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Ainda Freud

Diz Nietzsche, no aphorismo 137, do 2º volume do Humano, demasiado humano, que os peores leitores são os que procedem como soldados que se entregam à pilhagem: "apoderam-se aqui e alli do que lhes é útil, mancham e confundem o resto, cobrindo-o todo de ultrajes". Pois esse pensamento, que é uma lenbrança triste e verdadeira da deshonestidade intellectual, enquadra-se perfeitamente no que diz respeito a Freud.

Todos aqueles – principalmente os adversários e os maus discípulos – que tratam de Freud, philosophicamente, colocam-no no mais exaltado irracionalismo, mesmo além, muito além, de Bergson, Keyserling, Scheler e quantos mais anti-intelectualistas o sejam. Aldous Huxley resumiu a philosophia de hoje: o Bergsonismo, o Behaviorismo de Watson e o Freudismo.

Mas vai nisto, em parte, uma injustiça, pois como doutrina de qualquer pensador compreende-se tudo quanto foi por ele escrito em torno de suas ideias centrais, e não só as primeiras obras difundidas, visto como o indivíduo é um processo cultural evolutivo, sendo a cultura uma categoria do próprio ser. O mal de Freud é o mesmo de outros pensadores – fáceis à primeira vista – que se popularizaram em prejuízo da própria pureza doutrinaria.

Como philosophia, o freudismo faz resaltar a irracionalidade da conducta, assim como o watsonismo o faz na opinião. Pois bem: Freud baseou toda a psychanalyse, como psycho-technica individual, em dois princípios: principio de repetição e principio de prazer, que nada mais são do que a busca do prazer e da libertação pela repetição dos atos, exteriorizantes dos impulsos brutos naturais primitivas e inconscientes, que tendem sempre a repetir-se. A essa personalidade inconsciente, que mais tarde vae se conservar no adulto através dos sonhos e dos atos instinctivos, Freud chama de Id, por ser comum a todos. Somente em nova phase, surge o Ego, nascido deste Id, e da repressão do meio.

Em proseguimento: duas são as classes de impulsos expostas por Freud: impulsos de vida e impulsos de morte – chamando-se aqueles de libido.

Depois, não só como puro fato de teoria do conhecimento cosmo-psychologico, como o Ego, mas sim, surgindo de outra estructura, como resultante do conhecimento moral (consciente), aparece-nos o Super-Ego ou censura. Daí os recalcamentos, os deslocamentos, as transferências .

Como se vê deste rápido resumo de noções já generalizadas por todas as camadas, Freud restringe-se nesta parte de seus estudos tão somente à personalidade inconsciente e suas derivantes.

Explica-se este grande irracionalismo de Freud por ter ele chegado a estas conclusões por observações em neuróticos, principalmente histericos, dizendo em suas primeiras divulgações textualmente que era seu principal objectivo "conduzir à consciência o material palhogenico, dando fim deste modo aos padecimentos occasionados pela producção dos symptomas de substituição".

É áquelle Super-Ego, na nomenclatura psicanalítica, consciência moral, "que pertence o forte aparelhamento disposto em nós de modo geral contra a invasão dos complexos inconscientes", lembrando assim um dos pontos da philosophia de Schopenhauer: nossa vida consciente é uma eterna resistência. Assim, pelo patologico, chega Freud ao indivíduo normal, pois "as neuroses não têm um conteúdo psychico que, como previlegio dos neuróticos, não se possa encontrar nos sãos", sendo que aqueles adoecem pelos mesmos complexos com que lutamos nós os que temos, saúde perfeita, completa C. J. Yung. Donde ser a racionalidade uma questão de grao, mais em uns, menos em outros. Só isso.

Assim espraia-se a psicanálise como uma concepção do mundo e da vida (Weltansehanung, como diz o próprio Freud), logo como um sistema filosófico  e já não só como fisicoterapeutica  da histeria e suas classes.

Freud não parou aí, levou seus estudos à sociologia, ou melhor, à etimologia, em Totem e Tabu, que não nos interessa aqui por ser ainda da mesma natureza dos estudos anteriores, diferindo só em sua aplicação à alma coleta do que se usa e abusa nestas bandas do Atlântico...

O que põe ponto final neste rascunho é sua obra: O futuro de uma ilusão – pisicanálise das religiões.

Neste livro, Freud levanta os olhos para o futuro, após ter olhado exaustivamente para o passado, sob a força da própria técnica psicanalítica – usando de um aforisma de Anatole: "O passado é a única realidade humana. Tudo que existe é passado". Este livro é esperada e lógica conclusão de uma obra de 50 anos trabalhosos, toda cheia de um idealismo tão mal interpretado !

Freud nesta obra procura, cautelosamente – pois se a seara lhe é extranha! – estudar o fundo ilusionista das religiões e, como um veterano do sofrimento e angustia humanos, vê quanto seu primitivo irracionalismo poderia se tornar perigoso e talvez, fatal para a civilização;  daí seu belo esforço em conciliar a razão e o instincto; surge-nos um Freud completo.

Se em seus estudos teóricos, do ser-psicológico como indivíduo, na atitude cega para todos os valores (wertblind, na exacta terminologia alemã), Freud declara que "os homens são pouco accessiveis aos argumentos da razão", e “são movidos pelos seus instinctos", já o mesmo não dirá quando se coloca numa altitude valorativa (bewerlend), do dever-ser, prático-filosófica: "Não temos outro meio senão nossa inteligencia para dominar nossa vida instinctiva".

"Podemos tanta vez acentuar que a inteligencia humana seja sem força em comparação com a vida impulsiva, e teremos razão. Mas nessa fraqueza alguma coisa existe de particular: a voz da inteligência, é débil, mas não descança, enquanto não se faz ouvir. Por fim, depois de inumeras e repetidas repulsas, ela se impõe. Esse é um dos poucos pontos pelos quais devemos ser otimistas, quanto ao futuro da humanidade; mas em si, representa não pouca coisa; ainda podemos fundar nisso as nossas esperanças". (O grypho é nosso) .

E logo adiante, contrapondo-se à concepção que faz dos destinos da humanidade uma submissão heteronoma, prega a fé no sentido da vida, no nosso (da humanidade) self-government: "cremos que é possível ao trabalho scientifico conhecer alguma coisa sobre a realidade do mundo, com ella o nosso poder se pode elevar e por ela poderemos dirigir a nossa vida".

Só a inteligencia será o remédio para os males da Humanidade, daí dizer Bertrand Russell: “Creio que todo o verdadeiro progresso do mundo consiste em um aumento de racionalidade prática e teórica". E tem toda razão, por que só o homem é capaz de vivência, embora os animais possam ter experiência, sendo que aquela se constitui pelos dados intimos, vividos, de nossa experiência interior, "tornados objeto do pensamento na síntese da consciência reflexa", é um ato consciente, ao passo que a experiência pode ser não organizada e inconsciente.

Racionalidade é um hábito de recordar todos os nossos principais desejos e não só o que nos domina no momento. É o representativo contra o presentativo.

"O primado da inteligencia está ainda longe, muito longe, mas não no infinito". ...Freud, completo.

Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, maio de 1936

O centenário de Nietzsche e o nazismo

Já se encontrava casado o pastor da igreja luterana Karl Ludwig Nietzsche havia mais de quarenta anos, e esperava ansiosamente pelo seu primeiro filho, quando a 15 de outubro de 1844, dia do aniversário do rei Frederico Guilherme IV, da Prússia, veio ao mundo Frederico Nietzsche, nascido na pobre aldeia de Rockem.

E agora, passados cem anos, quase ninguém se lembra mais de comemorar com alegria esta grande data para a humanidade, apontando no filho do pastor luterano um dos cúmplices desse assalto armado à civilização que assistimos no momento, imposto por Hitler e sua camarilha fascista. E o que deveria ser uma festa de entusiasmo e aplauso transforma-se em motivo de tristeza e maldição. É que a imagem de Nietzsche não pode mais ser lembrada sem a sombra envolvente da máscara de Adolf. Para confundi-las completamente basta reduzir-lhe os grossos bigodes e jogar-lhe um pouco de pastinha pela testa abaixo.

Deste modo, com a maior simplicidade desta vida, por culpa de divulgadores apressados e suspeitos, desses que metem os autores em formas intelectuais como quem encomenda empadas na confeitaria da esquina, viu-se o infeliz solitário de Sils Maria reduzido a mero mandante espiritual dos crimes praticados pelos sanguinários bandidos nipo-nazi-fascistas. Afinal e contas, isso é menosprezar demais a dignidade de quem sempre viveu pobre e infeliz, afastado dos prêmios do mundo oficial, preocupado em todos os instantes com o destino da criatura humana neste planeta. Se já houve algum pensador sério e honesto, nobre e puro, na história da filosofia, esse alguém se chamou Frederico Nietzsche.

Não nego que seja fácil encontrar-se em sua obra farto material que sirva de fundamento doutrinário do nazismo, mas, por outro lado, também seria bem fácil colher-se ali inúmeros argumentos contra esse mesmo nazismo. A filosofia de Nietzsche, pela forma como foi exposta – de aforismos e contradições constantes – serve de ponto de referência para mais de uma direção política. Tanto pode ficar no centro, como caminhar para a direita ou orientar-se para a esquerda. O que menos preocupou Nietzsche foi ver aplicadas na prática as suas frases soltas, lançadas no papel ao correr da pena, entre uma e outra dose de cloral, como marcos felizes dos seus intervalos sem dor. Vivesse ainda Nietzsche, e eu estou certo, veria ele no nazismo o exemplo mais cruel da sua moral de rebanho e de escravos, de filisteus da cultura, de covardes que se assenhoraram ardilosamente do poder para o desafogo de vinganças e ressentimentos recalcados.

Para aqueles divulgadores apressados e suspeitos, de que falei há pouco, tipo Will Durant, a filosofia de Nietzsche resume-se em duas expressões: o super-homem e a vontade do poder. Nada mais errôneo, no entanto. Como muito bem esclareceram seus intérpretes mais autorizados, o pensamento nietzschiano atravessou três fases inteiramente diversas entre si. Na mocidade, quando se dedicava ao estudo da filologia clássica, ao tempo em que lecionou esta matéria na Universidade de Bale, era o seu ideal filosófico o artista trágico. São desta época “A origem da tragédia” (1872) e “As considerações inatuais” (1874-76).

Já no período seguinte, com “Humano, demasiado humano” (1878-80), “Aurora (1881) e “Gaya da ciência” (1882), como que caindo em si do perigoso devaneio romântico em que andou, volta ao mundo do sonho e da fantasia, procura aprofundar-se no conhecimento da própria realidade viva e concreta que o cerca por todos os lados. Aí então desloca o seu ideal filosófico da arte para a ciência, e passa a vê-lo realizado no sábio e no livre pensador. Somente na terceira fase, quando já se avizinhava de Nietzsche a loucura definitiva que o havia de matar, é que ele aceita o super-homem como ponto central de seu sistema, principalmente em “Assim falava Zaratustra” (1883-85) e “A vontade de poder” (1888).

A verdade é que o super-humanismo de Nietzsche, com a sua invencível vontade de poder, nada mais era do que a compensação imaginativa de um homem pacato e solitário, que de conquista e domínio não ia além do seu jardim. E ainda assim, quando fazia sol... a sua criação foi um exemplo da sua própria filosofia de que (La Gaya da Scienza – prefácio da 2ª edição) “em uns são das deficiências que fazem os raciocínios  filosóficos; em outros as riquezas e as forças”. E dizia linhas acima: “Mas deixemos para lá o sr. Nietzsche. Que nos importa que o sr. Nietzsche tenha recuperado a saúde? Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes como a da relação da saúde com a filosofia”.

Nietzsche, que servira como enfermeiro durante a guerra de 1870, contraiu uma doença crônica de fundo nervoso que jamais o haveria de abandonar até a morte, a despeito de toda a ciência médica do seu tempo. Ainda hoje muito se discute qual tenha sido essa moléstia. O fato é que o autor de “Ecce homo” sofria de dores terríveis em todo o corpo, e particularmente na cabeça, a ponto de não poder escrever uma linha ou ligar duas ideias sequer. Com terapêutica para os seus males, como Pascal que se curava das dores de dente com matemática.

A sua concepção do mundo e da vida nada mais é do que o canto dessa vitória sobre o incessante tormento de dores físicas e espirituais, que o assaltavam constantemente e procuravam aniquilá-lo a cada crise mais violenta. Daí a sua filosofia de resistência, de vontade de poder, de afirmação da vida. Era preciso desafiar e vencer as debilidades do corpo, e aceitar sempre a vida, ainda que dolorosa e má. Não só aceitá-la, como também desejá-la de volta uma infinidade de vezes, com as mesmas angústias, com os mesmos sofrimentos. Nascia assim a teoria do eterno retorno de todas as coisas desta existência, que se repetiriam outras vezes em outros lugares e em outros tempos com todas as particularidades presentes. Significa esta teoria o triunfo mais alto sobre a tortura cotidiana de Nietzsche: uma vez é pouco, que venha um milhão de vezes, e ele resistirá! Na “vontade de poder”, escreveu que “o homem superior se distingue do homem inferior por sua intrepidez e seu desafio à desgraça”. E em “Assim falava Zaratustra”: “Meus amigos, todos que estais aqui presentes – disse o mais feio dos homens – que vos parece? Graças a Zaratustra estou pela primeira vez satisfeito de ter vivido a vida inteira. E ainda não me basta tal declaração. Vale a pena viver na terra: um dia , uma festa em companhia de Zaratustra me ensinaram a amar a terra. Era isto a vida? – direi à morte. – Pois bem: repita-se”.

Não queria Nietzsche fazer da humanidade uma minoria de super-homens a tiranizar e a gozar a maioria dos outros pobres homens comuns. Não, ao contrário. A certa altura pergunta: “que é o macaco para o homem?”, e responde: “uma irrisão e uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para o super-homem: uma irrisão, uma dolorosa vergonha”.

Em outro trecho, exclama: “Amo os homens”. E mais adiante: “um raio de luz me atravessa a alma: preciso de companheiros, mas vivos, que me sigam – porque desejam seguir-se a si mesmos – para onde quer que eu vá. Um raio de luz me atravessa a alma: não é à multidão que Zaratustra deve falar, mas a companheiros! Zaratustra não deve ser pastor e cão de um rebanho! Para apartar muitos do rebanho, foi para isso que eu vim. O povo e o rebanho irritam-se comigo. Zaratustra quer ser acoimado de ladrões pelos pastores. Eu digo pastores, mas eles a si mesmos se chamam os fiéis da verdadeira crença! O criador procura companheiros, não procura cadáveres, rebanhos, nem crentes; procura colaboradores que inscrevam valores novos ou tabuas novas”.

Pois bem, não está contida neste pequeno trecho toda a crítica do nazismo e do princípio do chefe? O que imporá são companheiros vivos e livres, independentes e em permanente atitude crítica, colaboradores, enfim, e não crentes, fanáticos, fantoches movidos a barbante, como são esses infelizes componentes de milícias fascistas, cujo primeiro juramento é deixar de pensar e de indagar a respeito do seu destino, concordando sempre com o chefe infalível e onipotente.

Enquanto que os nazistas são uns gozadores, reduzindo a criatura humana a um simples animal instintivo e sedento de prazeres os mais baixos possíveis, entregando-se ao deboche, ao sadismo, a luxúria sensacionalista a mais desbragada, a concepção de Nietzsche frente aos instintos é profundamente estóica e ascética. Se o tipo nietzschiano quer e pode, colocando-se acima do bem e do mal, é porque procura superar-se a si mesmo pela dor. Na realidade um autêntico cristão, embora Nietzsche pretendesse derrubar e acabar como o mínimo vestígio de cristianismo na terra. Usando uma frase que proferiu uma das personagens de D’Annunzio, comparsa iniciador do fascismo italiano, bem poderiam dizer os nazistas que “quem muito sofreu é menos sábio do que quem muito gozou”. Nietzsche pregava justamente o contrário, ao declarar que “o homem que se entrega ao gozo universal é o último dos seres”.

Em verdade a aristocracia do genial criador do super-homem era somente de vontade, como alguma coisa de dinâmico, de eterno vir-a-ser, de luta constante contra a fraqueza e a debilidade. Não tinha nada de elemento social, nem de herança, muito menos de classes privilegiadas. Tanto é assim que o verdadeiro ser superior pode encontrar-se tanto entre as classes ricas como entre as classes pobres da sociedade atual. O que Nietzsche chamava de filisteu era justamente o homem fátuo, com uma espécie de cultura cor-de-rosa e elevada posição social, em uma palavra, o parvenu e o burguês em geral.  A sua moral de escravos e de senhores nada tem a ver com a presente estratificação da sociedade. É justamente por se levantar contra esse estado de coisas que Nietzsche anuncia uma nova transmutação de todos os valores, que pode ser resumida nestas poucas linhas do parágrafo 86, do 1º volume de “A vontade de Poder”: “Ensino a dizer não em face de tudo o que torna fraco ou de tudo o que esgota. Ensino a dizer sim em face de tudo que fortifica, de tudo que acumula forças, do que justifica o sentimento de vigor”.

Como se vê, não se refere a nenhum elemento social, a nenhum privilégio de sangue ou dinheiro. Para Nietzsche, o que importa a aristocracia da vontade – “Aristocratie des Wiliens”. Os senhores e os escravos encontram-se indiferentemente entre os proletários e os burgueses atuais, caracterizando-se mais por uma diferença estritamente psicológica do que social. Trata-se de “almas senhoriais” e de “almas servis”. Toda a moral vigente é de escravos, “porque conduz necessariamente à decadência, à conservação e à multiplicação da miséria, transformando a terra num grande hospital”.

Aliás, é esta falta do elemento social na obra de Nietzsche o que a torna evidentemente mais frágil e criticável. Pretendeu ele construir a sua filosofia fora do tempo e do espaço, além do bem e do mal, à maneira de uma pomba que voasse no vácuo. Pensou com isso escapar às correntes e às lutas do seu tempo, procurando ignorar as lutas sociais que se desenrolavam diante dos seus olhos. A sua atitude como pensador é a de um romântico, entregue aos seus problemas íntimos, de sentimento e de cultura, indiferente à sorte do mundo. Contudo, podem-se tirar algumas conclusões políticas da sua obra inteiramente contrárias ao espírito do nazismo.

Em mais de uma passagem ataca Nietzsche acerbadamente o Estado, a organização estatal, como uma verdadeira instituição de rapinagem oficializada que se impõe pela força. Vale este trecho (af. 326, da “Vontade de Poder”): “O Estado ou a imoralidade organizada – no interior sob a forma de polícia, de direito penal, de casta, de comércio de família; no exterior, como vontade de poder, de guerra, de conquista, de vingança”.

A negação do Estado por Nietzsche chegou a tal ponto que de certa feita escreveu que “cultura e Estado são inconciliáveis”. E no aforismo 481 do “Humano, demasiado humano”, lê-se essa crítica ao armamentismo, ao chauvinismo patrioteiro, à guerra, como não o faria melhor  nenhum de nós, que estamos assistindo diretamente as conseqüências  desses fatos: “Do mesmo modo que um povo sofre os grandes prejuízos que ocasiona a guerra e a preparação desta pelos gastos de guerra, pelas perturbações do comércio e das comunicações, nem tão pouco pela manutenção  dos exércitos permanentes – por graves que possam ser esses prejuízos, hoje oito Estados da Europa gastam nisso anualmente  a soma de cinco mil milhões – mas também porque de ano em ano os homens mais sãos, os mais fortes, os mais laboriosos, se vêem arrancados de suas ocupações  e de suas vocações próprias para ser soldados, do mesmo modo a um povo que se constitui no dever de fazer grande política e assegurar uma situação preponderante entre as potências não sofre  os mais graves prejuízos onde  se encontra comumente. É verdade que a partir desse momento sacrifica continuamente uma multidão de talentos de primeira ordem “no altar da pátria” ou por ambição nacional, enquanto que esses talentos, que agora devora  a política, encontravam abertos outros campos de ação”.

E termina de maneira incisiva contra o nacionalismo: “Há verdadeiro proveito se a estas flores grosseiras e mal pintadas do nacionalismo temos de sacrificar todas as plantas e ervas mais nobres, mais ternas, mais intelectuais, que tanto enriqueciam seu solo?”.

De outra feita, escreveu ainda Nietzsche: “A xenofobia doentia que a loucura nacionalista semeou e semeia ainda entre os povos da Europa, que não passa de uma política de intervalo”. E atacando diretamente o Reich bismarquiano do seu tempo, dizia que era bem triste assistir o Reich armar-se até os dentes, transformando-se em um “ouriço heroico”, esquecido de que foi uma nação que produziu realmente grandes pensadores. No “Crepúsculo dos Deuses”, exclama: “O que as escolas alemãs atingem, com efeito, é um adestramento brutal para tornar utilizável, explorável para o serviço do Estado, uma legião de jovens. Educação superior e legião, eis uma contradição primordial”.

No “Humano, demasiado humano”, escreve (cf. 275): “A democratização da Europa é irresistível”, e conclui pouco adiante (cf. 292): “O resultado prático desta democratização, que vai sempre em aumento, será, em primeiro lugar, a criação de uns Estados unidos europeus, nos quais cada país, delimitado segundo suas condições geográficas, ocupará a situação de um cantão e possuirá os seus direitos particulares. Então, serão tidas em muito pouca conta as recordações históricas dos povos, tais como existiram até o presente, porque o sentido da piedade que rodeia estas recordações será pouco a pouco desenraizado sob o império do princípio democrático, ávido de inovações e de experiências”.

E sobre o judeu, que pensaria Nietzsche? Nada mais, nada menos do que isso: contrário a qualquer preconceito de raça e arianismos idiotas (cf. 475 do “Humano”): “Quando se trata não somente de conservar ou de estabelecer nações, mas também de produzir e elevar uma raça mista de europeus, a mais forte possível, o judeu é um ingrediente mais útil e desejável que nenhum elemento nacional. Toda nação, todo homem tem rasgos desagradáveis e ainda perigosos: é bárbaro querer que o judeu seja uma exceção”.

Neste mesmo aforismo, mostrando que o problema judaico só pode ter existência real quando se levantam as questões das nacionalidades estanques, aproveita a ocasião para apontar  a falsidade desses supostos nacionalismos: “O comércio e a indústria, a comunidade de toda a alta cultura, a rápida mudança de lugar e de país, a vida nômade de todos os que  atualmente não possuem a terra: todas essas condições acarretam necessariamente um debilitamento, e por último, uma destruição das nações, pelo menos das nações europeias. A este fim se opõe atualmente, consciente ou inconscientemente, o exclusivismo das nações pela produção de inimizades “nacionais”, mas a marcha desta mescla não é menos lenta, apesar de todas as correntes contrárias do momento. Este nacionalismo artificial é, além disso, tão perigoso como o foi o catolicismo artificial, pois é por essência um estado de coação, um estado de sítio forçado, imposto por um pequeno número ao grande número, e necessita do ardil da mentira e da violência pra manter seu crédito”.

Na “Vontade de Poder”, lêem-se esses dois trechos inequívocos sobre o destino dos trabalhadores no mundo moderno: “Os operários deveriam aprender a reagir como soldados. Honorários, vencimentos, nada mais de salários! Nenhuma relação entre pagamento e trabalho! Colocar cada indivíduo, de acordo com sua natureza, no lugar em que puder produzir o mais possível dentro de sua especialização”. E depois: “Os operários viverão um dia como vivem atualmente os burgueses; mas acima deles, distinguindo-se pela ausência de necessidades, viverá a casta superior, mais pobre e mais simples, dona, entretanto, do poder”.

E pregava para os operários o mesmo ascetismo que simboliza o verdadeiro cientista, exclamando sem rebuços: “Nós somos todos operários”.

Tudo isso que ficou aí citado, entre aspas, é a negação formal e completa da afirmação gratuita e ligeira de que Nietzsche é a inspiração imediata e direta do nazismo. Mentira ou ignorância de quem afirma. O que Hitler conseguiu fazer da Alemanha dominada, sob o terror de sua “Gestapo” assassina, foi uma sub-humanidade de analfabetos fanáticos e carneiros, destituídos de vontade própria e seguidores  cegos de suas ordens. A doutrina da vontade de poder de Nietzsche tanto pode ser aplicada ao nazismo como ao seu oposto político e ideológico, isto é, à doutrina da luta de classes. Também aqui, nada mais se trata do que uma luta pelo poder, em que o fraco tem de organizar-se e tornar-se forte, para conquistá-lo. E isso nos faz lembrar do caso de Hegel, que se por um lado deu as esquerdas marxistas, por outro, inspirou a constituição do Estado alemão forte e centralizado, por sua teoria endeusadora do Estado, como único detentor legítimo da cultura social.

Os grandes pensadores são vítimas, às vezes, da falta de visão social e política. Ambiciosos da posteridade, do mundo idealista da pura ficção doutrinária e teórica, esquecem-se de que são homens que vivem na terra, entre o tumulto de todos os dias no meio dos outros homens que sofrem, anseiam e lutam pela modificação do estado de coisas que os cercam. Com a cabeça metida nas nuvens, verdadeiros pavões da cultura, não se perturbam esses fazedores da filosofia pela necessidade de que têm de tomar partido, e de que os seus pés caminham também pisando o chão duro da realidade. E por isso tornam-se vítimas fáceis de futuros aproveitadores das suas doutrinas, para justificar a prática inconfessável dos seus crimes contra a civilização.

Nietzsche foi um cidadão do mundo, de todos os tempos e de todos os países. Foi um homem na mais pura acepção da palavra, criou um filosofia universal, sem estandartes, nem fronteiras. O seu homem superior não precisava de passaporte, porque a sua pátria era o universo inteiro. Estava onde estivessem todos os que “vivessem como homens superiores da civilização”. O suposto super-homem do nazismo nada tem haver com a filosofia de Nietzsche, pelas suas características de educação de rebanho, de nacionalismo artificial, racismo, alheado a qualquer problema da cultura e do espírito.

Nesta limitação de horizontes, camuflado, falsificado e explorado, seria Nietzsche o primeiro a sentir-se revoltado e repudiar este parentesco indesejável que, a todo custo, lhe querem atribuir com o nazismo. É sempre comum aos regimes oportunistas e sem doutrinas próprias apontar nos grandes escritores razões de ser do seu advento. Basta lembrar o cinismo dos teóricos integralistas, quando começaram a pregar que Euclides da Cunhas e Castro Alves tinham sido percussores daquela farra verde e que, se fossem vivos, iriam por certo para a fila da Travessa do Ouvidor, requerer a sua carteirinha de sócio...

Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1945

Goethe e a antiguidade clássica

Apesar de haver nascido e vivido na Alemanha, principalmente na sua cidade quase pessoal de Weimar, não há dúvida que Goethe sempre foi um meridional. Desde cedo voltado para a natureza, preocupou-se inclusive com as ciências naturais, desde a Física até à Biologia, com a sua célebre teoria das cores (contra Newton) e as suas hipóteses e estudos de vértebras animais, em que se antecipou ao evolucionismo que chegou depois dele. Mais tarde, já com preocupações filosóficas, inclinou-se para o panteísmo espinozista, dando vazão à sua intuição inicial de confundir-se com a própria natureza, no que ela tenha de eterno e de vivo. Em tudo ele via manifestações desta vida que não pára, desta vontade de viver e de permanecer. A criação estava por toda parte, refazendo, aproveitando, recompondo, mas não morrendo nunca.

Este homem de temperamento ardente, agudo, de antenas sempre voltadas para as manifestações das artes e das ciências, sentiu necessidade de descer, de viajar pela Itália, em busca do ambiente, se não da antiguidade clássica autêntica – e para esta só com a máquina do tempo do Dr. Papanatas... –, pelo menos, do Renascimento. Compartia ele das mesmas inclinações do seu conterrâneo e contemporâneo, Winckelmann. O Renascimento para Goethe era o caminho para a antiguidade, era o instrumento mais moderno, mais recente, de o homem da sua época penetrar nos ideais e nas concepções da Grécia clássica.

Em verdade, a antiguidade de Goethe era uma antiguidade superposta à real, com grandes acréscimos do genial escritor, depurada do que pudesse apresentar de feio e de triste. O quadro que ele pintava era claro, límpido, pujante de vida, sem baixeza de espécie alguma. E alguém já disse, com algum espírito, que os gregos não foram tão gregos assim... A sua redescoberta pelos tempos modernos emprestou mais colorido aos tempos antigos, como um foco de luz que ilumina uma cena, onde realmente houve grandes espetáculos... Mas há uma superposição de luz.

Quando de sua viagem pela Itália, mais de uma, inspirou-se Goethe diretamente nos ambientes renascentistas, leu e releu os escritores do quatrocento, como que a querer sorver a sua forma de vida e os seus sentimentos. Não se contentou em escrever dramas com o espírito da época, cujo exemplo típico é o Torquato Tasso, tentou ainda alguns esboços de desenho. Mas foi, sobretudo no Fausto, que ele procurou contrapor o espírito medieval ao espírito moderno, com a súbita mudança de interesse pelas coisas do mundo, pelas coisas da terra, procurando-a penetrar por todos os lados, na busca desesperada e incansável do próprio infinito. Chegar ao infinito, dizia ele, é penetrar o finito por todos os lados.

O drama antigo, a escultura, assim como a pintura e a literatura do Renascimento – para Goethe, reencarnação da antiguidade – eram os tipos mais elevados e puros da criação humana. No seu livro de memórias Dichtung und Wahrheit (Poesia e Realidade), escreve, ao chegar em Roma: “Eis-me aqui, eu o creio pelo menos, tranquilo pelo resto de meus dias. Começa-se a viver quando se vê em conjunto e pelos próprios olhos o que não se conhecia senão em parte ou por ouvir-dizer. Os sonhos de minha juventude se realizam”... “A história do mundo inteiro se prende a esta cidade, e o dia em que cheguei aqui pela primeira vez é para mim um segundo dia de nascimento”... “Procurei as Cartas de Winckelmann, escritas durante sua estada em Roma, e as li com uma profunda emoção. Foi na mesma estação, mas trinta e um anos antes, que ele chegou aqui, com maior inexperiência do que eu e inteiramente decidido a estudar com seriedade a antiguidade e as artes. Trabalhou corajosamente para alcançar o seu objetivo, e sua lembrança me é mais cara ainda desde que, eu também, vi Roma”.

O entusiasmo e a emoção transbordam em cada palavra, sente-se a realização de um ideal há muito concebido, como se a criação de Pigmalião, na própria imagem de Goethe, saltasse para ele e gritasse: Eis-me aqui!, fazendo-o compreender a grande diferença entre o mármore esculpido e o ser vivo.

Mas, apesar dessas exterioridades todas, nada aproximava mais Goethe da antiguidade do que o mesmo sentimento, idêntica compreensão do destino humano, à mercê da inexorável necessidade, da ananke a mais cruel e cega. O drama humano, antigo ou moderno, gira todo dentro deste conceito, assim poeticamente expresso por Goethe, como que dando a imagem da vida: um bater de asas, e atrás de nós a Eternidade – “Ein Flügelschlag – und hinter uns Aonen”.

A Cigarra. Rio de Janeiro, dezembro de 1956

Rui Barbosa em Buenos Aires

Quando Venceslau Brás tomou posse de Presidente da República a 15 de novembro de 1914, já a Europa se encontrava conflagrada desde 1º de agosto. Rui Barbosa não lhe era hostil, demonstrando-lhe, pelo contrário, benévola simpatia e os melhores augúrios, depois do governo, que se encerrava, do seu acirrado adversário da campanha civilista.

Constituiu-se o ano de 1914 talvez o de maior atividade parlamentar do representante baiano, durante o qual se destacaram duas grandes intervenções: a decretação do estado de sítio pelo Governo durante o recesso do congresso e o pedido de informações sobre o fuzilamento de marinheiros a bordo do Satélite. No ano seguinte e na metade de 1916, como que se mantivera calado, assombrado com as barbaridades e a violência da conflagração entre os aliados e os Impérios Centrais. Todo o seu mundo de valores e símbolos ruía fragorosamente diante do espetáculo a que seus olhos assistiam. Desde o primeiro momento, segundo esses valores e essas normas, identificou o agressor e tomou partido. Estava com a Inglaterra e seus aliados. Aceitara o convite para fazer parte da Liga Brasileira pelos Aliados, então fundada, e chegou a ser seu presidente. Em dedicatória do próprio punho de um exemplas das Cartas da Inglaterra (Ed. de 1896) a Alexander Mackenzie, que se encontra na Casa que lhe leva o nome, escreveu Rui: “Neste livro palpitava, há mais de vinte anos, o meu coração com ardor pela Inglaterra e pela França, hoje, graças a Deus, indissoluvelmente unidas para o bem da humanidade. Deus as cubra de bênçãos e perdoe aos seus gratuitos inimigos”. Data: 6 de julho de 1915.

Pois bem, comemorava-se a 9 de julho de 1916 o centenário da Independência da República Argentina. Pretendendo o Governo brasileiro enviar uma delegação especial para as comemorações “dos fastos cívicos de Tucumán”, dentro da melhor política de boa vizinhança, fixou-se a sua escolha na pessoa de Rui Barbosa, já a caminho dos 67 anos de idade e com a saúde cada vez mais precária.

Rui não pedira nada, nada pleiteara do Governo. Atravessava uma das suas fases de desânimo e de meditação, talvez estarrecido diante da pavorosa guerra que se desenrolava, e também perplexo com o súbito e trágico desaparecimento de Pinheiro Machado, seu adversário na política nacional havia cerca de vinte anos. Ademais, julgava-se obrigado a não se manifestar na política pela posição de membro do Tribunal de Arbitramento de Haia.

Convidado para a missão por intermédio de seu filho Alfredo Rui, pede-lhe em fevereiro de 1916 que leve a sua recusa ao Ministro Lauro Müller, por motivos inarredáveis. Ainda em 10 de junho, em carta ao Ministro, declinava do convite “por motivo de saúde e receio de, por essa razão, não poder cumprir sua missão”. Mas já na mesma data estava nomeado Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário para aquelas comemorações.

Sobre o episódio vale à pena a leitura de meia página de João Mangabeira, que o narra como testemunha participante: “A princípio recusou Rui o convite. E, por carta de 10 de junho, isso comunicava a Lauro Müller, que apelara até para a família do grande brasileiro, a fim de trabalhar no sentido de convencê-lo a aceitar. Mas todo o empenho desta se baldara. Como sempre, a meu ver, o que Rui temia era não corresponder à expectativa. Alegava, porém, a “sua notória predisposição para a gripe” e o receio de contraí-la, no inverno argentino, sujeito assim a uma situação intolerável, constrangida e desastrosa, qual a de chegar ao lugar do destino, e não “ser possível da conta” da sua “alta missão”.

“Lauro Müller, porém, não se dá por vencido. E no mesmo dia – 10 de junho – aniversário de Alfredo Rui, à noite, estávamos à mesa, em sua casa, à Rua Senador Vergueiro, além dos membros da família, eu, Palmam e o Major Carlos Aguiar, velho e íntimo amigo de Rui e dos seus. Batem à porta e anunciam Lauro Müller. Rui Levanta-se e, acompanhado de Alfredo Rui e Batista Pereira, dirige-se à sala de visitas, onde passam a conversar. E Carlos Aguiar, ato contínuo, provocando risos: “Rui sozinho numa sala com aqueles três mágicos, já sei do resultado – está embrulhado”.

“Perto de uma hora depois sai Lauro Müller. Volve Rio acompanhado pelo filho e pelo genro. Tem no rosto um arzinho de riso. E Aguiar: - “Foi embrulhado, não?” E Rui, a sorrir: “É verdade”. Aguiar repete-lhe o que dissera e ele ri gostosamente. E explica que, ante o apelo instante, sincero, de Lauro Müller, não só em nome do Governo, mas, por fim, em nome do Brasil, para que fizesse um sacrifício e não privasse a Nação desse serviço, ele, perplexo, cedera e aceitara a missão”.

(Do prefácio, inédito, ao volume Embaixada a Buenos Aires – Tomo I do vol. XLIII – 1916 – das Obras Completas de Rui Barbosa, a sair dentro em breve).

Jornal de Letras. Rio de Janeiro, maio de 1979

Alceu e a reforma social - uma coerência

“Os livros se alinham na estante, marcos inúteis e frios do caminho percorrido. Mudamos também as ideias. Mudam por vezes radicalmente as posições em face dos mistérios da vida e da morte. Mas no fundo permanecemos os mesmos.”
Tristão de Ataíde, 1947.

1. Enganam-se os que colocam uma linha divisória, estanque, intransponível entre o Alceu de antes de 1928 e o que veio depois de sua conversão, como se se tratasse de duas vidas culturais inteiramente dissociadas ou opostas entre si. Nem mesmo sob o aspecto espiritual isso é totalmente  verdadeiro. Muito menos sob o aspecto de sua filosofia social. Enganam-se também os que separam, por comodismo didático ou metódico, o crítico literário do crítico de ideias, antes e depois de 1928. Alceu sempre foi um crítico de ideias desde os seus primeiros escritos. Na sua crítica, anterior à conversão, tratava ele de todas as matérias – filosofia, sociologia, história, direito, antropologia, política, e não somente de literatura em sentido estrito, isto é, de ficção ou de poesia. A diferenciação que se deu – esta sim – foi entre o puro homem de espírito e o pregador religioso, já agora catequista, homem de ação social, devoto, convictamente católico. Agora a causa era outra, voltada para a cristianização, para a catolicização da vida brasileira, por que antes, desde os primeiros ensaios, sempre existiu em Alceu uma certa pregação, uma proposta de reformas, um anseio de fazer mudar.

Desde os primeiros ensaios, ainda anteriores à sua estreia na crítica em 1919, voltou-se Alceu para os problemas brasileiros, revelando-se logo nacionalista, sem nunca deixar de ser universalista. E assim o foi durante toda a sua longa e admirável existência. Ser-lhe-ia bem aplicável a conhecida divisa de Victor Duruy: “Il faut étre universel au profit d’une spécialité”. Com uma concepção de vida totalista, quer antes, quer depois de 1928, nunca separou Alceu os problemas regionais dos problemas nacionais, nem estes dos problemas universais. Todos fazem parte da mesma essência humana. Depois de 1928, ainda mais se reforça essa sua linha conceptual, colocando-se o homem relativizado e contingente diante do absoluto, diante de Deus. O vir-a-ser da história e da vida passava para um plano inferior, meramente factual, diante do Ser e do Ente, do existencial para o ontológico. Agora havia uma meta e um ideal eternos, uma explicação, uma origem e um fim extraterrenos.

2. No que diz respeito à reforma social, à crítica da sociedade contemporânea, sob o ponto de vista concreto e propriamente humano, o pensamento de Alceu seguiu sempre uma linha reta, sem vacilações nem contradições. Foi sempre um só, unitário, homogêneo e uniforme. O reforço da fé, o auxílio da convicção cristã, aliados à resistência encontrada em seu tempo – que é também o nosso – é que fizeram parecer que se tratava de outra pregação e de outra doutrina, quando sempre foram as mesmas. Quando não se é ouvido, ou quando não se descobre ressonância do que se prega, a advertência então vai subindo de tom, a voz às vezes chega até o grito, diante dessa persistência ou dessa recrudescência do mal e do erro. Quanto mais escurece e ensurdece o fundo da paisagem, mais se destaca a figura luminosa do viajante que, pela estrada, pela, por palavras e gestos, vai indicando o caminho que deverá salvar a todos os que com ele se encontram na mesma aventura. Não mudou Alceu, as condições sociais é que se mantiveram as mesmas ou se tornaram piores, mais injustas, mais iníquas, manos humanas, mais distantes dos mandamentos cristãos. A nossa moldura criava um contraste cada vez mais nítido com o quadro fazendo parecer que este era outro, quando sempre foi o mesmo.

Alceu sempre quis a reforma social, sempre combateu o individualismo, o egoísmo, a má distribuição dos bens da vida, a irredutível separação entre os ricos e pobres como se fosse um dado da natureza ou da biologia. Sempre pregou o advento de uma sociedade melhor, mais justa, mais humana, com a manutenção da propriedade privada, inerente à própria personalidade, mas de livre e real acesso a todos. Sempre pregou a lei moral informando a vida política e a vida familiar. Sempre pregou, enfim, um humanismo social, antiburguês, anticapitalista, antimaterialista, igualmente afastado de qualquer forma de Estado totalitário, de esquerda ou de direita, que anulasse o indivíduo, cooptando-o e o absorvendo. A euforia burguesa ignorava Deus, enquanto o negava a euforia revolucionária. Escrevia Alceu que ambas eram anticristãs, sendo, contudo, mais perigosa para a fé a indiferença e a displicência da sociedade que se deixara entorpecer no culto ao bezerro de ouro. Escrevia em 1931, com uma veemência a Jackson de Figueiredo: “Pretender matar nos espíritos e nas instituições, até a sombra da ideia de Deus, é ainda reconhecer o poder invencível da sua realidade. Deixar, porém, que morra lentamente nos corações e nas inteligências todo conceito e amor de Deus e do seu Cristo é apenas compará-lo a uma superstição decadente”.

3. Esta pequena fala, que vamos realizando, será mais de Alceu do que nossa, tais e tantas serão as referências entre aspas, de textos seus fundamentais. Afinal precisamos comprová-la, além, muito além, de qualquer dúvida razoável.

“Pelo passado nacional” é o título de um artigo seu publicado em dezembro de 1916, quando completava 123 anos de idade. Aí já se encontrava o seu nacionalismo, a sua preocupação com as coisas do passado brasileiro e, sobretudo, a sua sensibilidade mística, voltada para a arte religiosa. Contudo, como este não é o tema que vamos tratando, passaremos rapidamente por ele. Com Rodrigo Melo Franco de Andrade, andara Alceu pelas cidades antigas de Minas, notadamente Ouro Preto e Diamantina. Lamenta o estado em que se encontram as igrejas e capelas locais abandonadas, depredadas, em ruínas, e, mais do que isso, mal restauradas. Assim começa o artigo de forma poética: “Venho de um grato colóquio com as cousas do nosso passado. Na retina se me estampam ainda a alvura das capelinhas montanhesas, entre o anil do céu e o verde das frondes, o porte simbólico dos cruzeiros, a pedra corrida dos velhos chafarizes, os muros negros, as árvores anciãs”. Numerosas vezes lhe sai da pena, com ternura, a referência a S. Francisco de Assis, a quem dedicaria poucos anos mais tarde algumas de suas melhores páginas, como quando alude aos “atos da vida desse suave bem-aventurado”.

E, já prenunciando o grande ensaísta e crítico que desabrocharia menos de três anos depois: “A missão suprema do brasileiro de hoje é reunir os materiais para preparar um espírito nacional, em todas as manifestações de sua atividade. E para isso é preciso que ao artista, ao jurisconsulto, ao arquiteto, ao político, ao militar, ao industrial não reduza unicamente a originalidade; só se tem o direito de ser original sem o querer”, disse-o Joaquim Nabuco. “A arte, a literatura, o estilo, a organização verdadeiramente nacionais serão uma consequência lógica do nosso meio, do nosso clima, da nossa filiação, das nossas tendências”.

Em artigo do ano seguinte, já se refere à “ilusão cientificista” do século XIX, que será uma das aquisições definitivas da sua concepção filosófica. Ainda no ano de 1917, em longo ensaio subsequente, prega um pouco romanticamente a volta ao campo, um êxodo às avessas, pelos males sociais que a atividade urbana e industrial nos pode causar. É bom não esquecer, porém, que também ruralista era a pregação de Alberto Torres, que vira a falecer no ano mesmo do artigo de Alceu, que ele não se refere (1917). Aparecem aí algumas ideias econômicas e sociais que o acompanharão até o derradeiro dia de vida. Prega a “conjuração no berço (do nosso desenvolvimento econômico) da guerra de classes”. E acrescenta, ao fim do período: “O meio prontamente acessível de se chegar a esse resultado parece ser a distribuição mais equitativa das riquezas, evitando a miséria”. Isto, que é de 1917, do jovem Alceu de 23 anos, será o mote do Alceu permanente de agosto de 1983.

4. Iniciando-se na crítica literária propriamente dita em O Jornal, a partir de junho de 1919, nem por isso deixou Alceu de se ocupar e preocupar-se com os problemas sociais e econômicos, quer no âmbito universal, quer no âmbito nacional. Ingressávamos, como nunca mais se cansaria de dizer, na fase de grande transformação oriunda da Guerra e da Revolução. Acaba aí definitivamente la belle époque, o liberalismo descuidado dava o seu adeus como possível forma de organização política da  vida social. O diagnóstico estava feito, havia que escolher a terapêutica. Alceu, mais uma vez, faria-se presente e não omitiria a sua opinião, a despeito de pertencer, social e economicamente, à classe burguesa.

O seu primeiro artigo de crítica, de 17 de junho, ao contrário do que pensam seus leitores apressados não é literário em sentido estrito, e sim de política e filosofia social. Prega a “individualidade nacional’, dirige-se aos que “amam esta terra e confiam neste povo”. Urge, dizia, a concorrência de todas as forças sociais para a obra da cultura entre nós. Higiene e economia eram os caminhos indicados. “resolvido o problema do saneamento da gente e da terra, estabilizada a ordem econômica, sob os atuais ou outros moldes, a inteligência nasce naturalmente como uma flor necessária e não, como hoje, temporã”.

Deve ser lembrado que, à época, estava em moda o problema do saneamento como a salvação do Brasil. Em fins de 1916, começo de 1917, iniciara Belisário Pena uma série de artigos no Correio da Manhã debatendo o tema. Em 1918, o mesmo sanitarista dá à publicidade o relatório da pesquisa que realizara, juntamente com Artur Neiva, sobre as péssimas condições de saúde da população nacional. No mesmo ano aparecem Urupês e Problema Nacional, de Monteiro Lobato, reunindo estes último artigos publicados pela Sociedade Eugênica de São Paulo e Liga Pró-Sacramento do Brasil.

O artigo seguinte, na nova seção de crítica, é dedicado a Lima Barreto, por quem Alceu demonstra grande simpatia, chamando-o de “o mais humano de nossos romancistas, o de mais vasta mirada”. “Humorista, caricaturista, com uma visão dolorosa dos males e ridículos sociais”, seu personagem (Gonzaga de Sá) manifesta “um amor entranhado pelos humildes vencedores”.

O quarto artigo nada mais é do que uma simpática recensão do Clarté de Henri Barbusse, cuja “frase poderosa, La révolution, c’est l’ordre, resume o seu idealismo positivo”. Pela piedade, diz, Barbusse chegou à razão, “ao amor pelo homem do povo sofredor, vítima do mecanismo social”. E completa: “Sua fé na remodelação social não é utópica. Ela não crê que qualquer regime social possa influir na felicidade – ‘paraíso íntimo e pessoal’ –, mas a ‘vida equilibrada e cuidada é necessária ao homem para construir a mansão isolada da ventura’, para ‘viver para a paz e o trabalho justo, a doçura do lar, o conforto geral, para os inventos, os acordos, as virtudes’. Não é idílico o seu quadro futuro e justo e razoável”.

Ora, esse é o Alceu de sempre. Mas não vamos prosseguir nesta busca de manifestações econômico-sociais entre os escritos de Alceu anteriores a 1928. Basta destacar um de 1927. Trata-se da conferência sobre o distributismo (forma usada por Alceu, aqui rejeitada), influenciada diretamente por Chesterton, e que causou satisfação a Jackson de Figueiredo. Em carta que lhe endereça, com data de 22 de julho, diz-lhe este: “V. me deu as melhores alegrias destes últimos tempos, e sua conferência está entre elas. Merecia um longo comentário, mas limito-me a dizer que V. poderá dar ao Brasil o que ele mais precisa: uma escola de moderação que nada tem de medianice espiritual, e antes é feito do que há de mais profundo em harmonia com o que há de mais agudo e sutil”.

A conferência é longa, levando como epígrafe a frase de Drieu La Rochelle: “La capitalismo et le comunismo sont tous les deux hors de l’espirit”, que dá bem a medida dos seus propósitos. Alceu aventura-se ao tema, propondo soluções econômicas e sociais, porque não quer ser “odioso o homem que olha apenas”. O distributismo parte do homem. E esclarece: “precisamos atingir uma organização social que não mutile o pleno desenvolvimento da personalidade humana, que permita à liberdade individual uma expansão justa”... “A sociedade contemporânea chegou pela acumulação de riqueza em um número cada vez mais restrito de mãos, à supressão daquela liberdade natural do homem e ao obstáculo à expansão normal da personalidade. O distributismo visa justamente a impedir essa acumulação de riqueza, tanto na mão do Estado, como no caso da solução comunista, - como nas mãos dos sindicatos impessoais e intercontinentais, como no caso da solução capitalista moderna. O distributismo, como seu nome indica, visa à distribuição do que se cristalizou como o tempo, a disseminação das riquezas que se concentraram.

Pode-se dizer, portanto, que o distributismo vem restabelecer a propriedade. A propriedade que é uma expansão da personalidade. A propriedade que é o núcleo econômico da família. A propriedade que fornece o único fundamento válido para a liberdade”.

E, mais claro ainda: “a propriedade é um meio e não um fim. E a finalidade da propriedade é justamente esse direito primordial (esse sim, essencial e imanente ao homem) que o distributismo coloca na base de sua reforma econômica – a liberdade. O homem deve ser dono de sua casa, da sua terra, do seu gado, dos seus instrumentos de produção, dos seus livros ou dos seus aparelhos, de toda essa riqueza justa e produtiva que o cerca de perto, a fim de ser o dono de si mesmo. O homem precisa da propriedade para sua liberdade individual, para a estabilidade de sua família, para ser um simples soldado social, uma cédula biológica, um elo na cadeia”.

Quatro anos mais tarde já depois da conversão, em 1931, confirma Alceu a sua pregação distributista. Oferece, então, o distributismo como solução racional, nacional e cristã. O capitalismo e o socialismo estão errados ambos, por serem materialistas. A propriedade, os bens e os serviços devem ser disseminados ou prestados a todas as camadas da sociedade, e não somente a um pequeno número de privilegiados. E isso se obtém pela espiritualização da vida econômica, pela submissão da economia à moral e à religião. Conclui Alceu: “O que a sociologia finalista e o que a doutrina social cristã verdadeira almejam, e devem almejar, é reagir categoricamente contra esse espírito dominante de economismo, seja capitalista, seja comunista, que há três séculos corrompe a nossa civilização”... “E quanto aos fatores propriamente econômicos, o que distingue nitidamente a solução distributista, é que se funda na disseminação intensiva da pequena propriedade, quer industrial, quer agrícola e comercial. Tanto o capitalismo quanto o comunismo se fundam na concentração de propriedade. Naquele, a concentração em mãos da plutocracia; neste a concentração as mãos do estado proletário. O distributismo, ao contrário, basea-se na disseminação da propriedade”.

Em um livro da mesma época, do ano imediato (1932), já em plena ação social católica, o seu programa ainda é mais concreto e nítido. Primeiro a origem do mal. “O proletariado real é a classe operária tal como existe em nossa sociedade, caracterizando-se também pela posição social concreta. E essa posição distingue, não exclusivamente, mas em grande parte, pelos traços opostos aos da burguesia. E portanto pela ausência de propriedade e muito especialmente dos meios de produção, e por um desequilíbrio entre a liberdade política que já possui e a subordinação econômica, a que ainda está sujeita, e em geral pelo afastamento dos postos de orientação e direção política e econômica”... “A situação social do mundo contemporâneo era e ainda é a de uma ordem social existente na maioria das nações em que uma classe, a burguesia, domina geralmente as demais, absorvendo a estabilidade social para si”.

Como terapêutica para os males dessa sociedade burguesa, como solução capaz de salvá-la e fazê-la sobreviver, mas sob outra filosofia informativa, vale esta página de Alceu, mas significativa do que qualquer outra àquele tempo, que se antecipa exemplarmente às suas concepções após-guerra (1946): “De um lado o restabelecimento de relações íntimas entre o Estado na economia, pela legislação do trabalho, pela regulamentação dos preços, pela limitação da propriedade privada em benefício da coletividade, pelo auxílio às pequenas propriedades, pela obra de assistência social a mais desenvolvida, pelo amparo à iniciativa privada, justa e eficiente e a participação da economia no Estado, pelos conselhos econômicos, pelos parlamentos profissionais, pelo grupalismo intenso, que dissemina o mais possível a proliferação de pequenos grupos de que as grandes sociedades nacional e internacional serão apelas a integração. E de outro lado, o restabelecimento das relações íntimas entre o Estado e a Igreja.”

No segundo semestre de 1931, escreveu Amoroso Lima uma série de artigos para o jornal paulista A Razão, que reuniu em livro aparecido, com edição de Cataguazes, em 1933. Logo no primeiro, de saudação à São Paulo, defende-se da acusação que lhe fizera um repórter de ser burguês, estranhamente ocupado com a purificação social. Não se envergonha de ser burguês, diz, e por isso mesmo alerta a classe burguesa para o seu descaminho, pois há um marxismo latente no fundo da sua filosofia da vida. E é como cristão e como burguês que se empreende a sua campanha de salvação dessa sociedade que vai desaparecendo, fruto dos seus próprios erros e de desvios de toda ordem.

Nos anos de 1933 e 1934, procurando influenciar a Assembleia Constituinte que então se reunia, escreveu Alceu uma série de artigos indicando os princípios que devem constar da nova Carta. Organizados na Liga Eleitoral Católica, inspiração de D. Leme, obtém os católicos grandes conquistas legislativas no novo texto. Alceu foi o chefe da campanha. Advoga “a reintegração das leis do Estado na realidade da Nação” como solução correta, abandonando a “volta ao regime anterior” e a “transplantação de novas experiências sociais” alienígenas. O Estado individualista falhou. O Estado deve ser ético e corporativo, formando o Poder Legislativo com Câmara mista, Política uma, Corporativa outra, sendo esta última, porém, somente consultiva, embora obrigatoriamente cabendo a deliberação à primeira.

Na ordem econômica, lá estão, de forma límpida e clara, todas as suas pregações de anos anteriores. Merecem transcritas, por mais longas que sejam: “I – A economia é a organização metódica dos bens materiais de um povo, para a satisfação das necessidades humanas. A economia individualista também faliu porque se baseou na livre concorrência e no lucro ilimitado, em vez de se basear na organização racional e na satisfação das necessidades. A economia, portanto, existe para o serviço do ser humano. II – Nestas condições é lícito ao Estado intervir na ordem econômica, pois esta é um dos três elementos fundamentais da organização integral da Nação – não lhe sendo lícito entretanto substituir-se as atividades individuais ou absorver a propriedade particular. III – Essa intervenção do Estado visa à formação da economia nacional corporativa, para, impedindo a concorrência ilimitada, estabelecer estreita colaboração das classes entre si, visando a este objetivo, deve o Estado decretar leis que: a) considerem o trabalho como elemento essencial de cooperação das empresas econômicas; b) protejam o trabalho, em geral, e especialmente o das mulheres e crianças; c) favoreçam as iniciativas particulares se úteis ao bem comum; d) defendam a moral e a higiene públicas; e) favoreçam às instituições de cooperação, mutualidade, previdência e solidariedade; f) regulem os contratos coletivos, entre empresas econômicas e corporações livres de trabalhadores; g) organizem a magistratura especial do trabalho para dirimir as questões entre capital e o trabalho; h) regulem os salários de modo a alcançar o salário familiar e os preços, para manter, quanto possível, o preço do mercado como equivalente ao preço justo; i) protejam a maternidade e as família numerosas; j) instituam e regulem o seguro social generalizado para todas as classes sem capital; k) regulamente o repouso hebdomadário coincidindo com o domingo; l) organizem obras dos lazeres, como conseqüência necessária à redução das horas de trabalho; m) regulamentem o profissionalismo do trabalho manual; n) criem o serviço de inspeção do trabalho; o) e, como base indispensável de tudo, façam o levantamento preliminar e depois periódico das condições do trabalho nas várias zonas do território nacional. IV – Cabe, outrossim, ao Estado tomar medidas no sentido de facilitar a aquisição da pequena propriedade agrícola, comercial e industrial, decretando leis que fixem, com clareza e simplicidade, o conceito de pequena propriedade. V – Colonizar sistematicamente as terras devolutas do interior por nacionais e estrangeiros. VI – Proteger as pequenas cidades, pela concessão de créditos municipais e outras medidas tendentes a desenvolver o progresso das aglomerações urbanas limitadas. VII – Desenvolver a descentralização industrial, impedindo quanto possível as grandes aglomerações operárias urbanas. VIII – Desenvolver o crédito ao pequeno comércio, à pequena indústria e a pequena lavoura. IX – Nacionalizar, gradativamente, as empresas de energia elétrica, pelo aproveitamento das grandes quedas d’água nacionais, para o fornecimento, por preço mínimo, de luz e de força elétrica às populações do país. X – Amparar o homem nacional determinando que as empresas, companhias e sociedades nacionais e estrangeiras empreguem, nas suas diretorias e demais quadros profissionais, pelo menos 2/3 de elementos brasileiros”.

5. Não podemos acompanhar o grande brasileiro e líder católico em todas as suas manifestações posteriores, bastando afirmar que, em todas elas, manteve sempre a mesma postura reformista, reconhecendo que a Igreja não está nem à direita, nem à esquerda, está fora e acima dessas posições. Denunciada a miséria, a exploração do homem pelo homem, o espírito burguês meramente econômico, individualista e leigo, e exige melhor qualidade de vida para todos, com participação, senão igual, porque impossível, pelo menos equitativa nos bens da vida.

No seu primeiro grande livro do após-guerra, são retomados e aperfeiçoados os seus pontos-de-vista sempre sustentados. No prefácio, datado de 16 de fevereiro de 1946, lêm-se palavras como estas: “escrito de um só jato, em quinze dias, não aspira este estudo nem a beleza literária, nem a concisão científica. Será muito um grito de desabafo. São as mesmas coisas que voltam todo o tempo. São os mesmos erros que se condenam a cada passo. São os mesmos remédios que tornam sem cessar. Não há nele novidade alguma. Não há preocupação de outra ordem que não seja ser fiel a um pensamento profundo, a um sentimento irresistível que vem do horizonte de muitos anos já ultrapassados. A obsessão da miséria. A visão das favelas. O contato diário com as mãos calorosas, as faces macilentas, os pés descalços, as roupas em pedaços, as crianças desnutridas, as multidões madrugadoras, as palhoças enegrecidas, os trens superlotados dos subúrbios, a comida incomível das marmitas, toda a sombra trágica que acompanha, no rio de nossos dias, o espetáculo de luxo e de grandeza dos arranha-céus que se multiplicam, dos automóveis suntuosos que enchem as ruas, dos teatros e das praias, das jóias e das peles, dos cassinos e dos palaces, de tudo o que o luxo cosmopolita ou nacionalista exibe nas avenidas suntuosas da cidade ou nas ruas tranqüilas dos bairros residenciais favorecidos”.

Fiel, como sempre, à sua pregação de reforma social não revolucionária, sem violência nem intolerância, viaja Alceu para Montevidéu, a fim de participar do Movimento que leva o nome daquela cidade, fundando a organização da Democracia Cristã na América Latina. Estávamos em maio de 1947 e a revista A Ordem assim publicou os seus objetivos: “I. O movimento se funda sobre a doutrina social cristã. 2. O movimento realizará os princípios do humanismo integral. 3. O movimento não terá caráter confessional, dele podendo participar todos os que aceitam estes princípios. 4. O movimento procura a redenção do proletariado, pela libertação crescente dos trabalhadores das cidades e dos campos e seu acesos aos direitos e responsabilidades do poder político, econômico e cultural. 5. O movimento afirma como indispensável ao regime de convivência entre os homens a volta total ao império da ética e do direito e sua expressão institucional. Repele, portanto, toda ditadura, no terreno político, econômico e cultural, bem como toda hipertrofia das funções do Estado. 6. O movimento repele e combate toda promulgação do fascismo, sob qualquer forma de dominação em que se apresente e que aqui designamos por neofascismo. 7. O movimento repele e combate o comunismo, bem como a todo anticomunismo, quem encubra qualquer reação antidemocrática. 8. O movimento se empenha pela superação do capitalismo, individualista ou estatal, por meio do humanismo econômico”.
Tudo isso já se encontra nas Encíclicas Papais. Em 1931, na Quadragésimo Anno, recomendava o Papa Pio XI, a caridade como o verdadeiro vínculo da perfeição, além de complementar da própria justiça, com a qual não se confunde. Enganam-se, diz Pio XI, os reformadores imprudentes que cuidam somente da justiça comutativa. Não basta extinguir as causas dos conflitos sociais, pois se faz necessário unir os corações e estreitar as vontades. E mais: “Um entendimento verdadeiro entre todos para um mesmo bem comum não poderá, pois, obter-se de outra forma, senão quando todas as partes que compõem a sociedade sintam ser membros comuns duma só grande família e filhos dum mesmo Pai celeste, ainda mais sintam ser um só corpo em Jesus Cristo e membros uns dos outros, de sorte que, se um sofre, todos sofrem com ele”.

As encíclicas mais recentes, de após-guerra, vieram encher ainda mais de alegria o coração de Alceu, confirmando e ampliando doutrinas anteriores da própria Igreja e dele mesmo. Sobre elas escreveu abundantemente, em livros, ensaios e artigos múltiplos, numa pregação entusiástica de verdadeiro apóstolo. Como ele próprio diria em 1973, durante sua vida foi mais do que um simples espectador, mas não chegou nunca a atividade político-partidária. A vida política concreta jamais o atraiu. Permaneceu como “um observador participante. Nem simples espectador na plateia nem ator no palco”.

Desde os primeiros escritos de mocidade, como vimos, sempre se revelou Alceu um crítico do seu tempo, um insatisfeito com a sociedade moderna. O seu espírito reformista sempre se fez presente. A partir de 1928, fortalecido pela fé e pelos mandamentos da Igreja, entregou-se com mais  ardor à cruzada por dias melhores nas relações entre os homens. Como Júlio Maria, buscou sempre a catolização, a cristianização da sociedade brasileira, corajosamente, além e fora de hipocrisias e farisaísmos. Na sua cidade futura reinarão a justiça, a comunhão e o bem comum, E, afinal, como escreveu ele próprio em 1919, referindo-se a outro grande reformista social: “Não é idílico o seu quadro de futuro: é justo e razoável”.

Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, agosto de 1984. Conferência pronunciada em 2 desse mês na Academia Brasileira de Letras no contexto do Curso de Literatura intitulado "Alceu Amoroso Lima, Vida e Obra."

Últimos anos e morte de Sílvio Romero

Democrata, liberal, parlamentarista, amigo do povo, nacionalista, intoxicado de livros e de leituras, veemente, probo, bom coração, raramente estava Sílvio em boa companhia doutrinária. Faltou-lhe um certo senso crítico, que lhe indicasse os vínculos profundos entre as teorias sociais e os países em que eram elaboradas. Ele que havia denunciado os imperialismos de toda ordem, à espreita, procurando dominar ou devorar o Brasil, não percebeu que, não raro, as ideias caminham à frente da economia e do canhão. Serviu de intérprete, ingênuo, do mais ostensivo colonialismo cultural, com as suas pregações etnográficas, de arianismos e dolicocéfalos louros. Denunciava o alemanismo no Sul do Brasil, denunciava o imperialismo britânico, mas os justificava, indiretamente, com a supremacia das raças nórdicas, à alemã, e com a vitória do mais forte, à inglesa. Ammon e Spencer eram os instrumentos. Indignava-se quando chamavam "reacionárias" a essas escolas, que adotava, e muito teve de lutar para livrar-se das suas sequelas práticas em nosso meio, o que o levou a ficar muitas vezes na contramão do movimento social brasileiro.

Tobias e Sílvio, principalmente este, usaram e abusaram do que chamavam de ideal, nunca claramente definido, mas, como o primeiro havia escrito, viam nele muito de sonho, de ilusão e, às vezes, de mentira. A ordem existencial os sufocava, não lhes permitia construir grandes esperanças para o futuro, ficavam num horizonte limitado, com os materiais concretos que a sociedade lhes dava, e que estavam ao alcance do seu dogmatismo instrumental cientifico. Por isso mesmo, não compreenderam - ou compreenderam mal - um Tavares Bastos, um Patrocínio ou um Nabuco no abolicionismo; como não chegaram igualmente a compreender - principalmente o primeiro - os propagandistas da República, que lhes pareciam líricos e sonhadores com seus gorros frígios. Não viram que a utopia surge da própria existência, como corretivo, como instrumento ideal de mudança da realidade incômoda e injusta, Por isso mesmo, não se engajaram nos movimentos de reforma social, presos à estrutura e à estratificação dos seus dias. Em nome da ciência, tiveram medo de ser utópicos. Não assumiram um compromisso de uma nova sociedade com o futuro.     

A última grande aparição de Sílvio deu-se em fins de 1913, como paraninfo dos bacharelandos da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. O remédio brasileiro é o título da sua fala. O discurso é longo, como um testamento deixado à mocidade, pressentindo ele que seria a sua derradeira mensagem. Foi lido em menos do terço inicial, ou por se encontrar já enfermo o seu autor, ou por haver notado a inquietação dos novos bacharéis, à espera da abertura do baile, logo a seguir. Realizou-se a cerimônia no sábado, 20 de dezembro, no Clube dos Diários, às 21 horas, sob a presidência do conde de Afonso Celso. Entre os que se formavam, vários foram os que se destacaram mais tarde na vida cultural brasileira, vindo dois deles até a ser adversários em memorável concurso para a cátedra de economia política (1932) na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro - Leônidas de Rezende e Alceu de Amoroso Lima. O primeiro foi o orador da turma, da qual faziam parte ainda Magarinos Torres, Plínio Travassos, Honório Silvestre e Mário Gameiro. Em 1932, Leônidas e Alceu defendiam teses opostas, mas nos últimos 20 anos de vida a trincheira que os separava tornou-se transparente. Não faltou quem chamasse Amoroso Lima de utópico, sonhador e seráfico, mas, ao falecer em agosto de 1983, muito do seu sonho político já estava realizado. Falta ainda o outro sonho que ambos sonharam: o da justiça social.

Passara Sílvio o ano de 1912 em Juiz de Fora, "quentíssimo" no verão e "frigidíssimo" no inverno, como ele próprio dissera. As suas forças iam declinando, com pressão baixa, vertigens, num cansaço permanente. Escrevia a Almáquio Dinis: "Tenho piorado de todos os meus males, e, por isso, nem carta tenho respondido." De volta a Icaraí, a sua saúde melhorara um pouco. Retorna às suas atividades intelectuais, aparentando o mesmo ardor que sempre punha em defesa das ideias e das doutrinas preferidas. Mas o mal prosseguia. Já em carta de 31 de janeiro de 1919, escrevia a seu amigo Artur Guimarães: Eu bem andava sempre dizendo: eu acordo morrendo, almoço morrendo, ando morrendo, janto morrendo, deito-me morrendo... Sempre andava a me queixar, sempre, sempre... de palpitações, tonteiras, vertigens, dispneias, asmas, etc., etc. Segundo o Barbosa Romeu, tudo aquilo era estômago!... Qual estômago, qual nada!... Mestre estômago sempre andou metido em tudo, como porta-voz do artritismo; mas agora está patente a arteriosclerose do 1º e 2º graus!... É o diagnóstico do Abel Parente, feito com todo o cuidado e com franqueza declarado!"

Infelizmente o diagnóstico estava correto, abreviando a vida do grande guerreiro, tirando-lhe pelo menos 13 anos mais de vida, pois em 1907 registrara de passagem em Zeverissimações: "enquanto não o fizerem, tenho o direito de rir-me deles durante os vinte anos que terei ainda de vida."  Enganou-se, só teve sete.

Medo à Utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985

Tobias Barreto e D. Pedro II

Comentando o art. 3º da Constituição de 1824, dizia Tobias Barreto que a questão da melhor forma de governo é uma questão de beleza, de estética, e não de ciência social ou de direito. Depois, apelando para o seu kaekelismo biológico, dando algumas noções de morfologia e fisiologia das plantas e dos animais, não deixava de concluir: “aplicando à monarquia e à república, como formas de governo, aqueles princípios, veremos que a monarquia, forma anacrônica, com seus apêndices indispensáveis, dá como conseqüência funções morosas, incompletas, no organismo do Estado”. (Estudos de Direito), II, Sergipe, 1926, pp. 58/59).

Daí a sua antipatia pela monarquia e, principalmente, pela monarquia constitucional que se praticava entre nós, cópia servil do constitucionalismo inglês. Se no país de origem funcionava bem, aqui, na imitação, estava-se diante de um absolutismo monárquico, no qual tudo começava e terminava no poder pessoal do Imperador. O poder moderador, também copiado da fórmula de Benjamin Constant, nunca chegou a ser um poder neutro, e sim um poder pessoal do monarca. Chegava, dentro de seu conhecido destempero linguístico, a declarar em versos satíricos (O Rei reina e ao governa, 1870, in Dias e Noites, Sergipe, 1925, pp. 156/158): “Só vejo, que bem nos quadre/ No trono, algum animal,/ Que coma e viva deitado:/ O porco!... Exemplo acabado/ De rei constitucional.../”

Em longo ensaio sobre o poder moderador, contrariando os autores que já haviam tratado da matéria, Zacarias de Góes e Braz Florentino, negava-o em sua prática, vendo nele somente a figura do Imperador, absoluta, incontestável, irresponsável constitucionalmente. O Imperador, pelo próprio texto constitucional, era “independente, preponderante, soberano”.Os seus poderes anulavam e impediam um verdadeiro e autêntico parlamentarismo, como se pretendia e apregoava. (Questões vigentes, Sergipe, 1926, p. 226).

Segundo Tobias, na política brasileira, tudo girava em torno da pessoa do Imperador, no que houvesse de bom ou de mau, até nas artes. Em nota ao Discurso em mangas de camisa (Discursos, Sergipe, 1926, pp. 148/149), falando do renome de Pedro Américo e Carlos Gomes, chega a escrever, em evidente exagero: “Nos quadros de um, como nas óperas do outro, colabora o imperador; e esta é para mim a grande mácula de ambos. E tanto assim se deixa crer, que o fulgor dos dois planetas está na razão direta da maior ou menor aproximação do centro imperial: Pedro Américo é o mais áulico; e não será justamente por isso que ele é também o mais falado? ... Como quer que seja, uma coisa é incontestável: as telas de Pedro Américo e as partituras de Carlos Gomes não nos pagam dos demandos, dos caprichos, da ridícula pantosofia do seu ilustre protetor”. E terminava: “Mas certamente a batalha do Avaí, a Fosca ou o Salvator Rosa, e quantos outros produtos possam sair das mãos daquele Par nobile fratrum, não valem, não compensam a miséria política, o abatimento moral em que nos achamos, em virtude e à mercê da vontade absoluta do Sr. D. Pedro II”.

Muitos outros trechos críticos de Tobias Barreto poderiam ser aqui lembrados e transcritos a respeito da figura e da ação de D. Pedro II. Jamais escondeu o pensador sergipano a sua antipatia pela política e pela pessoa do Imperante.

Em 1882, porém, quando do memorável concurso para professor da Faculdade de Direito do Recife, no qual Tobias brilhou e confirmou a sua fama de grande talento, apesar de haver sido indicado em primeiro lugar pela comissão examinadora, tudo dependia da boa vontade de D. Pedro para a sua nomeação. Logo os inimigos do candidato – havia dois outros também na lista dos indicados –, fizeram chegar ao imperador os ataques contra ele publicados e ditos pelo candidato vitorioso. Informa Abelardo Lobo, discípulo e admirador de Tobias, que este passara um telegrama ao monarca pedindo justiça e o advertindo da campanha que contra ele se fazia. A justiça foi feita e Tobias nomeado. O que levou Silvio Romero, amigo direto de Tobias, a escrever: “Tirou a cadeira, a despeito da guerra que lhe moveram, a favor do candidato Dr. Augusto de Freitas, o Conselheiro Souza Dantas e o Dr. Sancho Pimentel, devido principalmente ao alto espírito de justiça do imperador D. Pedro II, que opôs embargos à deslavada prepotência dos politiqueiros relapsos”. (Dias e Noites, cit., p. XIX).

Desde então calou-se Tobias Barreto e nunca mais se referiu à pessoa do Imperador, nos sete anos que lhe restaram de vida. Tobias veio a falecer a 26 de junho de 1889, ainda na monarquia, e D. Pedro II perdeu o trono a 15 de novembro do mesmo ano...

1 Cartas. In GUIMARÃES, SR de perfil, cit., p 106; S.Rabelo, CIT., P.246-7; Zeveríssimações, cit.,p.150

Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 10/2/1993

Muito além dos sertões

Ao longo dos anos, ao lado de suas atividades como jurista, professor, pensador, vem-se dedicando Miguel Reale à história das nossas ideias, bastando lembrar “Figuras da inteligência brasileira”, além dos estudos em profundidade do culturalismo de Tobias Barreto e da filosofia nas obras de Rui Barbosa e de Machado de Assis. Desta vez, sem maiores preocupações de erudição.

Dentro do que se propôs, segundo Reale, passou Euclides da Cunha por três fases distintas do seu pensamento filosófico. Não o considera, contudo, como um filósofo stricto sensu, e nem poderia fazê-lo. A sua primeira fase deveu-se à influência das ideias de Augusto Comte, aurida na sua formação militar e de politécnico, naturalista, cientificista, fase essa que, de certa forma, permaneceu em seu espírito. A segunda fase, a partir mais ou menos de 1892, prende-se às leituras de Spencer, Gumplowicz, Proudhon e Marx, chegando a 1902, com a publicação de “Os Sertões”. A terceira e última fase, que culmina no ano de 1909, de seu concurso e de sua morte, no qual predominam as orientações de Ernst Mach e Henri Poincaré, do valor pragmático da ciência e de um certo convencionalismo gnoseológico.

Dois foram os marcos centrais na vida intelectual de Euclides: “Os Sertões” (1902) e o concurso de lógica no Ginásio Nacional (Colégio Pedro II) em 1909. Em ambos demora-se Reale, como propósito maior do seu ensaio. Tal era o aparato científico, com citações de antropólogos e sociólogos em moda na cultura da época, que o livro de Euclides logo impressionou como obra de ciência. A sua linguagem, prenhe de vocábulos técnicos, mais ainda levava a essa conclusão. Embora alguns críticos já tenham dito a mesma coisa, em poucas linhas dá-nos Reale um resumo das posições assumidas: “Ora qualificado como obra de ficção, ora como algo indefinido situado entre o romance e a epopeia, ou ainda como ensaio de crítica político-social, a originalidade de “Os Sertões” consiste em nele se fundirem os valores ficcionistas de um poema épico em prosa com os da percuciente análise de um ensaio antropológico e histórico”.

Em 1931, referia-se Afrânio Peixoto à “magia de um estilo terso, arrevezado, empolgante, épico”, que descrevia largo trecho do sertão brasileiro. E prossegue: “Nabuco disse que fora escrito com cipó: é o seu elogio. Este cipó, com que Euclides escreveu ‘Os Sertões’, arrastou os sertões até nós”. Em ensaio de 1952, Afrânio Coutinho classifica “Os Sertões” como “uma obra de ficção, uma narrativa heroica, uma epopeia em prosa”. O mérito maior, no entanto, de Reale consiste em distinguir dois estilos diversos em Euclides: “Um desornado e preciso, quando se tratava de problemas enquanto homem de ciência; e outro rebuscado e preciosamente trabalhado, quando escrevia como homem de letras, muito embora cuidando de temas científicos”.

Analisa Reale os textos de ambas as provas escritas – de Euclides e de Farias Brito – e demonstra que a do primeiro fora superior da do seu concorrente. O tema versava sobre “A verdade e o erro”. Sempre antimetafísico, nada mais estranho para Euclides do que o tema prova oral lógica: “A ideia do ser”. A escolha do tema “denunciava a orientação filosófica da Congregação, cujas convicções espiritualistas iriam determinar a classificação do autor de “Os Sertões” em segundo lugar, atribuído o primeiro a Farias Brito”.

Mas qual a face oculta de Euclides? Responde-o Reale: “Foi, não há dúvida, através da arte, da face, para ele oculta, de homem das letras, que Euclides da Cunha ajudou, mais do que qualquer outro, o acordar-nos de nosso sono povoado de ilusões, abstrações e temerosos espectros”. Segundo Reale, ainda “permanece oculto aos olhos dos seus críticos e significado de seu constante interesse por alguns problemas fundamentais da filosofia”. E termina o volume justificando o título: “Alicerçado sobre sólidos conhecimentos da nova lógica, a partir das contribuições inovadoras de Boole, era lícito esperar-se que a face oculta do pensador viesse à luz, abrindo novos e decisivos caminhos à história das ideias no Brasil. Face oculta para todo e sempre”.

Felizmente, para nós, não apresenta Reale nenhuma face oculta, e este seu livro constitui, sem dúvida, uma valiosa contribuição, como tantos outros de sua autoria, para a história das ideias no Brasil.

O Globo. Rio de Janeiro, 5/9/1993

Acadêmico relacionado : 
Evaristo de Moraes Filho