que teve raízes na vida universal.

Por isso, ele que foi simples, creu; ele que foi bom, amou; ele que foi modesto, lamentava a dispersão da sua vida. Mas, não! a sua vida só foi dispersa porque irradiou; suas obras andam espalhadas aqui e além; artigos nos jornais acadêmicos de São Paulo, artigos do Correio Paulistano no seu tempo de estudante, Viagem ao Rio da Prata, Viagens, Viagem ao Oriente (inédito), Le Problème de l’Immigration, L’art au Brésil, Fastos da Ditadura Militar, A Ilusão Americana, Conferência Anchietana, discursos do Instituto Histórico de São Paulo, Estudos sobre a Bandeira Nacional (inédito), Vida do Padre M. de Morais (inédito), Terra Roxa (perdido o manuscrito), centenas de artigos do O Comércio de São Paulo, entre as quais verdadeiras monografias sobre história, diplomacia, etc.; artigos da Revista Moderna, entre os quais o estudo sobre Eça de Queirós. Em tudo isso encontrais Eduardo com os seus contrastes, o seu sarcasmo, a sua vivacidade, a singular harmonia entre as cousas sérias e as cousas alegres, as cousas leves e as cousas profundas.

***
Mas, senhores, virei eu preencher a sua vaga? – pergunto-vos a vós, e pergunto-me a mim mesmo. Não: estou aqui interinamente... vim substituí-lo apenas durante uma das suas viagens longínquas, de que ele há de tornar. Ele não se partiu de nós. – Está longe agora, ou quem sabe se muito perto? Vai chegar? Foi decerto dar outra volta ao mundo; foi percorrer os sítios preferidos, as paisagens que seu gosto elegeu; chega a Heliópolis, junto ao obelisco, em cujos entalhes de hieróglifos fizeram as abelhas a sua morada; repousa perto dos sicômoros e das tamareiras de cachos floridos e alvos, que se agitam no azul empalidecido do crepúsculo; uns passos sutis na relva lhe chamam a atenção: é a mulher fellah, vestida de camisola azul aberta no seio, com os braços cor de bronze ornados de braceletes de prata; ei-la, na atitude de uma canéfora antiga (Viagens, pág. 168), a dar as boas-vindas ao viajante.

Welcome! Em todas as línguas do mundo onde quer que ele chegue, ouve as palavras de caroável acolhimento que ele mesmo estampou nas paredes do Brejão, a fim de fazer o hóspede sentir, já de longe e antes de ver o hospedeiro, o carinho de gasalhado.

De Heliópolis em ruínas passa ele à sombra da velha mesquita, onde pôde ver, com olhos tão inteligentes, aquela escola árabe e aqueles professores a viverem no seio da sua civilização incompreendida, completamente estranhos à nossa presunçosa civilização européia, cujo sinal era apenas, à porta da mesquita, a marcha pesada de um regimento inglês.

Ele voa para mais longe, para mais alto; átomo irmão, recolhe-se ao seio infinito da natureza que ele amou.

Não tremerá mais, mísera abelha torturada, neste globo, entre estes homens, cuja glória nem pode atravessar os poucos quilômetros da camada atmosférica, que circunda o planeta, enquanto os outros mundos, harmônicos, misteriosos, silentes, continuam o seu passeio tranqüilo pelo espaço...

Agora o seu espírito, que tinha a ânsia da liberdade, ganhou para sempre a liberdade e pode empreender longas viagens pela amplidão dos mundos; a sua curiosidade terá mil objetivos e não ficará mais circunscrita a seus companheiros de planeta...

Por toda a parte a sua simpatia irradiante encontrará correspondência e por toda a parte ele poderá ler, na linguagem eterna dos seres imortais, o mesmo Welcome afetuoso que nós, peregrinos da terra, lemos na parede do Brejão.